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terça-feira, 9 de dezembro de 2014

O Político e o Professor

Desde as eleições recentes (outubro de 2014), as redes sociais têm sido espaço para a verborreia do ódio e do descontrole, intercalado apenas pelo bom senso de poucos, que tentam contemporizar e trazer à tona a racionalidade e a cidadania, necessários ao desenvolvimento pleno da Democracia brasileira. Porém, a Internet tem sido apenas o palco, onde os personagens multiplicadores desses sentimentos vis e antidemocráticos funcionam como fantoches de forças e grupos com intensões bem claras, e objetivos políticos concretos.
Para compreender o "estado da Nação", é preciso que se reconheça que os ânimos se acirraram, principalmente após a vitória apertada da atual Presidente da República - legitimamente eleita mediante pleito eleitoral, por escrutínio secreto e universal. Depois de encerradas as eleições, ao contrário do que se poderia imaginar - com a reorganização das forças políticas em torno de questões relevantes e urgentes para o País -, alguns setores da oposição têm utilizado das funções do Estado brasileiro para clamar por impeachment - sem que tenha havido, até o momento, a abertura de qualquer procedimento inquisitivo nos moldes do devido processo legal - e golpe militar - sem que se precise dizer que, além de estarem obrigados a respeitar o Estado Democrático de Direito (art. 142 da Constituição Federal), como grupo de cidadãos, os representantes dos altos escalões das Forças Armadas já firmaram posição de respeito à Democracia, em que pese à dissidência interna (e velada) sobre o tema...


No Congresso Nacional, outro espetáculo: a personificação do ódio e da intolerância nas atitudes reiteradas do deputado federal Jair Bolsonaro, revela o ganho político que os comportamentos das redes sociais fomentam e reproduzem. Tal parlamentar clama, aos quatro ventos, os maiores impropérios contra todos aqueles que colocam em dúvida ou entram em desacordo ao seu "sistema de crenças", chegando a expor (abertamente) comportamento misógino, fundado numa percepção completamente equivocada do que venha a ser um parlamento; em vários episódios como esse, toda manifestação de pensamento contrária desperta, incontinenti, ataques verbais ultrajantes

Além disso, esses mesmos setores descontentes e seus locutores utilizam-se de adjetivações e imputações criminais ao Executivo da União e até a classificar todos os eleitores do Partido dos Trabalhadores de "criminosos" - caso protagonizado pelo candidato derrotado Aécio Neves -, como se opção política fosse motivo para se imputar conduta delituosa a qualquer eleitor. A escolha democrática tem que ser respeitada, quer seja fundada em interesses materiais conquistados por meio de políticas públicas assistencialistas, quer na ideologia do eleitor (sim, a velha ideologia de esquerda...), quer em qualquer outro motivo emocional, partidário, ou psíquico, ou, ainda, até decorrente da boa ou má formação política e educacional do cidadão.

Na linha das conhecidas argumentações defendidas pelos mais exaltados, segue a retórica da "população apavorada", no esteio da noção (equivocada e imprecisa) de que o atual ordenamento jurídico é o instrumento de excelência para a disseminação do crime e da desordem. Frases soltas, do tipo "Os direitos humanos só protegem bandidos" têm sido veiculadas abertamente, diante de uma população que, desta feita, por ignorância, desconhece a amplitude conceitual do tema dos Direitos Humanos - que albergam normas protetoras dos direitos políticos do cidadão, civis e políticos das crianças, da maternidade, dos idosos, dos trabalhadores (...) e, sim, dos investigados em inquéritos policiais e acusados em processos penais. Diante da inapetência do Estado em cumprir as normas constitucionais que contém as chamadas "sanções promotoras" (conforme classificação do autor italiano Norberto Bobbio, chamado a explicar sobre os fundamentos do Estado de Bem-Estar Social), vulgariza-se essa abordagem a respeito da proteção estabelecida por normas de direito interno e internacional que incidem sobre os direitos e garantias fundamentais da pessoa humana.

Na contraposição a essas pontuações, está a brilhante defesa do Direito, da Ética e das instituições sociais organizada de forma bastante informal e didática pelo Prof. Haroldo Guimarães, mestre em Direito Constitucional pela Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará. De uma maneira muito gentil e descontraída, os ensinamentos do Professor são claros: para a boa convivência social, é necessário um diálogo aberto, amistoso e racional, com o fito de preservação da malha social. Somente através do conhecimento (não só proporcionado pela Educação formal ou acadêmica) é que se torna possível uma verdadeira emancipação social, vez que tanto na política, quanto nas mais simples relações humanas vigoram as mais intrincadas e sutis emanações de Poder.

Ainda, a História revela que a personificação e o direcionamento do ódio para grupos sociais específicossempre resultou em atos de barbárie e que, para alcançar esse resultado, os grupos que os disseminavam se utilizaram de argumentos acríticos semelhantes aos expostos pelos defensores do ódio em Terra Brasilis. Vale ressaltar que o discurso de ódio sempre irrompe em momentos de crises (institucionais e econômicas), proporcionando Poder a seus propagandistas. 

Valendo lembrar que, em tônica muito resumida, aderir a esta ou aquela bandeira partidária e ideológica é um dos fundamentos da República; os ataques aos assim rotulados "comunistas", "marxistas", "bolivarianistas", "socialistas" e "gayzistas" (sic) têm se mostrado prática absolutamente intolerante e em descompasso ao pluralismo político consubstanciado no art. 1º, inciso V da Constituição Federal. Em outras palavras: ao invés de se construir uma oposição racional às ideologias e percepções de mundo contrárias aos seus interesses, esses grupos que discursam o ódio optam pela lógica do silenciamento e da censura, por meio da violência, numa sociedade na qual o espetáculo da brutalidade ganha cada vez mais adeptos. Ressalta-se: não é uma violência presumida da qual se fala, mas de uma que se apresenta na forma de violência física, psicológica e político-social, e sobre a qual somente o esclarecimento pode verter alguma luz - num explícito apelo ao modelo mais simples de Estado de Direito, fundado na razão.  

Portanto, mesmo que essa parcela "politicamente agressiva" da população seja inexpressiva, deve-se duvidar que o discurso que reverbera nas redes sociais não possa encontrar "ouvidos carentes" e, diante dessa orfandade acrítica, multiplicar-se. Silenciar diante desses atos significa: (i) tornar esses atores políticos os únicos e legítimos proprietários das soluções sociais, e (ii) conferir-lhes a atribuição exclusiva de identificar quais as verdadeiras causas da - e os (convenientemente) culpados pela - desorganização das instituições públicas e dos poderes constitucionais. Esse silêncio é, acima de tudo, um ato de omissão política inaceitável. 

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Em homenagem ao Prof. José Haroldo Guimarães Filho.

sexta-feira, 8 de agosto de 2014

O mérito numa sociedade desigual e de privilégios

Um dos temas mais polêmicos na teoria política diz respeito à meritocracia. De acordo com essa teoria, a investidura no poder deve dar-se quase que exclusivamente em razão do mérito do candidato. Porém, embora a meritocracia tenha sido um fator determinante no preenchimento de cargos públicos na Antiguidade, nas sociedades contemporâneas ela diz respeito diretamente ao sucesso na competição pela sobrevivência.




Antes de mais nada, convém ressaltar que os gregos - autores dessa perspectiva - pressupunham três critérios que integrariam a avaliação do mérito do cidadão num regime democrático: isagoria (a igualdade política entre os indivíduos do corpo civil), a isotimia (o livre acesso aos cargos públicos aos cidadãos) e a isonomia (a igualdade de todos perante a lei da pólis). Ainda, convém esclarecer que esse modelo helênico, puramente formal, tinha por alicerce uma sociedade fundamentalmente desigual e injusta: as mulheres e os filhos não eram cidadãos, ocupando, junto com o escravos, o patrimônio econômico do cidadão grego, ou seja, o locus social dessas pessoas era a puramente privado, sujeito às regras do justo e injusto de uma justiça privada ou não-pública, nos dizeres de Aristóteles (na obra "Política"). Isso para não descrever certos aspectos dessa cidadania, que admitia a venda de pessoas na qualidade de "escravo", como foi o caso de Platão, cidadão e filósofo ateniense que serviu nessa condição, num navio mercante, por vários anos. Com isso, pode-se afirmar que tal paradigma sócio-político de meritocracia era, inequivocamente, formal.

Dando prosseguimento a essa modesta investigação, pergunta-se: como essa estrutura foi absorvida pelas culturas ocidentais, e que marca (trauma) ela provoca nas formas de acesso ao poder (sócio-econômico)? Igualmente: quais seriam as consequências práticas desse tipo de perspectiva diante da obscena desigualdade entre os sujeitos que compõe um modelo jurídico-formal de Estado Democrático de Direito? E, finalmente: que perspectiva se abre diante dos contornos de uma democracia plural, inclusiva e participativa?

Em que pese os milênios de transformações sociais e culturais pelas quais passaram as civilizações ocidentais, que se abeberaram na filosofia grega para contemplar o modelo de Estado de Direito, a organização dessa Modernidade optou por uma abordagem puramente formal de configuração das estruturas de poder. Essa perspectiva está alinhavada numa transição paradigmática que faz parte das transformações registradas pela História (principalmente da Idade Média coletivista, para a Modernidade individualista), que culminou na prevalência dos interesses privados do homo oeconomicus, com uma mudança focal sobre a vida social, isto é, uma mudança de viés na concepção da organização da vida individual e coletiva: o cerne das preocupações do indivíduo passou da esfera pública para a privada. A promessa de um "futuro melhor" por meio do progresso foi o estopim e armadilha na qual se jogaram os países europeus, alimentados por ideologias e modelos sociais os mais variados - mas todos comprometidos com alguma tentativa ou proposta de equilíbrio entre os interesses individuais e nacionais: houve uma transmutação de conceitos: da coletividade para a nacionalidade, como bem ilustra os adeptos da Escola Histórica e das doutrinas jurídico-políticas que se utilizaram da filosofia hegeliana.

Entretanto, ao contrário do que indicava o fatalismo da abordagem histórica, os progressos tecnológicos de que se desfruta atualmente (revolução aeroespacial, telemática e informática, biotecnologia, energia termonuclear etc.) também modificaram aquela configuração sócio-política do Estado nacional: a globalização reduziu distâncias, eliminou fronteiras geográficas, tornando o mundo, paulatinamente, numa aldeia global, sem, contudo, resolver os problemas do passado. A miséria e os diversos tipos de desigualdade e exclusão social, ao contrário do esperado, se intensificaram. Isso porque essa globalização sedimentou-se sobre ruínas de uma disputa da Modernidade (entre os argumentos da economia de mercado e da economia planificada), que resultou com a vitória da perspectiva formal liberal, que assumiu os contornos de uma neoliberalismo: neo (novo) porque adequado a um mundo de plena liberdade conferida ao mercado financeiro e às grandes indústrias transnacionais; neo porque abandonou o indivíduo à própria sorte, por concentrar-se e validar apenas o direito à propriedade, e relegar ao plano meramente abstrato os direitos da personalidade (ao desenvolvimento das capacidades plenas do indivíduo).

Neste momento, torna-se necessário avaliar o argumento que discute a contemporaneidade - também designada de "pós-modernidade", que nada mais indica além da prevalência de um modo de vida pautado nas "sociedades mais desenvolvidas" (Lyotard) do complexo político de cariz eurocêntrico. O atual modelo de organização social tem na esfera econômico-financeira o seu alicerce primordial. Para ter "sucesso", os indivíduos devem zelar pela otimização dos recursos sociais e, dentre eles, tempo e dinheiro compõe a "chave para o sucesso" na organização dessa vida social. Assim, garantir os interesses pessoais e individuais é uma máxima válida e inquestionável, se o cidadão almejar uma sobrevivência plena e abundante em bens materiais e segurança financeira, numa sociedade de consumo em massa. Mas, em que pese todo o aparato das correntes do pensamento crítico, além da falta de oportunidade que continua a assolar as populações dos países da periferia da antiga divisão Norte-Sul globais, hoje, esse sistema global reproduz a miséria e os diversos tipos de desigualdade no centro desse sistema (Norte) - sendo a atual crise econômica europeia o melhor exemplo a ilustrar esse fato: inundados por imigrantes, sem perspetiva de empregabilidade (diante do fenômeno da deslocalização de empresas), com uma pirâmide social absolutamente invertida (envelhecimento populacional) e vivenciando políticas de austeridade, os europeus estão endividados, desempregados e desgovernados.

A competição global por acesso aos bens e aos recursos naturais, de um lado, só proporciona o referido progresso (prometido na Modernidade) àqueles dotados de privilégios que, porventura, consigam administrar e dispor de tempo e dinheiro (que já possuem) à formação que propicie o desenvolvimento de competências técnicas adequadas. De outro lado, os excluídos do processo não tem acesso a essas ferramentas, tendo que ocupar a margem industrial excluída pelos processos tecnológicos, recebendo apenas uma remuneração que só garante a sua reprodução biológica e o sustento de suas necessidades elementares. O que se constata é que houve um aumento (globalizado) do fosso que separa ricos e pobres.

Em que pese esse ser um cenário generalizado, ainda persistem algumas ilhas de resistência a esse panorama desalentador. Sobreviveu, em alguns países, uma linha de proteção social aos desamparados e, associada a ela, uma linha argumentativa de um modelo não-formal (mas nem por isso menos jurídico-político) de correção daquelas distorções formais do (neo)liberalismo. Seria uma linha por estabelecer um espaço limítrofe entre a humanidade e o mercado, entre o ser e o ter: as políticas públicas do Estado de Bem-estar Social e Democrático de Direito, sustentada por uma outra linha, também limítrofe, de reforma social, da social-democracia. Social-democracia essa que reconhece os direitos do indivíduo, consagrados pelo liberalismo político e jurídico, mas que também zela pelos direitos da sociedade; que dá a noção de que o indivíduo, antes de ter, é e está, e nessa condição de estar, convive. A união entre esse modelo estatal e o outro jurídico-político está vivo no texto constitucional de países como o Brasil, França, Itália, Alemanha e Portugal, dentre outros. Porém, as avaliações sobre a efetividade e a sobrevivência dessas linhas são desoladoras, porque, embora elas existam, a leitura e interpretação que se procedem sobre elas ainda é majoritariamente formal.

Significa dizer que, embora existam modelos jurídicos que assegurem a transposição dessas dificuldades e mazelas sociais, é necessário uma abordagem circunstancial e não-formal dessas garantias. Tome-se o caso de um problema global: corrupção. A abordagem formal da corrupção submete-a à formulações procedimentais e processuais que são incompatíveis ferramentas de solução do problema. Por que? Porque a impunidade relativa a ela é não-formal: não se trata de um problema sistêmico, mas extra-sistêmico; não é jurídico, é político, e está ligado à omissão (relativamente aos mecanismos da democracia participativa, de controle, fiscalização e cobrança dos atos de governo). Outro problema: formação educacional. Também esse seria um problema a exigir uma solução não-formal: de que adianta proporcionar o ingresso de discentes de classes sociais desprovidas às universidades (públicas e privadas), se não há livros, alimentação e transportes públicos e gratuitos aos estudantes? Em outras palavras: você consegue estudar com fome?

Portanto, as questões relativas ao mérito devem ser avaliadas diante da seguinte problemática: quem tem mais mérito? Aquele que goza de benefícios, facilidades, apoio e suporte financeiros, ou aquele que, mesmo diante de privações, falta de oportunidades e carestia consegue seu lugar ao Sol? Como se determina o mérito num modelo competitivo, desigual, formal e excludente?

terça-feira, 15 de janeiro de 2013

Libertarianismo: deturpação do conceito de emancipação social

  • AS TESES DISCUTIDAS
O libertarianismo é uma corrente de pensamento que defende a destituição da figura do Estado, que seria substituído por um não-regime de auto-governo (self-government), através de unidades locais de organização social. Em sua gênese, apropria-se de alguns aspectos da teoria anarquista do século XIX, mas diverge quanto aos critérios de emancipação social porque não propõe uma ruptura com os sistemas de produção e apropriação da riqueza social - a despeito de propugnar a eliminação da figura do Estado. Seus teóricos (os economistas Ludwig von Mises e Milton Friedman são os grandes expoentes) partem da concepção norte-americana de federação e propugnam o desmembramento e fim do Estado de uma maneira genérica ou global.



Por quem sorri Friedman?
Dentre as "revolucionárias" ideias associadas a esses dois economistas, e aos libertarianistas, estão: o fim do Direito Tributário, a extinção das normas regulatórias que compõem o Direito do Trabalho e o Direito Previdenciário, a completa desregulação da economia (um retorno da ideia de mão invisível e da teoria das expectativas racionais, que auto-regulam o mercado) e o fim de todos os tipos de intervenção na liberdade dos capitalistas, como o Direito do Consumidor.

Até dá para fazer piada, caso prosperasse tal ideia no Brasil: o "terrível" exame da Ordem dos Advogados ficaria bem mais fácil, e haveria infinitamente menos reprovações, pois os estudantes estudariam apenas Direito Empresarial (que tem mais ou menos uns quatro modelos de petição, na segunda fase)... Mas, defender isso é querer "esticar demais a baladeira" e brincar com a inteligência alheia, ou não?

Para não dizer que Friedman era assim tão sinistro (sic), ele era favorável à liberação de todas as drogas (todas elas! Uáu...). Com certeza, a essas alturas, você deve estar se perguntando o que sobra, quando se desmonta o Estado... Sobram apenas as grandes corporações e multinacionais, que passariam a explorar economicamente todas as atividades antes reguladas e controladas pelo Estado - evidentemente, para quem poder pagar por elas: polícia, saúde, educação, corpo de bombeiros, correios etc. E, quem sabe, até o tráfico legalizado de drogas, que tal?

É cediço que existem diversos argumentos que amparam as teses acima ventiladas. Todas elas são embasadas em conceitos micro-econômicos que prospectam vultosos lucros e vantagens para aqueles que, detendo o poder econômico, puderem participar da divisão desse maravilhoso e rentável "bolo".

Entretanto, convém lembrar que a esmagadora maioria da população mundial (para não falar só a nível de Brasil) vive em condições precárias de subsistência -- o Sol não nasceu da mesma forma para todos. A não ser que esses senhores estejam a propor algum tipo de medida genocida -- daquele tipo de solução adotada no Brasil, décadas passadas, de resolver o problema da fome deixando que os miseráveis morressem de fome --, é de se concluir que bilhões de pessoas estariam automaticamente excluídas da participação de tão eficiente modelo, por uma simples razão: enquanto os Estados organizam a distribuição de serviços públicos de forma gratuita, as empresas privadas só fornecem serviços mediante a contra-prestação (pagamento). E somente se esses serviços forem lucrativos (caso contrário, são descontinuados).

Vamos relembrar uma das frases mais interessantes de Friedman: "Não se distribuem almoços grátis". Não? Essa é a proposta; um futuro tenebroso, no modelo libertarianista, quase eugênico e, sem dúvida, apelando à "seleção natural": aqueles que não forem aptos, sucumbirão.Solidariedade? Zero.
  • O FIM DO ESTADO
A priori, essa noção de emancipação por meio da destruição do Estado pertence às correntes do pensamento sociológico e revolucionário que tiveram por base não apenas as ideias iniciais de Jean-Jacques Rousseau, mas se desenvolveram décadas depois nos trabalhos de pensadores como o irlandês Edmund Burke, ou o russo Peter Alexeyevich Kropotkin. Mas essas correntes contemporâneas não trataram do anarquismo em primeira mão; a ideia de uma sociedade "sem-governo" remonta ao período clássico da Antiguidade, e as discussões em torno disso são milenares; Júlio César teria dito, na conquista do povo lusitano: "Que povo é esse, que nem se governa, nem se deixa governar?".

Porém, a História demonstra que um determinado povo, que tem a pretensão de habitar um determinado território, e viver sem a opressão de outros, deve organizar suas relações políticas de cooperação. Não há registro de nenhum agrupamento humano que tenha prosperado sem a organização de um governo. Até o termo "civilização" pressupõe um certo grau de organização sócio-político-cultural, com a divisão interna do trabalho e a consecução de objetivos comuns. Aqueles que não se organizam politicamente e agem sem cooperação e solidariedade são facilmente dominados por grupos mais fortes e/ou numerosos -- sucumbem e perecem diante da competição por riquezas sociais e recursos naturais.

Noam Chomsky, um dos mais respeitados professores do Massachusetts Institute of Technology, filho de imigrantes anarquistas ucranianos erradicados nos Estados Unidos da América desde o começo do século XX, em um debate com o ex membro do Partido Comunista, o francês Michel Foucault (falecido professor de filosofia, psicologia e história da Université Lille e da École Normale Supérieure), depois de muito debater o tema anárco-comunitário versus comunismo, admitiu que o atual estágio de organização social em torno da figura do Estado possibilitou à humanidade uma melhoria extraordinária na qualidade de vida das populações. Acrescentou, ao final do debate que, pondo-se fim à figura do Estado, as populações estariam sujeitas à ação da mafia e do crime organizado internacional que, dispondo de recursos financeiros e de armas, poderiam desestabilizar não só as pequenas comunidades, mas aquilo que se entende por "nações".
  • CRÍTICAS PONTUAIS AO LIBERTARIANISMO
A primeira e óbvia crítica ao libertarianismo é aquela que constata haver um projeto de submissão das populações às formas empresariais de organização das relações sociais. Nem se pode cogitar a possibilidade de um exército privado -- pois isso seria uma mera reprodução do Estado Absolutista, que concentrava poderes militares nas mãos dos aristocratas e do monarca --, nem se pode cogigar uma organização paramilitar com interesses determinados apenas pelo lucro. Pois. Como é sabido, a teoria libertarianista não promove, antes, pelo contrário, repele qualquer compromisso solidário de bem estar dos povos. Apenas os interesses individuais são garantidos. Conseqüência de uma deturpação do pensamento neoliberal, o libertarianismo foca sua atenção apenas no valor liberdade; e se essa liberdade for garantida aos acionistas, tudo é permitido, inclusive a submissão de uma população desarmada ou desorganizada militarmente.

Essa mesmo desprendimento do libertarianismo com o bem estar populacional, levanta a segunda observação crítica: ele atenta contra os serviços de primeira necessidade que não geram lucros. Vejam-se alguns exemplos: (a) a construção de estradas pode ser considerado um investimento econômico, e pode trazer bons lucros, se for direcionado ao escoamento da produção e da organização de acesso às empresas, fábricas e comércio, mas as populações de baixa renda se veriam desprovidas desse recurso, a não ser pela atitude caridosa dos proprietários dessa "nova organização política", ou se eles mesmos as construíssem; (b) os serviços públicos de saúde desapareceriam, dando lugar a um tipo de prestação lucrativa que só admitiria o acesso a esses serviços por aqueles que pudessem pagar por eles; (c) quem não pode pagar por segurança, fica sem polícia, sem bombeiros, sem salva-vidas, e se você acha que a polícia pública é violenta (mesmo vinculada a preceitos constitucionalmente assegurados), imagine uma polícia que é comandada apenas pelo dinheiro - já ouviu falar na expressão capanga, ou jagunço?

Em terceiro lugar, existem aqueles argumentos sobre a corrupção e a burocracia. Até onde se sabe, a corrupção é um mal registrado pela humanidade desde tempos imemoriais, e ela florece em igual proporção à omissão dos administrados, não sendo um privilégio de nenhuma sociedade em particular. Se no Estado Democrático, que pressupõe a participação da população nas decisões governamentais, há corrupção, pense nesse "novo modelo", no qual não há participação! Seria a corrupção em absoluto, pois não haveria como averiguar o bem comum -- apenas o bem empresarial. 

Na realidade, o bem comum seria somente a medida do que é consumido; isso levaria à seguinte hipótese: havendo consumo, há bem estar, continua-se com a prática; não há consumo, não há bem estar, ajustam-se as práticas. Entretanto, o bem estar não é meramente o ato de consumir produtos; é o ato de poder participar igualitariamente de uma Sociedade, na produção de cultura, de política, e de bens também, além de outras coisas. Além do mais, qual o destino de quem não puder consumir aqueles produtos citados acima (educação, saúde, transporte, segurança)?

Convém salientar, por falar em Democracia, que Suécia, Suiça, Finlândia (...) são Estados democráticos, quer dizer, não existe só a democracia à brasileira, ou à yankee. Não existe democracia só em países pobres. E todos os povos ricos e desenvolvidos preservam as suas instituições estatais, protestam contra os desmandos e abusos, cobram e fiscalizam seus representantes.

Finalmente, porque faz-se tarde, a despeito de ainda haver uma tendência de sobrevalorização do modelo norte-americano de cultura política -- negligenciando várias outras experiências sócio-políticas ao redor do planeta --, a teoria tem se alastrado em alguns círculos acadêmicos dominados pela elite econômica e pelos seus seguidores. Faz parte de um sistema de crenças, que não propõe efetivamente nada de incrível e nem de novo (considerada sua existência paralela ao neoliberalismo), visto que desde os anos de 1980 que existem discussões sobre a privatização de todos os espaços públicos e livres do mundo.
  • CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ante o exposto, ficam alguns questionamentos: como vai se chamar a instituição que surgirá em substituição ao Estado? Quem mandará nela? Pode-se pensar em BRASIL S/A? Quem seriam os acionistas? Quanto você tem no bolso? Hum...

O que leva à seguinte conclusão: o modelo libertarianista garante a máxima liberdade para aqueles que detém recursos econômicos, e a máxima opressão aos desprovidos. A proposta é uma deturpação do conceito de emancipação.

O conceito de emancipação trabalha com a ideia de mudança social que promova a melhoria das condições de vida da população, como um todo, por meio do sopesamento de valores compartilhados a nível social. As sociedades que conseguiram avançar tecnologicamente, economicamente e garantiram melhores índices de bem estar às suas populações foram exatamente aquelas que alicerçaram suas instituições na solidariedade, no controle e na fiscalização de seus Estados nacionais. O resto é presunção de economista.

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P.S.: Talvez essa ideias sejam bastante sedutoras ao jovem desavisado, ou àquele aluno de Direito meio preguiçoso -- que não gosta de estudar Ciência Política, Filosofia, Sociologia... que tem pavor de Direito Constitucional etc. Talvez, a ideia de acabar com vários ramos do Direito fosse até interessante, principalmente para o exame de Ordem... Mas, no fim disso tudo, imagine a concorrência para protestar um cheque! #ficaadica

sexta-feira, 8 de junho de 2012

O desperdício no sistema de produção capitalista e o papel do Estado

Muito se fala sobre os gastos do Estado Social e da necessidade de diminuir a participação deste não só nas atividades que desempenha, mas no exercício de regulamentação das atividades privadas. Os fundamentos para essas colocações seriam a sua ineficiência e o desperdício das ações públicas, e a maior habilidade dos privados (leia-se: empresas) na consecução dos serviços e atividades públicas. Porém, por detrás desses argumentos há um não tão evidente interesse na desregulamentação e exclusão do Estado, em favor do poder econômico ou poder das grandes corporações, em detrimento dos interesses sociais.


De fato, uma das maiores críticas que pesa sobre o Estado de Bem-estar Social é aquela que versa sobre o péssimo emprego dos recursos econômicos colocados à disposição do Estado pela Sociedade, arrecadados através da função tributária, e gastos através da intervenção estatal nas atividades econômicas e serviços colocados à disposição do público. 

Essas críticas se colocam antagonicamente à tese de que essa estrutura semi-intervencionista estatal possibilitaria uma redistribuição de recursos econômicos, por meio da captação de recursos e respectivos repasses, tanto a nível de infraestrutura econômica - o que promove o desenvolvimento das atividades empresariais, em momentos de crise de investimentos e excesso de liquidez -, e a garantia de serviços mínimos e estratégicos - que dão continuidade e estabilidade à vida social. Seria desse suposto equilíbrio, entre o público e o privado, que surgem os direitos sociais caracterizadores dessa forma de organização político-jurídica.

A hipótese acima ventilada confronta-se com as teorias de não-intervenção da lex publica sobre a lex mercatoria, tendo em vista um conflito de lógicas entre os interesses que seriam realmente "públicos" sobre aqueles que seriam iminentemente "privados". Porém, o que o modelo estatal sob comento preside é a criação de um espaço "social", que se coloca entre essas duas concepções, pela simples noção de que a "riqueza social", compreendidos entre a produção e a moeda, e os bens imateriais, neles inclusos os valores sociais e os objetos culturais, são bens sociais, o que significa dizer que pertencem à Sociedade - o esforço coletivo para a melhoria das condições de vida de todos os membros da Sociedade.

Ora, a ideologia (neo)liberal argumenta que o Estado dito "intervencionista" aumenta o desperdício de recursos naturais e econômicos, diante do problema da corrupção - que estaria inegavelmente ligado à atividade burocrática dos agentes e funcionários públicos. Esse argumento é válido, mas ele não se aplica apenas ao Estado. O desperdício e a ineficiência são sistêmicos: o sistema de produção capitalista pressupõe que as empresas estarão constantemente aumentando a sua produção e lucratividade, expandindo mercados e reafirmando sua posição diante de demandas que também, necessariamente devem se expandir, mesmo que os bens ofertados pelo sistema não sejam úteis ou necessários - como é o caso dos produtos supérfluos. Ainda, a eficiência propugnada por esse discurso existe apenas em modelos ideais de produção, que pressupõem argumentos como a "teoria das expectativas racionais" e os "equilíbrios de concorrência entre os agentes produtivos", que simplesmente não existem na prática - quer pelo comportamento irracional do mercado financeiro especulativo, quer pela existência de deformações concorrenciais (trustes, cartéis e monopólios de mercado). Isso porque a lex mercatoria atende apenas aos interesses do próprio mercado: a ideia de que as forças produtivas seguem uma lógica própria - o eterno apelo à "mão invisível" smithiniana. Ainda, a corrupção não é privilégio de funcionários e agentes públicos, mas um problema humano que, tendo em vista a busca pela satisfação de interesses e pela realização de desejos materiais, atinge a humanidade como um todo - diante de normas éticas, colocadas pelas comunidades, que são em maior ou menor grau desrespeitadas pelos indivíduos, em seu convívio.

Ocorre que, o funcionamento "natural" do mercado, discursivamente falando, apela a dois princípios que seriam caracterizadores da "natureza humana", em função da escassez: o egoísmo e a mesquinhez. De plano, é plenamente discutível se esses são dois valores elementares do ser humano, tendo em vista não a condição gregária do homem, mas mesmo a necessidade de solidariedade entre os indivíduos, para o atingimento de objetivos e interesses comuns - que é empregado, até mesmo, nas mais recentes correntes da gestão empresarial, que colocam o funcionário como um colaborador da empresa, por exemplo. Isso porque, mesmo se forem analisados os argumentos antropológicos da formação das Sociedades (independentemente se foi um acaso, ou força do destino), não há nenhum indício de que a liberdade de cada indivíduo prevaleceu ou prevalece sobre o desejo de igualdade de oportunidades trazido pela solidariedade humana. 

Se o sistema for observado de outra perspectiva (ecologia versus economia), vê-se que ele torna necessário  que haja um consumo crescente, o que impõe a não durabilidade dos produtos - a procura por bens deve ser exponencialmente positiva, para que seja também crescente a produção - o que pode ensejar a defesa da "eficiência" produtiva, mas não de uma eficiência "ambiental". Nesse sentido, à produção de bens e oferta de serviços está associada a fabricação de desejos (o fetiche da mercadoria), por meio das campanhas de marketing - um processo artificial de produção de necessidades, que deturpa a própria noção de "riqueza social". Além disso, o papel da mídia na criação dessas "falsas necessidades" está estruturado sistemicamente na requisição efetuada pelos produtores de bens e fornecedores de serviços, e não nos clamores de dignidade que advém da Sociedade.

Por fim, basta lembrar que, ao longo dos séculos, o Estado tem sido garantidor dos privilégios inerentes à propriedade, e tem respeitado a liberdade industriosa dos indivíduos que detém o poder econômico. Mas esse poder foi limitado, ao longo das reformas pelas quais tem passado o sistema, quer aquelas relativas exclusivamente à manutenção ideológica que dá suporte ao capitalismo (superestrutura), quer aquelas relativas ao apoio econômico dado à iniciativa privada. No primeiro caso, foi exigido o sacrifício da liberdade absoluta, em nível contratual, por meio de uma melhor proteção contra os abusos inerentes ao exercício do poder econômico. O segundo, a solidariedade exigida de toda a população, através do avanço no patrimônio de capitalistas e trabalhadores, para a manutenção do parque industrial, nos momentos de crise (como é o caso recente do bail out norteamericano, diante da crise financeira de 2008 - causa exclusivamente pelas instituições financeiras que, dentre outras práticas, emitiram títulos podres para capitalizar seus investimentos).

Diante dessas colocações, é preciso compreender que os processos de tomada de decisão jurídico-políticos não podem seguir apenas uma linha diretriz; não se pode privilegiar apenas o discurso da liberdade e da eficiência, nem apenas o da solidariedade e igualdade. O exame acurado da situação do desperdício não é um problema específico do Estado Social, mas um desafio à humanidade, supondo que não prosperará o sistema planificado de produção. Muito menos é salutar ou evidente pensar que o desperdício será solucionado apenas pelas forças econômicas do mercado. Preservar a livre iniciativa e os valores sociais do trabalho, com os objetivos de defender a soberania produtiva e a melhoria da qualidade de vida da população: eis um sistema equilibrado, que pressupõe a ponderação do jurista na escolha da melhor ética.

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Antônio T. Praxedes é professor dos cursos de graduação e pós-graduação em Direito, na Universidade de Fortaleza, e do curso de graduação em Direito, na Faculdade Christus.

sexta-feira, 27 de abril de 2012

A questão agrária e a reforma agrária: críticas ao posicionamento da Avaaz.org - Por Gustavo Liberato

Caríssimos,

Atendendo a convocações e instâncias dos amigos Torquilho, Graça e Giovani, adentro esta comunidade para partilhar uma reflexão que me tomou ares de indignação, pela facilidade com que apresentada e pela "candura" justiceira que veicula.

De logo informo ao leitor que não advogo interesses de "criminosos de fazenda" (como se em algum grau fossem distintos dos demais) ou de escravocratas que reificam a condição humana, o que abomino - como se precisasse dizê-lo aos poucos que me conhecem. Mas devo atender à convocação da razão, acima de tudo, bem ao gosto de um Alber Camus, no seu "La Peste":


"Pero hay siempre un momento en la historia en el que quien se atreve a decir que dos y dos son cuatro está condenado a muerte. Bien lo sabe el maestro. Y la cuestión no es saber cuál será el castigo o la recompensa que aguarda a ese razonamiento. La cuestión es saber si dos y dos son o no cuatro".

Trata-se de um e-mail advindo da comunidade Avaaz.org, sempre muito bem quista pelo autor destas linhas, que, contudo, destoou de seu procedimento usual. Cuida-se de uma convocação à pressão sobre os parlamentares brasileiros no sentido de se aprovar uma Proposta de Emenda à Constituição - PEC que prevê o confisco, para fins de reforma agrária, das terras onde encontrado trabalho escravo. "Nada mais justo!", poder-se-ia dizer em rápida e irrefletida análise; outrossim, cumpre deixar o emocional um instante de lado, pois, como dito por Umberto Eco em seus "5 Escritos Morais":

“Diverso é, por outro lado, tentar definir 'função intelectual'. Esta consiste em distinguir criticamente aquilo que se considera uma aproximação satisfatória do próprio conceito de verdade – e pode ser exercida por qualquer um, até mesmo por um marginal que reflete sobre sua própria condição e, de alguma maneira, a expressa, do mesmo modo como pode ser traída por um escritor que reaja aos acontecimentos de modo passional, sem impor a si mesmo a decantação da reflexão”.

A "Função Intelectual" é parte indissociável do ser cidadão, e não exclusividade dos intelectuais, como a tautologia poderia fazer crer à primeira vista. De fato, o que se deve alertar para essa proposta é bem perceptível, pois sob as vestes do justiciamento contra a prática criminosa da redução de um ser humano à condição análoga à de escravo, há um palpável interesse de instrumentalização política, como se pode ver a seguir:

I - Passa-se a impressão da inexistência de normas no país, o que deixaria impunes os fazendeiros criminosos:

Ora, se isso for verdade, então inexiste possibilidade de seu julgamento nas esferas criminal e civil. Contudo, tanto os tipos penais existem (v. art. 149, do Código Penal - com apenação de 2 a 8 anos de reclusão no tipo básico, acrescido de multa) quanto se faz possível a responsabilização civil (inclusive com a penhora do bem, mesmo se considerado bem de família, caso o trabalhador seja visto como doméstico - v. art. 3º da lei 8.009/90).

II - Induz, nos arroubos de momento, à ilusão de que a vítima do crime seria beneficiária do confisco:

Essa hipótese não deve ser cogitada, pois se trata de ilação falsa, dado que o bem confiscado seguiria para fins de Reforma Agrária, e não pagamento de indenização às vítimas. É de se ver como se pretende obter, sempre indignamente, dividendos político-eleitorais da reificação alheia! Se o móvel da proposta é a proteção das vítimas, por que não lhes amparar processualmente (via Ministério Público e Defensorias) para fazer cumprir a legislação, inclusive civil, com o ressarcimento de danos materiais e morais? Por que entregar a propriedade à União para que "Ela" frua de dividendos políticos com o populismo? Registro novamente: a propriedade bem deveria ser penhorada para fins de pagamento das dívidas decorrentes de atos ilícitos cometidos contra as vítimas (uso conforme à legislação), e não para uso eleitoral.

III - Consideração de ordem constitucional:

Propõe-se a discussão de uma PEC que previria, a bem da função social da propriedade, mais uma restrição dessa. Contudo, porquanto já assinalado acima, resta evidente que seria necessário um juízo de ponderação, o qual, se devidamente conduzido, não autoriza a conclusão exposta. Com efeito, estar-se-ia instrumentalizando (a bem de certos interesses político-eleitoreiros) o patrimônio que deveria assegurar o valor das indenizações a serem pagas às vítimas do crime. Como, então, realizar a função social da propriedade se o primeiro prejudicado será o próprio vitimado? Simplesmente não faz sentido, a não ser se considerado o interesse de capitalização eleitoral.

Convém não acalentar ilusões; o teatro das sombras midiático e de mercado já se movimenta no sentido eleitoral de 2012 e 2014. Somente com o uso da razão é que se pode levar a efeito a missão central da cidadania: filtrar criticamente tudo o quanto lhe é apresentado como bom, justo e verdadeiro e, por vezes sem conta, frustrar-se, descobrindo o que de fato é e não é, mas sempre evitando o maldito processo de iconização da cidadania, tal como adverte o Prof. Friedrich Müller.

Por igual convém encerrar de logo, dado que não se deve abusar da cortesia feita pelo convite, mas talvez deixando e aberto a oportunidade de novas reflexões e críticas.

Agradecendo a oportunidade, firmo-me em fraternais saudações,

Prof. Gustavo Liberato
*
Gustavo T. Liberato é professor dos cursos de graduação e pós-graduação em Direito, na Universidade de Fortaleza. Ministra as disciplinas relativas ao Direito Constitucional.

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

Elaboração de uma crítica à teoria da sobrevivência do mais apto

Influenciado pela publicação de Thomas R. Malthus, "An Essay on the Principle of Population", Charles Darwin estruturou o seu livro "On the Origin of Species" (1859), baseando-se no conceito de sobrevivência do mais apto, explicando como se dava a evolução das espécies através da seleção natural. Nada contra as ideias inovadoras do biólogo inglês, que compuseram a transição da tradicional explicação teológica da origem da vida, para incorporar a científica à cultura ocidental. O problema é pensar nessa teoria como um mandamento ou orientação geral ao comportamento da espécie humana.


A sobrevivência do mais apto, num cenário de competição pela sobrevivência diante de recursos escassos explica como os indivíduos mais aptos conseguem se adaptar às adversidades, garantindo a replicação de seu material genético. Em termos biológicos, essa teoria de como houve a diferenciação entre as espécies com ancestral comum ultrapassa a concepção criacionista, e traz para o plano científico aquilo que antes pertencia ao campo metafísico/religioso.

Entretanto, em termos sociais, ou sócio-políticos, empregar essa teoria nas sociedades de competição capitalista desumaniza os processos de integração e inserção sociais. Olhar para os "mais fracos" como se o seu estado de miséria fosse uma inevitável consequência biológica, inclusive com a noção de que o seu conjunto genético teria influenciado o seu status, é ignorar que a dinâmica de convivência social não é regida por leis biológicas. Não existem apenas as chamadas "leis naturais" ou "racionais" para explicar o comportamento humano - nesse sentido, ver a crítica à teoria das expectativas racionais de Friedman, ou mesmo as concepções sobre a imprevisibilidade dos mercados e do comportamento econômico, elaboradas 40 anos antes por John Maynard Keynes; o ser humano comporta-se também de maneira imprevisível, emocional, instável.

Os socialmente marginalizados pelo sistema de produção, os miseráveis, os despojados... são sujeitos de uma realidade social, e não natural. O sistema de produção econômico atual não é uma consequência de leis da natureza, senão a opção adotada por aqueles que participaram na tomada de decisão de como organizar a sociedade - atendendo aos seus próprios interesses, durante o curso da História.

Até mesmo o liberalismo econômico, que floreceu se aproveitando dessa leitura do evolucionismo, teve que se readaptar à conjuntura sócio-econômica do século XX, dando origem ao Estado de Bem-estar social. Mesmo se observadas as teorias da Administração contemporâneas, pode-se constatar que as empresas se beneficiam de um elevado grau de comprometimento com o bem-estar e a melhoria das condições de trabalho; além disso, os trabalhos sociais por elas desenvolvidos tem por objetivo aumentar a confiança dos cidadãos no modelo social atualmente adotado, melhorando a convivência humana: isso demonstra como a cooperação é um fator interno e externo de sucesso da gestão empresarial.

Imaginar que os indivíduos são absolutamente responsáveis pelo seu destino é reconhecer que o ser humano faz suas próprias escolhas - sendo esse um componente importante para o "esclarecimento". Mas abandonar os indivíduos a sua própria sorte, sem os sentimentos de solidariedade e fraternidade, significa, a um só tempo, a coisificação do ser humano e a desumanização da espécie.

quarta-feira, 16 de junho de 2010

Em busca (de vestígios) do Socialismo brasileiro

O Socialismo surgiu como uma narrativa crítica ao contexto de exploração capitalista europeu. Desde sua conceituação utópica, até as influências analíticas que o transformaram numa disciplina de análise econômica, muitos foram os teóricos que se debruçaram diante da temática "injustiça social de natureza econômica". A influência do socialismo enquanto escola prático-teórica é claramente sentida na estruturação da Social-democracia europeia, cujos reflexos se fizeram sentir na redação dada à Constituição brasileira de 1988 - e é essa influência que pretendo comentar.

A priori, precisamos compreender que o Século XX foi um período dinâmico e fértil no campo da política / ideologia: o nazismo (Nationalsozialismus), o fascismo (de Salazar, em Portugal; de Franco, na Espanha; de Mussolini, na Itália; de Hiroito, no Japão) como expressão do poder da direita (elite capitalista); o capitalismo de Estado / comunismo (de Stalin, na União das Repúblicas Socialistas Soviéticas; de Mao Tsé Tung, na República Popular da China). Mais recentemente: o intervencionismo militar ao redor do globo, por meio do neoconservadorismo norteamericano (de Ronald Reagan e George Bush); a hegemonia russa em parte do leste europeu e Ásia (de Mikhail Gorbachev); da influência israelense no Oriente Médio e o surgimento do fanatismo islâmico como forma de resistência e, ao mesmo tempo, alternativa contra a influência ocidental.

Durante aquele século, as tecnologias de comunicação foram intensificando os contatos entre os povos de tal forma, disseminando idéias e novas formas de estar/conviver, que hoje temos essa aldeia global exatamente como reflexo desse avanço. A mídia (o meio) ajudou não só a disseminar essas idéias, mas sobremaneira, estabelecer padrões valorativos que se exprimiram por meio de práticas totalitaristas, das quais a mais conhecida é a política da Guerra Fria - como conseqüência natural da luta neoimperialista entre norteamericanos e soviéticos.

E o que a Guerra Fria tem a ver com a Constituição da República Federativa brasileira de 1988? Como explica a história, a Guerra Fria tinha como um dos principais pilares argumentativos a defesa da democracia e da liberdade de expressão. Além disso, as crises sociais européias e a necessidade de proteger aquele espaço territorial contra o avanço do então-chamado "comunismo" fizeram com que se construisse um modelo de proteção social (de bem estar social), que fosse capaz de justificar a continuidade do modelo de produção capitalista.

Neste ponto, quem estuda / estudou Direito Constitucional já "matou a charada". A Guerra Fria teve uma influência tremenda sobre a "nova" Constituição brasileira, visto que, além de trazer de volta a retórica democrática, trouxe também o fim da censura, uma maior intervenção do Estado na Economia (pela via do bem estar social), e assim por diante. Essas mudanças, que equilibraram a livre iniciativa com os valores sociais do trabalho (art. 1º, inciso IV da CF/88). O resultado disso é um equilíbrio entre o liberalismo e o socialismo: um país capitalista que investe e protege o bem estar social; os reflexos disso encontram-se esparsos na Constituição, mas podem ser encontrados em algumas áreas bastante específicas, como no capítulo II do Título II e na Ordem Econômica Constitucional, a partir do art. 170.

Mas o que tem a ver Social-democracia com Socialismo? Esta pergunta é mais complicada de ser respondida, pelo que é necessário apelar à boa-fé do leitor: tudo. Ela foi uma proposta de equilíbrio, e como tal, tentou congregar a propriedade privada dos meios de produção, de um lado, com a melhoria das condições de prestação do trabalho e da qualidade de vida dos trabalhadores, de outro. Qualquer dúvida, é só fazer uma comparação entre o "decálogo" (os dez itens da 2ª parte) do "Manifesto do Partido Comunista" de Karl Marx, de 1948 e o art. 5º e 6º da Constituição Federal; os pontos em comum seriam: desapropriação da propriedade latifundiária improdutiva (função da propriedade privada), imposto progressivo (sobre as grandes fortunas, sobre a propriedade urbana desabitada ou não-ocupada), políticas de fomento e assistência estatal para o desenvolvimento social, luta contra a discriminação entre trabalhadores rurais e urbanos, educação pública e gratuita às crianças e a proibição do trabalho infantil.

Sem dúvida, existe grande influência da perspectiva socialista na social-democracia. Embora esse perspectiva política tenha representado pouco mais que uma espécie de propaganda (no sentido preciso da palavra), foi um alento à população brasileira, no sentido de apresentar uma alternativa ao capitalismo selvagem que perdurou até o fim da ditadura militar 1964-1986.

Entretanto, ultrapassado o antagonismo existente entre norte-americanos e soviéticos, com o fim do muro de Berlim e a queda do modelo stalinista, a social-democracia vem se convertendo em neoliberalismo, não só em seu nascedouro europeu, mas na foz latino-americana, nomeadamente, no Brasil. A crise política identitária, que se traduz na ausência quer de uma direita, quer de uma esquerda bem definidas, é o reflexo do desmonte do Estado de bem estar social, pelo desaparecimento ou desnecessidade de uma social-democracia.

Portanto, o que se observa é o desaparecimento paulatino da retórica socialista, em substituição ao vazio argumentativo de um Estado regulador e não-interventor. Essa nova fase não é confusa, é de transição, e aos "pensadores novos" (os jovens, estudantes), compete redescobrir um caminho alternativo, socializante, integrador, justo e solidário, capaz de vencer os desafios da nova ordem mundial. É preciso reinventar o socialismo, desta feita, "à brasileira".

sábado, 14 de março de 2009

Reunião do G20 em Londres: o Sul global e as novas relações internacionais

Com o avanço do processo de globalização do sistema mundo de produção capitalista, deslocam-se as linhas abissais de apropriação/violência e regulação/emancipação. Essa é uma metáfora de Boaventura de Sousa Santos para explicar como estão se desenvolvendo as novas e algumas vezes perigosas dinâmicas neste início do século. A contínua expansão dos centros urbanos e o novo processo de destruição da cultura não-urbana (agrícola e de subsistência) vai alterando o panorama cultural, econômico e, como não poderia deixar de ser, a configuração do sistema de concertação internacional.

Nesse âmbito, é preciso reconhecer um duplo efeito: enquanto a desenvolvimento ou "progresso industrial" vai alcançando a periferia e semi-periferia do sistema mundo, a apropriação e violência começa a se reproduzir no núcleo duro do sistema. Esse câmbio não tem apenas uma natureza puramente econômica, embora possa-se afirmar que uma das principais forças a mover essa roda seja exatamente a deslocação da produção para o Sul. Mas o fato que nos interessa aqui é observar que houve uma mudança no discurso ou retórico-discursiva quanto ao papel dos países mais pobres dentro desse sistema.


Hoje e principalmente depois da nova crise econômica que se iniciou nos EUA no ano passado, os países do Norte declaram abertamente a necessidade de uma aliança com outros mercados e blocos econômicos, gerados principalmente pelos mercados e blocos econômicos asiáticos e latino americanos - que enfraqueceu a hegemonia Zona Euro e Norte-americana. É evidente que essa nova influência já havia provocado turbulências globais, como são exemplos a crise econômica que se iniciou na Argentina no fim dos anos 1990s, no México e Rússia no início dos anos 2000 e assim por diante. Ainda, depois da entrada da China na OMC, o hino em torno de um "livre mercado" e do fim das barreiras protecionistas colocaram em cheque não apenas os modelos de proteção do Norte, como interligaram e estabeleceram um equilíbrio na distribuição de riquezas ao redor do globo. Pena que essa distribuição de riquezas se deu apenas ao nível do Produto Interno Bruto, sem maiores efeitos na distribuição per capita real mas, pelo contrário, quer considerando os países do chamado "B.R.I.C.", quer os "Tigres Asiáticos", não é possível se dizer que se tenha construído um modelo de proteção social como o do Estado Providência europeu (que operou entre os anos 1950-1980).

Entretanto, mesmo diante dos dissabores trazidos pela contínua acumulação de riquezas (em nível interno), convém dizer que essa distribuição de riquezas ou recursos financeiros deu um novo fôlego aos países do Sul, principalmente ao nível das negociações internacionais sobre o comércio mundial. Tendo em vista que esses mercados menos desenvolvidos continuam a importar a tecnologia produzida no Norte e a exportar raw materials (agroindustriais e minerais) para esses mesmos mercados, o trade off é positivo do ponto de vista político, devido à maior independência em diversas áreas, principalmente na dos gastos sociais. Com maior poder de barganha, torna-se possível discutir melhores e menores tarifas sobre os produtos, garantindo muitas vezes uma valorização (positiva) na cotação dos principais produtos das balanças comerciais desses países.

Tanto isso se comprova, quanto se expressa na atual reunião do G20 em Londres, neste fim de semana. O Primeiro Ministro britânico Gordon Brown foi claro em seu pronunciamento esta manhão, quando afirmou que é preciso uma cooperação global para a regulamentação do mercado mundial - menos livre, portanto - e que é preciso haver um plano mundial de investimentos estatais nesta mesma antes livre e desregulamentada Economia Global.

Portanto, a luta agora é para que o novo modelo de regulação não sirva apenas para garantir privilégios aos antigos protagonistas do comércio mundial (o eixo anglo-saxão e a Eurozona). Os novos atores nesse cenário - os antigos figurantes - precisam tomar partido dessa nova configuração política e abandonar as antigas práticas subservientes do início do período pós-colonial. O momento agora é o de uma Nova Nova Ordem Mundial, menos neoliberal, mais intervencionista e mais emancipadora. O problema será o modelo de desenvolvimento desejado...

sábado, 7 de fevereiro de 2009

Trabalho com dignidade: commodity escassa

Um dos problemas mais sensíveis da humanidade é o da relação de trabalho. Seja porque o trabalho é necessário à manutenção da vida - a luta pela vida -, seja porque persiste a idéia de que alguns poucos tem o direito de sobreviver às custas de muitos -- dinâmica exploradores e explorados --, as teorias e os conceitos sociais acerca do mundo laboral são dos mais complexos e controversos que existem nas "ciências" sociais humanas.

De fato, um dos problemas mais profundos em torno dessas questões de categorias e contextos é também o mais difícil de encontrar resolução: a questão ideológica. Por isso, diversos autores de correntes diversas (Zyzek, Habbermas, Boaventura, Giddens, Castells, para citar alguns) levantam a problemática da ideologia na construção das "ciências" sociais e humanas, porque é exatamente nesse campo de batalha que as práticas sociais são justificadas e, também, são coroadas estas ou aquelas formas de regulamentação social. Para completar essa panóplia, estão duas ferramentas elementares: o caráter auto-biográfico dessas ditas "ciências" e o não menos importante aspecto auto-referencial. Esse círculo vicioso encerra em suas fronteiras toda forma de apelo popular e democrático que se encontra além das fronteiras anti-democráticas da Academia (ou das universidades, como queiram).


Por isso, o conceito de trabalho digno permanece vazio de conteúdo axiológico: o vácuo conceitual é incapaz de oferecer qualquer solução valorativa que esteja de fora da dinâmica auto-referencial e auto-biográfica. Talvez seja por isso que um dos apelos mais dramáticos à proteção dos direitos humanos do trabalho seja a questão da cultura laboral. Mas até nesse âmbito encontra-se uma questão incontornável: a exploração entre classes sociais também é um dado histórico-cultural, e a dinámica inter-classes também surge como um fator determinante e náo apenas como construto social, no qual se justificam uma série de direitos (protetores de privilégios) sobre os bens de produção de riquezas, que amparam a continuidade dessas relações sociais, tais como o direito à herança, às situações de oligopólios e cartéis, para não citar o elementar e quase sagrado direito à propriedade privada dos meios de produção.

Nesse contexto de uma constante apropriação e privatização de todos os espaços aonde ocorre a vida (e a vida social), o trabalho humano se afirma cada vez mais como uma mercadoria. O exemplo mais vivo disso são os contratos de terceirização de mão-de-obra e os deslocamentos, quando os trabalhadores de uma empresa são cedidos e trabalham subordinados à administradores de empresas que mantém contratos de serviços com os reais empregadores da mão-de-obra. Outro exemplo das distorções que ocorrem na prestação do trabalho e que afetam a segurança dos trabalhadores são os chamados trabalhadores autônomos falseados, quer dizer, pessoas que estão sujeitas às características que determinam uma relação laboral, mas que executam suas atividades ao desamparo das normas jurídicas aplicáveis ao caso.

Contudo, observe-se que estamos a discutir as situações exuberantes, isto é, os mercados de trabalho aonde não são tolerados os casos de escravidão e servidão. Mesmo que essas distorções existam, os ordenamentos jurídicos desses mercados ainda conseguem punir e tornar clandestino e pouco rentável a sua existência, pela criminalização dos grupos que reduzem pessoas humanas à condição desumana da subserviência absoluta.

Entretanto, uma das preocupações mais sérias - mas que ainda não obteve nenhuma resposta à altura de sua complexidade - é saber o que acontecerá com os direitos sociais diante da globalização do sistema mundo de produção capitalista? Essa pergunta não é simples ferramenta retórica. Ela demonstra que os mercados de trabalho mais regulamentados têm seus níveis de competitividade econômica abalados pelo deslocamento da produção aos países com menor proteção social e, consequentemente, menores custos produtivos. Se esses mercados são standards (paradigmas) de proteção social, é possível e lógico de se supor que haverá uma corrida pela desregulamentação dos direitos sociais tantos nos países ricos, quanto nos países pobres (já possuidores de menores níveis de proteção social).

Todavia, essa corrida pela desregulamentação arruinará o direito dos trabalhadores, mas é uma WIN-WIN situation para os grandes capitalistas, principalmente para as multinacionais. Isso porque a deslocalização de empresas e da produção são praticas da indústria. Em outras palavras, o que quer que requeira um aumento de competitividade, em última análise, ganha o capital (pela manutenção e aumento do lucro) e perde o trabalhador (porque diminui seu poder de compra e sua capacidade de reprodução e sobrevivência). Ainda, não é prudente esquecer que os trabalhadores investem na especialização e no aprimoramento de novas formas de produção, visto que cada vez mais os investimentos em aprendizado e inovação partem da classe trabalhadora -- vez que o Estado não é mais garantidor da educação de nível superior.

Portanto, é possível concluir que estamos diante de um movimento pela (neo)liberalização dos direitos sociais. A curto prazo, essa corrida garantirá o consumo interno e a circulação de riquezas. Mas a médio e longo prazo, em toda situação de crise de sobre-produção e de especulação financeira, as populações não terão o suporte de seguridade estatal a garantir a manutenção mínima da dignidade material que antes era proporcionada pelas contrapartidas assistenciais do Estado (pagas com recursos tributários e fiscais). Foi por isso que algumas economias emergentes, como o Brasil, adotaram sistemas previdenciários e de assistência social com receitas diversas e, do ponto de vista da seguridade social, estipularam a contribuição patronal como suplementar à do trabalhador, na manutenção de fundos e caixas de apoio ao trabalhador desempregado e aposentado.

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Todos os países sofrem com a recessão. Enquanto isso, em Mônaco e Andorra...

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

A exuberante e inevitável flexigurança

Desde o final dos anos 1990s, juslaboralistas de quase todo o planeta têm discutido as novas reformas normativas que regem os contratos de trabalho. Apesar de haver uma evidente clivagem entre duas grandes correntes antagônicas acerca da flexibilidade e da segurança da relação contratual, uma terceira via desponta no horizonte: a da flexigurança européia. Isso significa que os atuais trabalhos das comissões sobre emprego e segurança social nos países membros da UE procuram articular um novo modelo de proteção social que consiga equilibrar a facilidade do despedimento e contratação com algumas regras assistencialistas e de seguridade social.

Nesse contexto, a Comissão Européia é a autoridade com maior ânimo de encaminhar a proposta de flexigurança e o desmonte dos direitos laborais dos trabalhadores comunitários. Os trabalhos desse órgão comunitário são facilitados por razão de dois fatores decivos: pela concentração do processo legislativo na “capital” da União e pelo tecnicismo aplicado no processo decisório. Em ambos os casos, os cidadãos vêem-se excluídos da elaboração desse novo modelo. Primeiro, porque o distanciamento físico entre o centro de Poder e o cidadão é um claro empecílio à efetiva participação democrática. Segundo, porque os parâmetros que são aplicados na decisão jurídico-política não oferecem espaço de manobra para a inclusão de novas propostas – a mudança é um imperativo categórico (faça isso). Finalmente, porque esse deficit democrático aumenta pela falta de mecanismos jurídicos efetivos do controle de constitucionalidade das decisões dos órgãos comunitários.


Contudo, deve-se dizer que todo processo legislativo encontra por mote principal o apoio ou repúdio da opinião pública. Mesmo que a atual configuração do sistema de representação democrática esteja centrada em decisões de caráter técnico jurídico-econômico, o protesto social tem alcançado alguns canais de comunicação social para protestar contra as mudanças propostas por Bruxelas, atrasando o retrocesso legislativo ali proposto.

Mas existem entraves a serem considerados nessa resistência popular. O primeiro deles é o processo histórico em si. A preservação dos costumes e, dentre eles, a da luta contra a opressão do capital é uma dinâmica sujeita à persistência do conflito. Isso quer dizer que quando há o apasiguamento da relação conflituosa, as partes envolvidas voltam a um estado pacífico de co-existência e de continuidade do suposto/imaginário “contrato social”. O maior exemplo desse retrocesso ao status quo ante é o Estado de Bem Estar Social (ou Estado Providência), que foi uma reconfiguração do Estado Liberal em função de forças internas (pressão da classe trabalhadora) e externas (revoluções sociais no Leste Europeu, com a expansão do Império Comunista russo). Superadas essas duas forças, seja pela situação de conforto gerada pelas novas formas de proteção da relação contratual ou pela interferência do Estado na Economia, seja pelo fim da União das Repúblicas Socialistas Soviética (URSS), fica também superada a idéia de estado protetor e volta o Estado (neo)Liberal.

Encontrando o espaço e as condições propícias a essas mudanças, a Comissão Européia faz avançar a proposta de flexigurança, vendida em doses homeopáticas com ajuda do sinismo da terceira via – a falsa esquerda européia do estilo New Labour de Tonny Blair. Sobre isso, é preciso compreender que os autores dessa proposta surgem diante de uma platéia apática, já desacostumada ao protesto social: os jovens europeus. A conjugação desses dois atores coloca em cheque a posição defensiva dos trabalhadores – ou população economicamente ativa que exerce trabalho remunerado por conta de outrem, ou os insiders –, fragilizando o processo de contestação social pela falta de apoio popular ao movimento sindical.

Portanto, pode-se dizer que a geração yuppie que assume o poder nos anos 1990s carrega os valores liberais adiante, apoiados pela idéia de deslocamento do conflito capital e trabalho para o eixo insiders e outsiders. Dessa forma, a propaganda que repercurte na opinião pública é que a manutenção dos atuais níveis de proteção social ameaçam a juventude européia – profundamente comprometida com um mercado de consumo intensivo.

segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

Estatização de bancos à vista, na Inglaterra (2)

Autores: Jorge F. Maques* e Antônio T. Praxedes.

Após a crise financeira que sacudiu o mundo nos últimos meses, o Estado vai retornando ao papel que exerceu no pós-Segunda Grande Guerra, qual seja, o de ativo interventor na Economia. Seja através do bailout aos grandes bancos, seja através do suporte às indústrias, a teoria da não-intervenção estatal nos assuntos financeiros vai sendo deixada de lado, e se repete um ciclo econômico. Porém, se nada se repete na História, como se dará esta nova fase do pós-capitalismo?

Se é-nos impossível prever o futuro, uma coisa é certa: estamos num período de mudanças drásticas. Chamem-lhe de Obamanomics, Gordonmomics -- ou qualquer justaposição entre o nome de um líder governamental e economics --, esse novo processo intervencionista é a oportunidade perfeita para uma adaptação dos diversos setores econômicos às novas configurações sociais: 1) no trabalho e do trabalho, com as novas formas de contratos e de prestação de serviços; 2) do sistema financeiro, com a ascenção -- mesmo que momentânea -- de limites ao capital especulativo selvagem; e 3) com uma nova configuração geopolítica na condução do sistema de produção global, como ilustra o grupo do G-20.

É razoável pensar que esse re-arranjo do sistema global parece ter sido uma conseqüência lógica da "neoliberalização do mundo", isto é, o modelo econômico dos "Chicago Boys" chega ao fim como uma conseqüência "natural" de sua própria hegemonia. Com efeito, a liberalização dos mercados, o aprofundamento dos sistemas regionais de produção e circulação de riquezas, o avassalador desenvolvimento nas telecomunicações, o ressurgimento de um Império Global no período pós-Guerra Fria, criaram as condições essenciais ao descontrole e ruína de um sistema fundamentado numa liberdade absoluta ao capital.

Contudo, grande e grave lição é dada pelos próprios arquitetos do sistema capitalista: toda liberdade deve ser acompanhada por responsabilidade. E a responsabilização que agora recai sobre o sistema financeiro -- na forma de possíveis estatizações ou retoma de capital social -- é um sinal de que o capitalismo é, acima de tudo, uma força que deve estar ao serviço da Sociedade como um todo.

Porém, ninguém pode ser tão ingênuo e pensar que haverá mais igualdade no sistema. Não. A exploração vai continuar, e a intervenção do Estado na Economia não significará o retorno ao Welfare state (a História não se repete, porque os atores e os interesses são outros). Essa afirmação exemplifica-se na simples constatação de que a ajuda financeira foi dada apenas aos grandes atores econômicos: multinacionais e instituições financeiras de alcance global. Portanto, ficam faltando incentivos fiscais e linhas de crédito para pequenos e médios empreendedores e, ainda, normas protetivas para famílias e indivíduos atingidos pela crise -- como é o caso das pessoas que perderam seus fundos de pensão porque alguns bancos utilizaram esses benefícios como créditos na ciranda financeira.

Enquanto todo esse ciclo se compõe, pouco a pouco o cidadão vai tomando consciência dos riscos à vista. Seja pelo novo esquema de endividamento do Estado (através da baixa dos juros nos bancos centrais), seja pela obtusa e alienada visão da ainda-dominante escola econômica monetarista, a população global começa a se aperceber de que esse é um jogo de cartas marcadas, no qual ela só participa trazendo canapés e drinks aos jogadores na mesa. Mas se tal conscientização levará a alguma mudança ou à democratização do sistema, isso é outra questão, para a próxima crise / próxima geração.

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* Jorge F. Marques é licenciado em Geografia pela Universidade de Coimbra (Portugal).

terça-feira, 2 de dezembro de 2008

Estatizações de bancos à vista, na Inglaterra

O Primeiro Ministro britânico Gordon Brown deu um duro recado aos bancos ingleses que receberam investimentos públicos na crise financeira: se não repassarem esses investimentos na forma de créditos à população e ajudarem a movimentar a economia, poderão ser estatizados.

A notícia é tão "bizarra" que ainda não consegui digerir a idéia, desde o dia 25/11/2008 até hoje, 02/12/2008. Gostaria de saber o que o leitor pensa disso.

Sobre esse assunto, pode enviar-me um email (clique aqui) ou deixar seus comentários no blog (clique aqui).

segunda-feira, 24 de novembro de 2008

Flexibilidade no trabalho e as necessárias contra-partidas

As teses que defendem a necessidade de flexibilidade dos contratos de trabalho são cínicas. Seu cinismo não está centrado na insegurança a que subtem os trabalhadores, mas ao seu alcance limitado aos trabalhadores que alferem baixos e médios salários, sem atingir outros setores do mercado de trabalhos, nomeadamente, executivos, diretores e outros cargos de alto escalão.

Com efeito, as medidas de flexibilização dos contratos de trabalho visam promover uma maior facilidade na contratação e no despedimento de trabalhadores. Essa espécie de heresia aos direitos humanos consagrados na Declaração Universal dos Direitos Humanos (arts. 22 e ss.) é, antes de mais, uma consequência do discurso emergencial no qual se baseiam as decisões políticos nesse período pós-político. Assim, os argumentos jurídico-econômicos apresentam-se como infalíveis e aéticos, de forma a garantir a maximização de recursos e melhores resultados econômicos, que garantam a sustentabilidade da Economia.

Entretanto, as medidas de flexibilização são direcionadas apenas às partes mais fraca da cadeia de produção. Isso se dá por uma razão simples: já que o sistema privilegia ou atribui bons méritos aos profissionais com "melhor formação" (via de regra, formação acadêmica), os trabalhadores que só dispõe de sua força-de-trabalho devem continuar em situação de insegurança jurídica constante, visto que os únicos insubstituíveis são aqueles com melhores aptidões laborais. Ora, esse tipo de "meritocracia" tende apenas a agravar situações de desigualdade social, porque privilegia as classes mais abastadas, isto é, garante a continuidade dos modelos de "mérito hereditário", quer dizer, um mérito vinculado à capacidade econômica de enviar a prole às melhores escolas.

Num sistema de produção que tem a competição como um de seus pilares, para que as regras do jogo sejam minimamente justas, é preciso garantir: 1) acesso gratuito, amplo e irrestrito aos mesmos níveis de Educação, com o consequente fim de instituições de ensino privadas; 2) gratuidade total do ensino, nela inclusa o acesso à livros e material de apoio; 3) nivelação salarial para todos os tipos de cargo, independente do tipo de trabalho, para que o "mérito" seja remunerado em consonância com a dedicação pelo trabalho, e não apenas à aptidão para o exercício do trabalho; 4) em nível da OMC, um tratado internacional que estabeleça a proibição de comércio com países que não garantam a mínima proteção social aos trabalhadores, que empreguem trabalho escravo ou semi-escravo, que tolerem o trabalho infantil e que não possuam sistemas de proteção ao desemprego e assistência social mínimos; 5) uma moratória sobre a dívida interna e externa dos países em desenvolvimento e sub-desenvolvidos, para que possam estruturar suas economias de forma a elevar seus padrões de bem-estar social, garantindo justiça social em nível global; 6) a implementação do imposto TOBIN (ou outra solução similar), que incida sobre as operações financeiras de curto e médio prazo, dando total isenção fiscal aos investimentos financeiros com prazos de recapitalização de 20 anos ou mais.

Essas são medidas para se acabar com privilégios. Se os trabalhadores têm que abrir mão de seus direitos, em função dos imperativos econômicos, os empresários devem perder seus privilégios, para que se estabeleça um modelo mais justo de normatização econômica. Se tem que haver flexibilidade de normas sociais, deve haver também a flexibilização de normas anti-sociais, nomeadamente daquelas que protegem as grandes fortunas e os grandes monopólios.

quarta-feira, 15 de outubro de 2008

A crise financeira já era esperada

A última semana foi marcada por um grande burburinho na mídia global: estava anunciada uma crise financeira, causada pela bolha especulativa que já havia sido detectada por economistas no início dos anos 2000. Enquanto a inflação atinge bilhões de pessoas ao redor do mundo e os investidores não conseguem estimar se o sistema voltará a funcionar "normalmente", os governos do grupo dos G8+Rússia anunciam planos de recuperação financeira, despejando no mercado somas astronômicas (de dinheiro público).

De fato, a atual crise teve suas origens nos começo dos anos 1970, quando os Estados Unidos da América puseram fim à regulamentação do mercado financeiro e ao lastro em ouro da moeda norte-americana, quebrando o pacto do pós-guerra de Bretton Woods e estabelecendo o dólar como a moeda de trocas internacional.

Com efeito, se retornarmos na linha temporal, poderemos ver que, com a chegada ao poder da linha de pensamento neoliberal foram abandonas as políticas de intervenção estatal na economia, nomeadamente, aquelas que exerciam controle sobre o sistema financeiro e, concomitantemente, sobre o mercado internacional de capitais. Chamem-lhe "tatcherismo" ou "reaganismo", o fato é que, desde que a teoria das expectativas racionais de Milton Friedman foi laureada com o prêmio Nóbel de Economia (1976), o mercado assumiu um status de omnipotência sobre a política, e a intervenção dos Estados no sistema mundo de produção capitalista globalizada foi combatida duramente pelo núcleo duro do pensamento economicista mundial.

Foi dessa lógica de não-intervenção que surgiram diversas "recomendações" e "consensos" econômicos, traçando as novas diretrizes e finalidades aos Estados: a desregulamentação da economia e do mercado de trabalho; a diminuição de custos produtivos pela desconstrução dos direitos sociais e assim por diante. Um dos melhores exemplos a ilustrar esse conjunto de diretivas é o documento elaborado pelo FMI e pelo Banco Mundial: intitulado "Consenso de Washington", ele contém em 10 pontos todos os itens de uma receita neoliberal para a nova ordem mundial.

Continuando essa "fábula da sabedoria do mercado", nos anos de 1990 o mundo assistiu perplexo ao turbilhão financeiro causado pela volatilidade dos investimentos especulativos na economia mundial. Argentina, Rússia, Brasil, México e os "Tigres Asiáticos" foram atingindos por um "tsunami econômico" quando, numa rápida intervenção especulativa, um grupo de "investidores" movimentou um volume absurdo de capital que entrou e saiu daqueles mercados, causando a queda dos índices das bolsas de valores daqueles países e um colapso em suas economias que, para "voltarem ao normal", precisaram de várias intervenções (leia-se "empréstimos financeiros condicionados") do FMI.

Finalmente, no início do século XXI o mercado financeiro foi surpreendido pela crise das empresas ¨ponto.com" norte-americanas. Aquele foi outro exemplo de uma bolha especulativa, pois representou a super-valorização de empresas que tiveram as suas cotações valorizadas ao patamar da de grandes empresas, como IBM, Microsoft, Ford, GM e GE -- a despeito de funcionarem em pequenas garagens, não terem mais que 01 funcionário (que era, geralmente o próprio dono da "empresa") e não produzirem outra coisa senão pequenos bancos de dados.

E o que adveio disso? A crise das "sub-prime"; uma crise que vem crescendo ao longo dos últimos 11 anos, caracterizada sobretudo por uma estrondosa acumulação de capital e pelo aumento do fosso que separa ricos e pobres, numa escala global. O aumento da pobreza e da miséria ao redor do mundo vem chamar atenção de inúmeros pesquisadores e cientistas sociais a uma catástrofe sem precedentes na história do capitalismo pós-moderno: um endividamento global que supera em dez vezes o PIB mundial; estima-se que a bolha especulativa tenha gerado um débito global de US$ 600 trilhões, quando o PIB (ou riqueza concreta) mundial é de US$ 60 trilhões. Isso faz uma pessoa pensar que se 11% dos credores exigirem a liquidez de seus créditos hoje, o mundo financeiro entrará em colapso - o que, por si só, já é um fato assustador.

Esse cenário não é de crise. Vivemos o início de uma profunda depressão e, conseqüentemente, de uma mais que obrigatória reestruturação do sistema financeiro mundial, à semelhança do que aconteceu nos anos de 1930. Diante disso, as grandes economias irão sacrificar o dinheiro dos contribuintes para cobrir o buraco nas contas das instituições financeiras - que há décadas vêm praticando essa ciranda financeira global.

Entretanto, a pergunta que não quer calar é: os grandes "investidores" devolverão os lucros obtidos nessa operações especulativas aos Estados e às populações? Eles poderão ser responsabilizados patrimonialmente pelo desastre que provocaram? A resposta é simples: não.