Tem causado espanto em alguns segmentos da sociedade a atividade exercida por homens, mulheres e crianças nos semáforos dos grandes centros urbanos do País. Estas pessoas trabalham numa das várias espécies de atividades laborais compreendidas como "mercado informal do trabalho", obtendo uma remuneração imediata pela prestação do simples serviço de "flanelinha", limpando os pára-brisas dos carros que esperam o sinal de partida. Ainda, nos mesmos semáforos e por todos os lados, nas vias públicas, os milhares de pedintes abusam da experiência sensível dos condutores, exibindo suas mazelas e enfermidades, de todo tipo, mendigando por alguns trocados.
Usando as palavras de Karol Józef Wojtyła, falecido Papa João Paulo II, "vivemos num mundo materialista". É bem natural, portanto, que além de perseguir a pergunta espiritual que move a humanidade - "o quê viemos aqui fazer, neste mundo", ou "qual o sentido da vida" -, o ser humano tem que alcançar a satisfação de necessidades básicas de sobrevivência - que colocam-se a quilômetros de distância de outros interesses, mais fúteis e banais, como adquirir um novo veículo, ou mudar para uma residência mais ampla, por questões de vaidade. Algumas dessas pessoas - aquelas que perseguem esses sonhos de consumo - se indignam pelo fato desses pedintes e trabalhadores do mercado informal conseguirem um lucro médio bem acima do valor nominal do salário mínimo, demonstrando, através de cálculos simples, que a renda dessas pessoas é bem mais cômoda do que a renda de um operário ou trabalhador que se submete à jornada de trabalho de quarenta horas semanais - sob uma remuneração mínima que pouco ultrapassa os US$ 150,00 (cento e cinqüenta dólares) mensais. Ainda, se indignam muito mais pelo fato dos pedintes e "flanelinhas" não demonstrarem o menor interesse em se submeter ao salário mínimo e às seguranças ofertadas pelo sistema segurança e proteção sociais - estes últimos, pagos pela arrecadação que é conseguida pelos descontos nos salários. Mas, ao contrário do que possa parecer, todos estes são fenômenos plenamente compreensíveis.
Primeiro, diga-se de passagem, que, seja pela regra de "ouro de Lassale", seja pela teoria do "exército de reserva" de Marx, pode-se explicar estes fatos: o baixo valor de compra de um salário mínimo injusto, pressionado pela inflação e, quando é o caso, pela estagflação. Segundo, esses homens e mulheres estão excluídos do mercado de trabalho, devido à própria fase pós-industrial do Capitalismo, que não consegue mais ofertar aos indivíduos a tão sonhada inserção e permanência no emprego, uma vez que a atual fase do sistema econômico remete a população mundial ao período inicial desta Era, a fase conhecida como Liberalismo, com a menor intervenção possível do Estado na economia – o Estado atua apenas como um regulador das atividades desenvolvidas pelos entes privados. Terceiro, essas pessoas - as do semáforo - estão interessados em realizar suas satisfações materiais imediatas, sem as preocupações com um futuro que, mesmo àqueles que pagam suas contribuições sociais, parece sombrio: o fim ou a falência do sistema previdenciário. Ainda, deve-se ressaltar o fato de que a sociedade embrutecida pela pobreza - que é uma espécie de violência -, prefere a atitude solidária da esmola ou do trocado, a ter que arcar com os custos sociais de readaptação do modelo de exploração da massa trabalhadora, uma vez que os recursos do Estado devem se destinar apenas à infra-estrutura - portos, estradas, aeroportos, etc. Por fim, as marcas de uma “quase-superada” cultura escravagista brasileira causa a ojeriza à insubordinação dos pobres às condições impostas pelas elites dominantes – que insistem em manter um modelo de sociedade em que há uma imensa maioria de miseráveis, que habitam guetos, que comem restos de lixo, que são chamados de vagabundos e outros adjetivos degradantes, vítimas da arraigada ideologia do determinismo geográfico e d’outras do mesmo gênero, que tentam justificar o fenômeno da pobreza e da miséria com as mais iversas e absurdas teorias.
De fato, não é preciso muita inteligência ou grandes manobras para começar a solucionar estes problemas. A Constituição Federal de 1988 possui várias ferramentas jurídicas para contornar diversos problemas nacionais, porque foi construída nos moldes do esquecido Estado de Bem-Estar, ou Estado Social Democrático de Direito, em que o Estado, representando a sociedade brasileira, se compromete a atuar diretamente na consecução de objetivos como: pleno emprego, conservação da força de trabalho, proteção dos trabalhadores, garantia de investimentos com educação, saúde, lazer, cultura, desporto e assim por diante. Cumpre destacar que, a República Federativa do Brasil tem como principais fundamentos ético-valorativos a dignidade da pessoa humana e o valor social do trabalho. Repita-se, a defesa da atividade laboral é a defesa de uma sociedade justa e igualitária; as diretrizes que guiam o Estado brasileiro são os comprimissos com sua atividade finalistica, quais sejam: "(...) a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos" (Preâmbulo da Constituição Federal de 1988).
Mas, ignorando tudo isso, e fazendo troça da má vontade de todos os que acham que os “problemas sociais são os problemas dos outros”, ainda há outras soluções. Se o País é Capitalista, deixe os cidadãos do asfalto, “flanelinhas” e mendigos exercerem a sua “livre iniciativa” – que é o “bom tom” de toda bandeira liberal ou neoliberal. E, em todo caso, não se queixe. Afinal, não se preocupando com essas coisas todas, é bem mais fácil continuar alimentando a pobreza com o vil metal, renegando um futuro digno para milhões de seres humanos. Em querendo se recusar, lembre-se que uma boa campanha pelo fim das esmolas nos semáforos é o caminho certo para a revolta, no dia em que “eles” não suportarem mais e voarem, através da janela, para o interior de seu carro importado. No mais, só resta a reflexão.
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