sábado, 23 de maio de 2015

O Mercado e teoria do Direito: "Por um punhado de dólares"


A intenção deste artigo de opinião é discutir como as regras de mercado têm exercido uma influência negativa na interpretação (a priori, limitada) dos fundamentos do Direito. Trabalharemos com a noção de que o Mercado é uma instância de Poder e que, visando a acumulação ilimitada de riquezas, possui regras de funcionamento sistêmico próprias. Ainda, como premissa, admitimos que algumas dessas regras podem ser convertidas em regras jurídicas, com o objetivo de garantir o equilíbrio das relações econômicas. Mas também aceitamos como válido o fato de que esse âmbito economicista muitas vezes exige o falseamento e a modificação de regras pertencentes a outras instâncias, como as referentes à Polítca e à Moral - numa relação intersistêmica pertinente ao variado campo da Ética, do qual também faz parte o Direito.



De início, fazemos uma breve nota sobre os riscos inerentes à utilização de um método experimental de análise. Procederemos à investigação desse tema por meio da utilização de uma linguagem figurativa, oriunda da cultura: o ditado popular. Isso porque, numa de suas palestras, o sociólogo Slavoj Žižek indica não existir nada mais intelectualmente desinteressante do que um ditado popular, pois tal recurso seria a coroação do pensamento acrítico, fundamentado numa aceitação dogmática da realidade cultural. Entretanto, por vezes, esse artifício linguístico nos indica algo para além do óbvio, visto conceder uma margem interpretativo-analítica sobre a qual se pode construir uma crítica que compreenda quais os discursos subjacentes e ocultos numa forma de se pensar.

Assim, utilizaremos uma metáfora como recurso cognitivo essencial para a compreensão de um dos valores internos do Mercado, qual seja, a ganância. Procedemos de tal maneira porque essa diretriz valorativa tem servido de justificação para os adeptos de diversos doutrinadores acadêmicos que examinam esse sistema: os economistas. Nada contra os economistas! Pelo contrário. Seus conselhos e prognósticos resolvem uma grande parte de nossos problemas (mas não todos). Assim, para demonstrar esse valor (ganância), vendido como um elemento axiológico da natureza humana, utilizaremos como instrumento uma obra cinematográfica: "Por um punhado de dólares".

Dessa forma, fazemos referência ao filme de faroeste italiano (spaghetti western), cujo título original é "A Fistful of Dollars" (1964), dirigido por Sergio Leoni e interpretado pelo ator norte-americano Clint Eastwood. A película, em si, não tem nada de muito interessante, se não fosse por um detalhe: ela revela um aspecto interessante sobre o Poder. Essa faceta manifestada é a facilidade com a qual um oportunista se aproveita de um contexto social conflituoso para auferir vantagens, diante de tal clivagem / divisão política. Representa, assim, um adágio popular: "a ocasião faz o ladrão". Essa seria uma denúncia do que ocorre entre o Mercado e a Política.

No bang bang italiano, o pistoleiro caçador de recompensas (Eastwood) encontra-se no interior do México, numa cidade dividida e sitiada por duas famílias rivais: os Rojos e os Baxters. A população encontra-se acuada por causa da violência perpetrada pelos integrantes dessas facções criminosas. O pistoleiro (no papel de anti-herói), utiliza o conflito entre dois grupos para pôr em prática seu plano de apropriar-se de um carregamento de ouro anteriormente roubado do governo mexicano e que se encontra na posse de um deles. Durante o planejamento e execução desse objetivo, nosso anti-herói proporciona uma espécie de libertação ao povo oprimido do vilarejo, acabando por matar cada um dos criminosos que aterrorizam a cidade e trazendo de volta o "equilíbrio natural" para o pequeno povoado mexicano. Ao final, monta em seu cavalo e segue seu rumo à próxima aldeota.

Então, você deve estar se perguntando: e o ouro? E o que diabos isso tem a ver com Política?

Se você tiver assistido o filme, percebe que o ouro desaparece da trama, tornando-se elemento narrativo inexistente. Isso se deve ao fato de que essa figura é apenas uma representação simbólica de algo muito mais precioso. O "ouro" que o forasteiro desejava roubar era nada mais nada menos que a identidade política daquele agrupamento humano. Nosso anti-herói apropria-se indiretamente do próprio povo, assumindo um dúplice papel: de verdugo-libertário, um símbolo, um ícone de uma nova instância de Poder.

O cowboy é, por assim dizer, a representação máxima dessa modernidade industrial, da especialização e do pragmatismo político, cuja promessa maior é a desconstituição das "tradições selvagens", sendo ele o mensageiro de uma promessa de libertação, mas que possui uma imoralidade própria, resultante de suas contradições internas/subjetivas: violência, avareza, ganância e pragmatismo. É representante impiedoso e misericordioso dessa modernidade. Ele exprime-se por meio de uma lógica de dominação de Mercado, e sua diretriz operacional é uma razão instrumental utilitarista que trabalha com dados matemáticos, econométricos, com precisões e probabilidades.

Voltando ao nosso ditado, "a ocasião faz o ladrão" apresenta um significado explícito e objetivo, que se converte na prática de uma conduta ilícita contextualizada: o furto ou roubo de algo que pertence a outrem, que os juristas traduzem pela locução "subtração de coisa móvel alheia"). Esse delito seria praticado diante de facilidades que uma determinada situação proporciona, visto que, em tese, as pessoas têm um comportamento ético adequado (decorrente de uma natureza?), até que surja um fator externo qualquer que as leve a cometer tal infração e quebrar o pacto social. Porém, se estendermos o significado da frase, poderíamos encontrar um fator interno e absolutamente subjetivo (talvez, natural?): diante de certas condições, o seu "ladrão interior" aflora e tem total legitimidade para se comportar de maneira anti-social. Haveria uma justificação implícita para o cometimento de ilícitos: a frase pressupõe que podemos cometer algum tipo de ilicitude, pois haveria algum tipo de perdão ou compreensão social, perante o contexto no qual nos inserimos e por força dos fatos que nos levaram a cometer um delito.

Como temos argumentado, esse imaginário possui uma lógica interna própria, qual seja, a hierarquização de princípios (valores humanos) por meio de critérios de utilidade, de acordo com uma relação racional entre valores e interesses. Como todo sistema, como se pode supor diante de um pensamento estruturalista, esses valores convivem harmonicamente, sem aniquilarem-se uns aos outros, mantendo as funções para as quais o sistema é criado. Porém, ao lado desses elementos objetivos, existe um critério subjetivo, muito importante na estratégia de funcionamento sistêmico: o individualismo. Esse é o sistema que guia o protagonista do Far West (faroeste).

Com efeito, para que essa estrutura (Mercado) se mantenha intacta, é necessário uma desarticulação do coletivismo, da noção de grupo e práticas culturais, por meio do fortalecimento exacerbado do indivíduo e sua ampla e irrestrita liberdade de escolha e ação. Assim como o pistoleiro, o indivíduo defensor dessas forças de mercado é esse ladrão que, diante dos diferentes contextos, opta por controlar ou liberar seus instintos, sendo uma espécie de criatura acima das leis e dos costumes, rizomático, transitório e desinteressado, que cativa nossos corações com sua forma desapegada e cínica de observar e interagir com o mundo. Ele é que é livre sem ser igual e, por revelar-se superior a nós, nos leva nossos problemas, exigindo em troca apenas nosso "ouro". É, para dizer o menos, um alienado: distancia-se dos demais, torna-se alheio ou indiferente aos outros. Ele é o "homem sem nome".

Esse vilão-benfeitor é, naturalmente esquizofrênico, por carecer de um fio condutor da normalidade social, haja vista que suas diretrizes são matemáticas, puramente lógicas e instrumentais. Mesmo revelando uma contradição no seu âmago, não é dialético per si, dependendo de intervenções constantes e suficientemente fortes para aquietá-lo, domá-lo. Essas intervenções, como externas, encontram-se sedimentadas na resistência social/coletiva que lhe impõe certos limites, freios e contra-pesos - porque nenhuma forma de Poder poderá ser absoluta numa Sociedade. E é por meio do Direito que se organizam essas normas que garantem e limitam a liberdade.

É diante dessas afirmações alegóricas que é possível explicar de que forma o imaginário social deposita sua confiança nas regras de convivência que compõem o Direito. As normas jurídicas, dispostas harmonicamente dentro de um sistema que lhes é particular, organizadas em outra estrutura, desempenham uma função geral e mais abrangente, consoante possuem outras finalidades, outros valores e uma topologia que lhes são próprias.

Os vértices jurídicos acumulam experiências cognitivas, pois têm o condão de preservar certas percepções orientadas pela necessidade de uma convivência comum, libertária, igualitária, solidária e dialogada. Embora tenham sido utilizados para acumular os mais torpes objetivos ao longo da História, sua atual operacionalização tem por escopo a defesa da humanidade (entendida como uma categoria mais ampla que a própria sociedade). Como todo instrumento social, ao contrário de outros instrumentos, sua operacionalização se faz mediante a avaliação entre normas justas e injustas, o que não sucede com as normas mercadológicas, que só podem ser avaliadas como úteis ou inúteis, adequadas ou inadequadas.

O controle que as normas jurídicas exercem sobre as normas de mercado reside ou brota da legitimidade que sobre elas é depositada. Essa legitimidade pode lhes revelar um exame interpretativo consentâneo ao sentimento de Justiça construído socialmente, ultrapassando as limitações de natureza quantitativa proporcionadas pela eficácia e pela validade -- embora sobre essas últimas exerça uma enorme influência. As normas do Direito são construídas pela cultura, pelas percepções identitárias, pelos sentimentos individuais e coletivos de pertença, e pelo necessário equilíbrio que a convivência exige da espécie humana: a harmonia entre interesses individuais e coletivos.

Esta é, ao fim e ao cabo, a importância (e o desafio) da constantemente renovada teoria do Direito: preservar a humanidade de suas próprias contradições. Ela proporciona a persistente readaptação dos preceitos normativos às necessidades sociais de convivência, ajudando o indivíduo a ser (viver) e a estar (conviver). Colabora na produção e aplicação de um conjunto de regras positivadas - postas para serem conhecidas e interpretadas pelo público -, informando o jurista a encontrar os meios adequados para a implementação de um arsenal teleológico.

É a teoria jurídica que orienta o investigador à compreensão de que não adianta "fazer a Justiça, mesmo que o mundo pereça". Porque o Direito é realidade social, devendo o jurista optar por decisões que preservem o meio social mesmo que, para isso, sejam exigidos sacrifícios da própria Sociedade. Na lista desses sacrifícios, por vezes, encontra-se o conflito entre o ter e o ser, ou entre o ser e o estar.

Se nada mais importar, a não ser os números, então tornam-se desprezíveis as normas, quer as jurídicas, quer as mercadológicas. Vê-se, pois, que o "nosso mundo" não é feito por números, nem somente por atos de pura Justiça. O mundo é composto de humanos, mas não só.