quarta-feira, 7 de maio de 2008

A "ciência" e a dominação do social

À partida: não existe tal coisa que se possa chamar "ciência" social ou humana. O que se pode observar é que a palavra "ciência" ganhou, na modernidade, um significado cultural útil na tarefa de oposição à cultura (um paradoxo); é, portanto, um construto social. Como seria possível afirmar que exista um qualquer "conjunto organizado de conhecimentos baseados em relações objectivas verificáveis e dotados de valor universal" nos estudos humanísticos e sociais? Como tal coisa poderia existir? Existe algo aplicável universalmente ao comportamento humano (imaginário, psicológico, identitário ou cultural)?

O que se verifica é que houve (e há) uma série de construções ideológicas que, antes de mais nada, servem à estruturação de sistemas de controle social e apreensão da realidade; esses esquemas ideológicos têm seus centros de produção numa estrutura hierarquizada de produção do "saber" que, ao longo da História, vem afirmando uma série de discursos hegemônicos e sendo reproduzido nos mais diversos níveis da vida em Sociedade. A par de qualquer justificação sensível, elas se fundamentam em lógicas pré-definidas chamadas "métodos". Ora, o método tem por objetivo principal elimiar quaisquer influências exógenas que sejam capazes de comprometer uma análise "verdadeira" do objeto de estudo; sendo o conjunto de pressupostos ou de "regras-do-jogo", a definição de um método nas "ciências" sociais e humanas não faz outra coisa senão desumanizá-las, posto que inviabiliza a detecção de um ou vários outros fatores que comprometeriam a consecução de uma conclusão "neutra e imparcial".

Ora. Não conheço uma única pessoa que seja neutra, ou imparcial, porque simplesmente essas coisas não ocorrem na vida humana. Até mesmo um matemático, diante de um teorema, age com parcialidade - ou não quer ele resolver seu problema? Existe algum juiz no mundo que seja imparcial (que possa se despojar de toda a sua experiência pessoal no julgamento de um caso)? Existe alguma ação neutra (as ações não têm, afinal, objetivos, alvos, metas)? O ser humano age por impulso, por paixão, tem essa ou aquela moral, esse ou aquele comportamento (ética) e, por uma razão qualquer, colhe da vida coletiva aquilo que convencionou-se chamar cultura. Esse é o meio no qual, necessariamente, o ser humano existe e, consequentemente, no qual se desenvolvem as pesquisas ou estudos sociais. Vamos aos exemplos.

Na Antropologia, é mais que sabido a influência da biologia na confecção das mais absurdas teorias sociais, como foi o caso do racismo. Com efeito, no seu projeto imperial de colonização, as elites européias fizeram da idéia de raça uma fronteira intransponível de subjugação de milhões de pessoas; quer a idéia do "bom nativo" de Voltaire, quer a desumanização do negro africano (com o apoio da Igreja Católica), foram as justificações para os mais crueis e nefastos métodos de escravização das populações humanas. Hoje, o racismo ainda alimenta as mais estúpidas e, porque não dizer, a-científicas teorias de exploração e submissão dos povos não-europeus; desde as mais infundadas afirmações de inferioridade genética, até as mais esdrúxulas explicações para o insucesso sócio-econômico de várias identidades étnicas; e essas lógicas funcionam em vias transversais, amparada ainda pelo infundado conceito de "nação".

No Direito, a dogmática jurídica reduziu o espectro retórico do Direito a elaborados esquemas sistêmicos, que matematizaram não só a sua operacionalização, mas tornaram-no um elemento de difícil apreensão social. Essa abstração serviu como a principal barreira entre Sociedade e Estado, pois o discurso jurídico (inalcansável e alienígena em relação às práticas sociais) submeteu as práticas sociais ao ordenamento jurídico elaborado nos gabinetes de legisladores e nas Faculdades de Direito. Na promoção do sistema de colonização europeísta ao redor do mundo, o sistema do indirect rule que funcionou em África, ou a transposição de ordenamentos jurídicos das metrópoles, como foi o caso brasileiro, construiram "castelos" em torno dos quais a população não tinha outro remédio, senão a submissão ao Império da Lei.

O que se pode observar é que, ao fim e ao cabo todos esses conceitos são "saberes esquisofrênicos" ou fragmentos de saber. Não há qualquer forma de avaliar a complexidade das relações humanas por métodos estanques ou com uma logicidade matemática, porque a vida em coletividade simplesmente não está sujeita à algebra ou ao pensamento abstrato puro; não existem verdades abstratas puras, posto que sua aplicação nos estudos humanísticos tem claros efeitos nocivos: a simplificação das interações humanas, pela simplificação dos métodos, condiciona os resultados de qualquer pesquisa nessas áreas. Ainda, nesses processos hierarquizados de produção do saber, não há interferência de formas de saber que, a priori, são excluídas e acabam por se constituir em discursos suprimidos - como é o caso do conhecimento socialmente produzido (cultura).

Não existe forma mais brutal de dominação do que aquela que se apodera do "saber" e isola-o nas "fortalezas intelectuais" do pensamento catedrático. Por isso, os espaços de produção "científica" não podem ser "higiênicos", ao ponto de "desinfetar" o ensino e separá-lo da influência popular e cultural. Quanto mais híbridos esses espaços de produção acadêmica, mais universal é o saber, e uma das formas de democratizá-lo é, antes de tudo, a desconstrução das barreiras ideológicas que são o fundamento dessa ilegítima apropriação.

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