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sábado, 21 de outubro de 2023

A Tzar Bomba: dois olhares acerca de um problema físico-nuclear

No universo da física nuclear, a "Tzar Bomba" representa um feito notável da engenharia e design de armas. O artefato soviético foi o culminar de um intenso esforço de pesquisa e desenvolvimento no contexto da Guerra Fria, representando a bomba termonuclear mais poderosa já detonada. Com uma capacidade explosiva estimada em cerca de 50 megatons, a bomba, tecnicamente conhecida como RDS-220, foi aproximadamente 3.500 vezes mais poderosa do que a bomba que devastou Hiroshima.

O design da Tzar Bomba se baseava na reação de fusão nuclear, aproveitando o processo pelo qual núcleos leves se combinam para formar núcleos mais pesados, liberando enormes quantidades de energia no processo. Ao contrário das bombas atômicas de Oppenheimer, que dependiam primariamente da fissão nuclear - um processo de divisão de núcleos pesados - a Tzar Bomba incorporava ambos os processos: fissão seguida de fusão e, em seguida, fissão novamente, ampliando imensamente seu rendimento explosivo.

A detonação da Tzar Bomba não foi apenas um marco técnico, mas também uma demonstração de poder que ressoou em várias dimensões da geopolítica global. Em um mundo já assombrado pelo espectro de uma guerra nuclear, a capacidade da União Soviética de desenvolver e detonar uma arma de tal magnitude enviou uma mensagem inconfundível sobre sua capacidade técnica e vontade política.

Esta demonstração alterou de maneira irrevogável o equilíbrio de poder em termos de capacidades nucleares. As superpotências estavam agora em um terreno de paridade, se não em superioridade por parte dos soviéticos, no domínio das armas nucleares. Isso teve implicações profundas para a diplomacia, as estratégias de dissuasão e as negociações de controle de armas que se seguiram.

Do ponto de vista sócioambiental, a Tzar Bomba representou o potencial humano para causar destruição em uma escala nunca antes imaginada. A capacidade de uma única arma aniquilar cidades inteiras, alterar climas e causar danos ambientais de longo prazo tornou-se uma preocupação central para os ativistas da paz e do meio ambiente. A magnitude da explosão e seus efeitos secundários reforçaram a urgência de iniciativas globais de desarmamento e a busca por soluções diplomáticas para tensões geopolíticas.

Concluindo, a Tzar Bomba, além de ser uma obra-prima técnica da física nuclear, tornou-se um símbolo da capacidade humana de autodestruição e da necessidade premente de medidas globais para evitar um cataclismo nuclear.

Robert Oppenheimer: uma leitura pouco ambiciosa de sua vida pessoal

J. Robert Oppenheimer, uma figura central no desenvolvimento da bomba atômica dos Estados Unidos e, por extensão, na evolução da física do século XX, é uma personalidade multifacetada cuja vida pessoal e profissional é marcada por complexidades e contradições. Uma análise sociológica de sua vida, fundamentada em biografias autorizadas e fontes documentais primárias e secundárias, pode revelar insights sobre o contexto sociopolítico da sua época e as influências que moldaram sua trajetória.

Nascido em 1904 em uma família judia de classe alta em Nova York, Oppenheimer cresceu em um ambiente de privilégio econômico. Este contexto social não deve ser subestimado. A segurança financeira e a educação esmerada que recebeu permitiram-lhe explorar plenamente suas aptidões acadêmicas, levando-o a instituições prestigiosas como a Harvard University e mais tarde ao continente europeu, epicentro da física teórica na época. A sua formação e trajetória acadêmica não são apenas reflexos de seu brilhantismo intelectual, mas também produtos de seu status social.

Sua identidade judaica, combinada com um forte sentido de justiça social, também parece ter influenciado suas inclinações políticas. Durante a década de 1930, Oppenheimer mostrou simpatias pelo comunismo, um fato que mais tarde traria consequências significativas em sua carreira durante o macartismo. Este aspecto de sua vida é especialmente revelador quando se considera a natureza dicotômica de sua existência: um físico de renome trabalhando para o governo dos Estados Unidos, mas simultaneamente simpatizante de ideologias vistas como antagônicas ao Estado.

O papel de Oppenheimer como diretor científico do Projeto Manhattan colocou-o em uma posição única de poder e influência, mas também de imenso dilema moral. As implicações sociológicas de um cientista envolvido na criação de uma arma de destruição em massa são profundas. A famosa citação de Oppenheimer, "Tornei-me a morte, o destruidor de mundos", extraída do Bhagavad Gita após o teste Trinity, é emblemática dessa angústia.

Para concluir, a vida pessoal de Robert Oppenheimer, entrelaçada com os eventos sociopolíticos de sua época, serve como um estudo fascinante sobre as interações entre individualidade, ciência e sociedade. Sua trajetória ilustra a complexidade inerente à existência humana, onde fatores pessoais, identidade cultural e circunstâncias históricas se convergem e se chocam de maneiras muitas vezes imprevisíveis.

quinta-feira, 18 de junho de 2015

Amor em tempos de intolerância: a luta entre os credos no Brasil

No último domingo (14/06/2015), uma menina de 11 anos de idade foi apedrejada na cabeça por um grupo de sectários religiosos, quando saía de um culto afro-brasileiro (Candomblé), na cidade do Rio de Janeiro. Essa tragédia levanta sérios questionamentos sobre a atual conjuntura política brasileira. Afinal, a mensagem cristã não é de compreensão, perdão e fraternidade? Para onde foi o significado da lição "deixai vir a mim as crianças"? E, contrariando o senso comum (que estipula que religião não se discute), não seria necessário colocar as formas de expressão religiosa em debate?

(Fonte da foto: O Globo)
Observando o ocorrido com essa menor de idade, pode-se afirmar que foi abandonado o discurso religioso que prega o amor e a comunhão, e revelado o discurso de ódio que a prática a segregação e justifica todas as formas de violência. Convinha saber, entrementes, se esses dois discursos e práticas têm o mesmo lugar-comum. Isso porque partiu-se do conhecido e chegou-se ao impensável: foi feita uma aplicação prática das normas religiosas, da prescrição normativa à sanção, do regulamento à aplicação do castigo. Considere o seguinte: não bastassem as agressões verbais de natureza escatológica - sobre a condenação eterna da alma da garota que, por representar o "diabo", iria arder no fogo eterno, na presença do próprio "Lúcifer" -, perpetrou-se a violação de sua integridade física, comprometendo a segurança de pessoa juridicamente incapaz.

Você pode acompanhar o caso em vários jornais, ou numa pesquisa genérica na internet, ou indo direto às matérias jornalísticas da Folha de São Paulo, do G1 - Globo, do Estadão, ou do Correio Braziliense. O que você vai encontrar são diversos relatos sobre o caso da pré-adolescente, mas não deveria entendê-lo como um caso isolado: embora tenha ganhado notoriedade, diante das especificidades já evidentes, ele é apenas mais um entre muitos, sejam os noticiados, ou os não reportados, sobre a violência contra a cultura afro-descendente no Brasil.

O que é importante salientar, neste e em todos os fatos, é o recrudescimento da violência física contra os adeptos de religiões minoritárias. Como é óbvio, não se tratam de minorias numéricas, mas de grupos que são minorias no acesso ao Poder, e que não encontram o reconhecimento estatal necessário para a livre expressão de suas formas de crença, ainda mais quando o Congresso Nacional tem sido palco de manifestações religiosas (de rezas e orações cristãs). Esses acontecimentos só vêm reforçar o sectarismo e contrariar manifesta determinação legal contida no inciso I do art. 19 da Constituição republicana:
Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
I - estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público.
Assim, é preciso reconhecer que existe uma clara separação entre a esfera política (assuntos de Estado) e a esfera íntima (assuntos estritamente particulares). Não há nada de novo na questão do ódio contra a livre expressão de credo em terras tupiniquins, tendo em vista que a religião é um dos derivativos do poder social e está diretamente associada às questões de identidade e sentimento de pertença sociais. Então, quanto mais uma determinada religião (ou culto) estiver próxima ao poder, mais ela poderá ser um fator de exclusão e mais poderá ser responsável pelo surgimento de minorias. Tudo isso faz lembrar um passado remoto, quando a religião oficial destas terras era a "Catholica Apostolica Romana" (art. 5, Constituição Política do Império do Brazil). Nesse tema de liberdade religiosa, havia tumulto e preconceito contra as primeiras igrejas protestantes que tentavam se instalar nos domínios imperiais de D. Pedro I.

No Estado Democrático de Direito brasileiro, a liberdade de consciência e de crença está assegurada na Constituição Federal (art. 5º, inc. VI), sendo um direito oponível ao Estado e aos demais cidadãos, nos termos da eficácia vertical e horizontal que esse direito fundamental produz, respectivamente. Seguindo a diretriz constitucional que determina a laicidade do Estado (art. 5º, VIII c/c art. 19), é importante salientar que os assuntos religiosos são privados, quanto à oposição que se faz ao Estado como entidade responsável pelo domínio público. Isso não quer dizer que a Sociedade civil não possa expressar sua fé nas ruas - qualquer estudante de Direito com dois dedos de testa sabe disso. 

(Foto: Folha de São Paulo)

Você é a favor disso? Se for, tem que compreender que, numa democracia constitucional de uma sociedade aberta (art. 1º, inc. V), as relações sociopolíticas devem estar embasadas na reciprocidade e no acesso às mesmas oportunidades políticas. Por essa lógica, sendo o Congresso Nacional a casa do povo, é preciso (re)lembrar que povo engloba todo o corpo de cidadãos da República, independentemente de credo ou convicção política ou filosófica. O que enseja o direito de manifestação de Candomblé, Umbanda, Espiritismo e outros cultos, seitas e credos na Câmara dos Deputados - quiça até satânicas, quem o saberá?! Ainda, já imaginou se essa reciprocidade autorizasse o apedrejamento dos membros da sua congregação? Pense nisso. Muito embora a maioria numérica da população brasileira seja teísta, também há que se contemplar o ceticismo ateu que põe em causa todas as religiões - ou essa não seria, também ela, um posicionamento recepcionado pela República?

Portanto, é importante identificar as margens de manobra nos discursos que falam de amor e que são utilizados para praticar o ódio. Essa ressignificação do amor deturpa, ao mesmo tempo, as noções de tolerância e aceitação, impulsionando os membros de uma sociedade "livre, justa e solidária" a abandonar seus laços de fraternidade política, rumo à segregação. O único ponto positivo nessas práticas é uma Revelação (mundana): os intolerantes saíram do armário. Aos esclarecidos, cabe combatê-los.

quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

Misoginia e o significado das palavras

"Bom dia, amor. Posso te estuprar hoje?"

É com essa frase que se pode começar uma investigação sobre a misoginia contida nas recentes declarações do Deputado Federal Jair Bolsonaro. Essa provocação inicial é necessária, pois, ao que tudo indica, os estudos de gênero que são desenvolvidos pelos renomados centros de pesquisa em Ciências Sociais europeus e norte-americanos não atingiram a inserção necessária no meio acadêmico brasileiro, com raras exceções. Portanto, uma provocação prévia é necessária, para que se possa traçar um molde genérico sobre o tema e despertar um debate atento a detalhes normalmente silenciados.


Preliminarmente, é preciso esclarecer uma premissa. Em tempos de solipsismo, as palavras perdem o significado que originalmente / culturalmente têm, em função de uma "vontade de poder" (Der Wille zur Macht) que o indivíduo exerce sobre cada uma delas. Esse tipo de ato interpretativo parte da concepção de que somente o indivíduo existe enquanto ser que pensa um objeto e que, para além do ato de pensar desse mesmo indivíduo, nada existe de concreto. Isso representa um difícil problema de interpretação, visto que, ao contrário do que possa parecer, além do indivíduo existem outros, e o significado das coisas é feito (também) coletivamente e, na maioria das vezes, de forma consensual.

No passado, a palavra dita tinha a força de uma raiz que, uma vez fincada no solo, não poderia ser removida, sob pena de destruição daquele que a pronunciava, assim como uma planta. Enquanto o silêncio guarda (em si) uma natureza plurisignificativa, que desperta no interlocutor uma inabalável dúvida sobre seu significado, a palavra é a concretização do pensamento, embalada pelos desejos que se revelam, e que extrapola os mecanismos de controle a que a mente humana se submete no convívio com os demais. Falar é, acima de tudo, conviver.

Agora, sobre a misoginia. Na literatura, esse comportamento já foi expresso por autores do porte de Nelson Rodrigues que, ironizando as relações afetivas heterossexuais, apontava o desejo implícito que as mulheres teriam, por exemplo, de apanhar. Esse imaginário faz referência direta a certos comportamentos sociais, reproduzidos no mundo da cultura e determinantes dos papéis sociais de gênero - o que pode ocasionar abusos de interpretação / percepção, como no caso da mulher que se comporte de forma anormal e deseje não apanhar. Da mesma forma, chamar uma mulher de "vadia", dentro de um contexto qualquer, significa a verbalização de uma perspectiva sobre essa pessoa, num processo de coisificação fundada no desejo.

É isso o que a comunicação interpessoal faz: ela estabelece a interconexão entre as subjetividades. A grande questão: lançar palavras ao vento, sem uma preocupação com seus efeitos (significados), é ignorar o que existe de mais vulgar na comunicação humana, no que respeita às emoções e suscetibilidades da psique. Afinal, "as palavras ferem mais que a espada" - teria dito, em coro, a população.

Da mesma maneira, a afirmação "Jamais te estupraria, porque você não merece" apresenta, além do erro gramatical de concordância evidente, um erro contextual e outro de convivência: a organização dos espaços sociais não comporta esse tipo de verbalização dos desejos (até então ocultos) sobre a outra pessoa. Se é bem verdade que as palavras devem ser analisadas nos meio (contexto) em que são proferidas, existem algumas delas que se convertem em desejos que são socialmente execráveis, ainda mais quando ditas em espaços públicos nos quais os ouvintes do discurso não compactuam com o que é dito, quer por razões morais, jurídicas, ou religiosas, por exemplo. Trata-se da adequação quanto ao local (logos) no qual as palavras são reproduzidas, e quanto ao sistema de crenças (ethos) compartilhados por esses animais sociais e políticos (seres humanos). 

Ante o exposto, deve-se tentar perceber que o processo civilizatório pressupõe convivência (interação social) e regulação (atribuição de direitos, deveres, competências etc). Contextualizando essa ideia, é de se notar que, num parlamento democrático, a exposição de ideias encontra por limites as normas garantidoras da continuidade das relações intersubjetivas (do tipo políticas) e referentes, portanto, ao decoro que é exigido de cada membro que ali convive. Admitir que, no decurso de suas atividades, os parlamentares se utilizem de expressões discriminatórias (xenófobas, racistas, misóginas, marginalizantes etc) e violentas, agride diretamente os objetivos para os quais o Estado Democrático de Direito foi constituído - consoante o disposto no art. 3º da Constituição Federal -, e atentatórias aos fundamentos no qual se alicerça, vis-à-vis, cidadania e dignidade da pessoa humana - desta vez, com fulcro no art. 1º do Texto Maior.

Como representantes que exercem a soberania, isto é, exercendo o Poder Político-Social em nome do povo (titular efetivo desse Poder), os parlamentares devem estar atentos aos valores morais que dão substância ao que se fala (parlar = falar; parlamento = lugar onde se fala), por consenso. É consenso da população que o estupro é um ato que atenta à intimidade e ao próprio ser (autônomo), sendo repudiado de maneira tão incisiva que se converteu em crime contra a pessoa, passível de penalidade. Em que pese o Deputado Jair Bolsonaro defender ferrenhamente o aumento das penas para tal modalidade de crime, não parece haver harmonia entre o seu desejo (verbalizado) e suas atitudes políticas, haja vista que tal assunto sobrevém em sua comunicação em tom jocoso e de escárnio, contra a Deputada Maria do Rosário. Não há ligação, nessa "brincadeira", entre o significado da palavra e o repúdio social que ela desperta. 

"Brincar" tem um significado bastante específico: "divertir-se; entreter-se com alguma coisa infantil; galhofar, gracejar" (Dicionário Priberam). Não se pode imaginar como alguém possa "brincar" com a palavra "estupro" ou com o verbo (= a palavra em ação) "estuprar",  direcionando essa "brincadeira" a uma mulher que é, antes de mais, uma adversária política pelo qual (ele) nutre antipatia e intolerância. Pela mesma razão, não se pode (tentar) esconder essa agressão verbal e simbólica pelos "bons comportamentos" anteriores e prévias boas intenções, como se isso não tivesse um significado ofensivo à "mulher enquanto gênero".

Em vista disso, mesmo que se considere a "brincadeira" do sereno e bem humorado parlamentar, é óbvio que sua intenção era de agredir, e assim o fez. Essa atitude poderia ter sido evitada por um solene silêncio, que ocultaria seu desprezo e "vontade de poder" sobre a mulher contra quem proferiu e na qual objetivou seu desejo (inconsciente) de submissão sexual, em ato falho. Nada contra o sexo: é que, embora o Congresso não goze de uma austera reputação - no momento -, as palavras, ali, têm um significado público. 

Estupro, portanto, não, Deputado. "Por favor = É obrigado".

quarta-feira, 2 de abril de 2014

Os "filhotes de ditadura"

O título deste texto é uma autêntica provocação; e essa provocação, de certeza, não é uma das mais prudentes atitudes a serem tomadas nos dias que correm. A expressão "filhotes de ditadura" foi cunhada por uma colega professora e, vez por outra, ressoa em minhas memórias como um alerta, uma lembrança de que ainda não superamos o autoritarismo do golpe de 1964. Essa é uma chaga aberta na sociedade brasileira, que ainda não conseguiu discutir todos os aspectos que envolvem o regime de exceção que se instalou no Brasil, de 1964 até 1988 - regime de exceção de um Estado não-democrático de Direito. Esse é mais um problema que se arrasta e que desperta o ódio e a ira de grupos que não conseguem (ainda) estabelecer um debate amplo sobre os males que o originaram e que germinaram durante esse período.


A mudança de regime jurídico-político de 1988, que se inaugurou com a Constituição da República Federativa do Brasil, também não foi eficazmente constituído de forma a resgatar o passado e, no espírito verdadeiramente democrático, efetuar a delimitação da culpa de cada partícipe desse processo - que se inicia num golpe de Estado e que termina na promulgação de um documento regente de um povo com tantas mazelas. O fetiche do legalismo estatista só não foi absoluto porque o modelo jurídico implantado teve o mérito de ter sido conduzido por meio de um debate social, no qual participaram diversas correntes de pensamento e grupos de representação social e de pressão - o que caracterizou o pluralismo político defendido no texto vigente. 

Se tal não fosse verdade, não teríamos a necessidade de discutir se adotaríamos uma Monarquia Parlamentarista, por exemplo, ou da discussão do sistema de governo - parlamentarista ou presidencialista. Haviam dúvidas, posicionamentos divergentes, questões históricas e todo tipo de conjectura acerca de nossa vocação sócio-política, e que ainda ressoam nesses grupos que ora são ignorados, ora causam rebuliço naquela paz que adviria do fim do controle e da opressão dos governos militares. Isso para não dizer que, olhada atentamente, a História da República teve a contribuição das forças armadas desde a proclamação dessa estrutura política, passando pela composição da Presidência e nos momentos de intervenção nos governos civis. Entretanto, essa contribuição precisa sempre ser reavaliada, em função da essência do que designa o conceito de "militar": a força que, fazendo a guerra, garante a paz... Então, quer dizer, somos um povo que não atinge a paz, senão por meio da guerra, da violência

Como é óbvio, a Democracia, por si, não é um instrumento capaz de apagar os erros históricos cometidos pelos governantes e pelas "cabeças pensantes" que comandavam e continuam a comandar os rumos políticos do País. Ela servirá, talvez, para impedir que cometamos os mesmos erros, por meio da experiência adquirida no passado. Porém, somente o preparo e o empenho de uma população comprometida com os ideais de Justiça social, liberdade (de pensamento, de empreendedorismo, de opinião, expressão e consciência) e igualdade (jurídica, política, cultural e de ascensão econômica) poderia concretizar os objetivos e defender os fundamentos do atual sistema político e do ordenamento jurídico vigente. Contudo, esse preparo pressupõe não apenas o conhecimento dos fatos, mas a possibilidade de refletir sobre cada um dos fatores que nos fazem ser quem somos - os "filhotes de ditadura". Ainda, esse empenho indica a abstinência de interesses individualistas e imediatistas que nos impulsionam antes à ação do que à reflexão, embotando o bom julgamento e impedindo a exposição de motivos daqueles que querem (e merecem) ser ouvidos.

Me incluo como membro de uma geração que não teve participação direta nos eventos que concorreram para o início do período em destaque, porque fui espectador passivo e impúbere do sentimento de mudança que acalentava os sonhos de uma liberdade que os meus pais não tiveram. Por sorte (e por várias outras razões), não posso afirmar que passei por perdas familiares, nem fui eu mesmo vítima da perseguição política, nem muito menos decidir agir violentamente para mudar aquilo que parecia imutável. Mas sinto-me no direito de requerer que haja a construção de um debate em torno dessas questões, que possibilite a exposição dos motivos, das razões e das desculpas (mesmo que esfarrapadas) que levaram compatriotas a mutilarem-se e matarem-se uns aos outros, em nome de ideologias e posicionamentos que afetavam a regulação da vida de toda a sociedade brasileira. Inclusive, penso que qualquer forma de autocracia - seja na forma de ditadura, seja na de autoritarismo - é sempre maléfica àqueles ideais destacados do preâmbulo constitucional e que, supunha eu, pudessem dirigir os rumos políticos do País.

Essas preocupações são mais inquietantes quando podemos assistir nos meios de comunicação de massa (até na via digital), a comemoração velada ao autoritarismo que vigorou e ao que continua a vigorar, de maneira difusa, no Brasil. É mesmo a expressão de um sentimento que se encontra arraigado na comemoração da diferença (desigualdade) e numa falsa meritocracia (posto que excludente a partir de privilégios injustamente adquiridos), que impede que o grande público tenha acesso a expressões que são afetas (e prediletas) aos bancos universitários - ainda não democratizados e, em que pese toda tentativa e esforço nesse sentido, continuam elitizados. 

Igualmente, me pergunto se, enquanto nação, podemos ser refratários à dor das famílias que perderam entes queridos - e algumas delas, impiedosamente massacradas - por força dessa autêntica guerra de todos contra todos. Talvez, seja necessário dizer que toda a sociedade perdeu com a tortura, os atentados, os enforcamentos, degolações ... que foram a prática corriqueira, tanto dos que se diziam defensores da liberdade, quanto dos que - em nome dessa mesma liberdade - praticaram essas barbaridades. Quantos males já se perpetuaram, e quantos outros ainda se perpetuarão em nome desse valor? Ainda na seara desses valores, quantos critérios seriam aplicáveis à igualdade, que nos colocam como inimigos uns dos outros, num país com riquezas incalculáveis, e quanto é possível se sacrificar esse povo em nome dessa (genérica) igualdade? Que Justiça social é possível diante dos privilégios, dos acordos entre poderosos, da inépcia das instituições e das precárias assistência e segurança sociais?

Enquanto o jogo da verdade continuar restrito aos mesmos jogadores; enquanto a maioria do povo continuar sem uma voz ativa e esse debate estiver concentrado na representatividade de minorias - que se arvoraram em proprietárias desse debate -, haverá solução possível? Quando deixaremos de ser "filhotes da ditadura"?

Esse diálogo é apenas uma fração correspondente a um sofisticado e longo debate, na dura luta pelo poder, pelas mentes e corações...



quarta-feira, 12 de março de 2014

A Democracia por um fio: coisas não queremos saber

O projeto democrático brasileiro vem, aos "trancos e barrancos", sofrendo diversos reveses nos últimos anos. Se é certo que depois da Constituição de 1988 pode-se falar de um ressurgimento da participação popular, é também correto admitir que ainda há muito a se democratizar no Brasil. Como um dos desafios, surgem as diversas e, por vezes, conflitantes perspectivas políticas e concepções ideológicas, calcadas nas tradições e leituras (ontologicamente construídas) que o legislador constituinte originário soube tão bem colmatar no texto constitucional - sob a rubrica do pluralismo político.

De fato, pode-se afirmar que, hoje, o Brasil possui um ordenamento jurídico que adota a liberdade de consciência política - encontrando respaldo na melhor doutrina do liberalismo político. Sob o imperativo categórico da tolerância, defende-se a ideia do lema "que vença a melhor ideia". O sistema federal, bicameral, compõe-se da Câmara dos Deputados e do Senado Federal que, juntos, desempenham a função maior da Democracia brasileira: o Congresso Nacional. Ali, todas as garantias para a desenvoltura dos debates estão assegurados: desde as garantias e direitos fundamentais, tais como a liberdade de expressão e consciência, até as garantias e direitos políticos, como a liberdade de filiação partidária e as imunidades parlamentares, há todo um aparato jurídico-político que conflui diretamente para o exercício de uma parcela de nossa Democracia - a representativa. Além disso, o País possui mecanismos de participação decisória direta, que ultrapassa as limitações do sufrágio universal e secreto, responsável pela escolha daqueles políticos: ferramentas como orçamento participativo, fiscalização e controle de contas dos poderes executivos (municipais, estaduais, distritais e federal), e outros, como a proposta de lei de iniciativa popular, referendo e plebiscito são todas ferramentas jurídicas à disposição do povo brasileiro, para o exercício de uma das mais preciosas conquistas sociais - a soberania popular.

Esse conceito de soberania popular, que adquirimos da tradição europeia, não é um conceito unívoco. Ao contrário, ele indica que há um certo tipo de soberania, qual seja, aquele no qual o poder deriva diretamente da vontade do povo. O conceito de povo, também, também não é unívoco - embora a preguiça e o senso comum tentem sempre distorcer o seu significado, para não falar das insidiosas práticas do intelecto desonesto, que deturpa o real sentido e alcance da palavra. Povo, no sentido constitucional, é a classe de pessoas que habita este País e que, sendo sujeitos de direito como todos os outros membros da população (estrangeiros, turistas e apátridas), possuem a capacidade ou a expectativa de direito de votar e serem votados. Seguramente, junto da melhor doutrina, referenciada aqui em Paulo Bonavides, no seu livro "Ciência Política", o elemento povo apresenta uma faceta jurídica (sujeito de direito) e outra política (poder, um dia, votar e ser votado).

Como se vê, até este ponto, Direito, Poder e Política são três elementos que estão em constante contato. Isso porque a Política é um meio, no qual o Poder se expressa e, como resultado, surge o Direito. Mas essa interação não pára nesta primeira síntese; assim como ocorre em todo processo dialético, esse resultado (o Direito) dá ensejo a novas conformações da Política, pois a dinâmica social é uma constante e, nela (na dinâmica social) ocorrem novas manifestações de Poder. A Sociedade promove constantemente uma reformulação dessa dialética, reconstruindo posições, com novas interações entre atores políticos que, negociando seus interesses e defendendo suas convicções e ideologias, fornecem novas configurações ao Direito.

A Democracia é, então, um jogo político que se desenvolve sobre o pano da liberdade política. E quanto mais saudável é uma Sociedade, mais claras são as intenções e os atos praticados pelos representantes políticos escolhidos pelo sufrágio, e mais acessíveis aos olhos do povo são os atos desses governantes e legisladores. Então, qual seria a dificuldade da Democracia à brasileira? Por que ela é uma Democracia de baixa intensidade - para utilizar uma expressão do professor sociólogo Boaventura de Sousa Santos?

1) Educação

Seria muito pertinente elaborar uma defesa da Educação que fizesse apologias emotivas ao valor dos professores, à necessidade de preparar as crianças para um futuro melhor e ... enfim, apelar ao bom senso do leitor. Mas o caminho a ser trilhado aqui é outro: o do cumprimento da Lei - coisa que nem a população, nem os governantes parecem gostar.

A Constituição Federal estabeleceu um conjunto enorme de artigos voltados ao desenvolvimento de uma Educação inclusiva, que fosse capaz de realizar os objetivos fundamentais da República, consubstanciados no art. 3º, que também concretizasse a dignidade da pessoa humana do art. 1º e, por fim, pudesse lançar as bases de realização de uma justiça social - conforme preleciona o preâmbulo constitucional. Ainda, colocou-a como um direito fundamental, pois ela integra o art. 6º, no capítulo dos Direitos Sociais, que pertence ao Título II da Carta Constitucional - que cuida dos direitos e garantias fundamentais (esse é o nome do Título, para aqueles que não sabem ou não "entendem" que a Educação e os direitos dos trabalhadores, por exemplo, são direitos fundamentais). Sobremaneira, desponta o clarividente art. 205, estabelecendo o que se pode entender como um rol taxativo e hierárquico dos objetivos da Educação: "(...) direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade"; a finalidade desse direito é (1) o pleno desenvolvimento da pessoa, (2) seu preparo para o exercício da cidadania e (3) sua qualificação para o trabalho.

Em que pese a valorização do trabalho como única forma de construção de riquezas, veja-se que a primeira diretiva teleológica é "o pleno desenvolvimento da pessoa", quer dizer, o desenvolvimento das aptidões que tornem o indivíduo uma pessoa feliz, realizada, consciente de todo o seu potencial. O segundo objetivo é "seu preparo para o exercício da cidadania". Nesse segundo ponto se descortina o principal entrave ao desenvolvimento de uma Educação democratizada: não havendo educação de qualidade para o trabalho, que torne a absoluta maioria da população apta à competitividade do mercado de trabalho da Era da Informática, o que se poderia dizer de uma Educação para o exercício da cidadania? 

A maior queixa e a grande parte das críticas que se fazem ao sistema eleitoral brasileiro é exatamente focada nas escolhas dos representantes políticos: embora existam restrições acerca da vida pregressa dos candidatos e as proibições de candidaturas daqueles condenados por crimes e delitos de variada ordem, as reclamações de uma parcela que se diz "esclarecida" clama pela proibição do voto dos analfabetos - proposta que faz lembrar o voto censitário, que já vigorou nestas terras.

2) Desigualdade social

Há redundância na junção das expressões "situação social no Brasil" e "desigualdade social". Desde a exploração-colonização, passando pela independência política e adentrando a fase republicana, a acumulação e concentração de riquezas e as mazelas da maioria esmagadora da população sempre andaram pari passu com a História Nacional.
Para não falar dos tempos em que havia mão-de-obra escrava e que essa situação era reconhecida pelo Direito positivado, e para não comentar sobre a escravidão que ainda se reproduz nos rincões deste vasto território, a situação das cidades e do campo evidenciam o que há muito se escreve e se descreve acerca da condição humana nas terras tupiniquins: vive-se a insustentabilidade de um modelo de produção que ainda não foi capaz de solucionar o problema da exclusão social. Se a educação de qualidade só existe na rede privada de ensino; se essa rede privada de ensino encontra-se fora dos padrões e possibilidades de consumo da maioria esmagadora do povo; se aquela educação pública, ofertada pelo Estado não serve minimamente à qualificação de trabalhadores; se essa escola pública é um depósito de jovens, que não oferece uma perspectiva emancipatória e, ainda por cima, os sujeita ao convívio das mais diversas formas de violência - da prostituição às drogas -, com raríssimas exceções... Então a conclusão a que se pode chegar é que o cenário de miséria e despreparo intelectual de crianças e jovens da maioria dos cidadãos é absolutamente incapaz de apaziguar o que se pode chamar de "jogo da ilegalidade".

3) Jogo da ilegalidade

Existe uma vasta literatura sobre os jogos psicológicos, que tanto se dão em nível individual, quanto coletivo. Uma das obras mais conhecidas nesse território é aquela da lavra de Eric Berne, intitulada "Games People Play", e é diante das estratégias dos diversos atores sociais que se instituiu no Brasil o "jogo da ilegalidade".

Essa interessante dinâmica começa no nascimento daquele indivíduo pobre e miserável, que recebe a alcunha de "favelado": quando ele nasce, se tiver a sorte de nascer num Hospital, pode até ter alguma chance mais segura de sobrevivência, mas geralmente vem ao mundo sem os menores cuidados; ao contrário do que ocorre com uma parcela minoritária da Sociedade brasileira, esse sujeito na maioria dos casos não é registrado (a certidão de nascimento no Brasil é paga, mesmo pelos hipossuficientes; embora a lei lhes garanta tal direito, os cartórios cobram os emolumentos dos pobres e miseráveis). Para o Direito, sua existência é uma situação de fato, visto que o formalismo jurídico que aqui ainda reina carece de uma comprovação que ele não pode fornecer. Além disso, com alguma sorte (se não for abandonado por uma mãe faminta e desesperada), a casa na qual habita não pode ser chamada de propriedade: ele não possui um dos direitos mais elementares, que é o direito de possuir um local onde se abrigue e no qual, sendo cidadão, estabeleça de forma segura a sua residência, seu domicílio.

Inclusive, diga-se de passagem que, esse seu direito de 1ª dimensão, um direito civil, de possuir algo como seu, é tolhido exatamente pela força do direito de quem possui a propriedade do terreno no qual seu barraco está construído. E é exatamente nesse momento, no da definição de "o quê é de quem" que começa uma das partidas mais cruéis do jogo da ilegalidade: esse sujeito, desprovido, despreparado e desapropriado tem que enfrentar aquela minoria citada anteriormente, que possui todas as condições materiais para competir e vencer a luta da sobrevivência numa das maiores potências econômicas do planeta (sim, a sexta economia do mundo). Uma potência econômica que ainda tem na terra e no solo os seus bens mais preciosos, extremamente custosos e cada vez mais escassos, visto estarem concentrados nas mãos daqueles que ou conseguiram o que têm através da herança (e nada conhecem do trabalho), ou obtiveram através da luta competitiva do sistema de produção vigente (porque estão aptos a concorrer), ou porque usurparam os bens através da malícia e violência (porque o roubo, a sedução e a corrupção também são meios à acumulação), ou porque tiveram sorte (no jogo, ou no "amor"...).

Nesse quesito, há também o Estado - essa pessoa jurídica de Direito Público controlada por políticos, funcionários e agentes públicos, numa das repúblicas mais corruptas do mundo. Esse ator agoniza de todas as formas: em primeiro lugar porque, obviamente, encontra-se a serviço de toda sorte de gente e do conflito de interesses dos políticos; em segundo lugar porque tem ainda que combater toda sorte de doenças sociais, como o crime organizado, a tensão constante da real politique praticada por outros Estados e assim por diante - inimigos internos e extermos; e em terceiro e último lugar, porque ele é operacionalizado por meio de regras burocráticas que o impedem de cumprir sua missão de forma efetiva e eficiente, o que dá lugar ao desperdício e desvio de recursos, quer por má-fé, quer por inaptidão de seus servidores e funcionários.
Some-se a isso o jeitinho brasileiro... E toda forma de legalidade e legitimidade não passará de mero discurso retórico ou, como se diz na linguagem politicamente-irrelevante das redes sociais, "blá, blá, blá"- coisa para inglês ver.

4) A violência e o abuso de autoridade

Não é à toa que o Brasil é um dos países mais violentos do mundo: todas as dificuldades na formação cultural e intelectual de seu povo - conforme narrado acima -, associada ao despreparo e desonestidade, agravada pela ilegalidade e temperada com a falta de oportunidades cria um sentimento de ineficiência e ineficácia dos institutos jurídicos e das instituições aqui referidas.
É curioso observar que até as opções de leitura filosóficas da parcela do povo que se prepara para preencher os cargos e funções públicas (os futuros burocratas, bacharéis em Direito), direcionam-se a autores cujo trabalho e especulações giram em torno da violência, do uso da força, da brutalidade e da concentração de autoridade. Quais outros, senão Hobbes e Maquiavel, a alimentar toda sorte de devaneio na mente dos incautos leitores, que desejam adquirir o conjunto de conhecimentos que tornam a razão instrumental apta à solucionar suas crises existenciais?

Embora exista aqui uma deferência ao autor inglês Thomas Hobbes, pela sua contribuição na formação do pensamento iluminista - e nos desdobramentos que essa escola trouxe ao pensamento e cultura ocidentais -, é necessário esclarecer alguns aspectos de sua teoria sócio-política, tendo em vista ser um autor estudado de maneira recorrente pelos estudantes de Direito - na seara da Ciência Política e Teoria do Estado. Ao lado desse nome, com a mesma ferocidade e vontade de poder, surge o autor Nicolau Machiavel, um dos nomes mais conhecidos pelos curiosos e investigadores que se debruçam sobre o palco da Política, numa tentativa de compreender seus lados e, sobremaneira, aquele mais obscuro - o autoritarismo. O primeiro chega a falar numa criatura monstruosa, avassaladora, invencível (o Estado), e a necessidade de ele concentrar todo o Poder (social), para determinar o futuro desse ser tão miserável, que é o humano. O segundo coloca à população, aos súditos, apenas duas opções: o amor ou o medo; a coerção como forma de dominação de todos, sob a ameaça de uma deusa da justiça que não tem nenhuma balança, nem venda, mas só a espada...
Diante de tudo isso, e do que mais ficou faltando falar, pergunta-se: qual será o futuro da nossa Democracia?

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Em homenagem à professora Jacqueline Alves Soares, coordenadora do Escritório de Direitos Humanos do Centro Universitário Christus, a quem devo vários minutos extra-laborais, por uma importante discussão.

quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

Hollywood e suas apostas na distopia

Um dos filmes mais curiosos lançados este ano (2013) foi "Elysium": drama de ficção científica, no qual a população mundial é controlada por um sistema político gerenciado por poderosas corporações. Esse gênero de ficção científica já é bem conhecido das audiências: inevitavelmente, o sistema de produção vigente (capitalista) leva a Sociedade (baseada num modelo cultural anglo-saxão) a uma necessária privatização total do Estado, num contexto de brutal escalada de violência e degeneração moral. Assim, há o protagonismo de cidadãos e cidadãs comuns (blue collars), antagonizados pela frieza de empresários e empresárias bem sucedidos (white collars).


Essa tensão discursiva, que tem por polos os "colarinhos azuis" como uma espécie de homo sacer, e os "colarinhos brancos" representando os bem sucedidos homo economicus, é uma tentativa de ambientação da platéia num contexto futurístico (campo imaginário), partindo da realidade atual (campo real). Esse futuro seria o resultado fatalístico da competição individualista, responsável pela destruição dos valores coletivos. Esses valores (campo simbólico), por sua vez, seriam os alicerces de um sistema, pertencentes aos regimes democráticos obliterados pelo consumismo e pelas leis exatas, inumanas e matemáticas dos mercados.

Seguindo no mesmo tom de "Elysium", existem diversas películas, dentre as quais merecem destaque: Alien (1979, 1986, 1997); "Exterminador do Futuro" (1984, 1991, 2003, 2009); "Robocop" (1987, 1990, 1993); "O quinto elemento" (1997);  "The Matrix" (1999, 2003.1, 2003.2); além da famigerada saga de Milla Jovovich em Resident Evil (2002, 2004, 2007, 2010, 2012); e o recente filme de Ridley Scott, "Prometheus" (2012). Porém, há uma ironia: todos esses filmes pertencem a grandes corporações, que investem nesse tipo de gênero (Sony Pictures, 20th Century Fox, TriStar etc). 

O que chama a atenção em "Elysium" é o fato de que há uma irrefutável clivagem entre ricos e pobres, numa sociedade futurística com tecnologia suficiente para criar novos mundos - ou estações espaciais habitáveis, como é o caso -, curar doenças e prolongar a vida da população indefinidamente, e construir meios de transporte ultra rápidos e eficientes. Mas, qual o cenário apresentado no filme? A população rica habita a estação espacial, gozando de todos esses benefícios, permanecendo aquartelada e protegida de qualquer tipode contato com a classe pobre. A maioria esmagadora da população mundial vive na miséria, sendo tratada brutalmente por policiais-robots, desprovida de todos os direitos, numa espécie de Estado Global falido. 

O filme é ácido: não há saúde, nem direitos aos trabalhadores. As pessoas da Terra vivem nos escombros do que outrora foram grandes e suntuosas cidades, cercadas pela poluição (melhor dizer, absoluta devastação ambiental) e sem instituições intermediadoras dos conflitos sociais. Ainda, apresenta o crime organizado como uma alternativa à ausência estatal e à brutalidade corporativa, como se ele fosse um ensaio popular diante de uma carência sócio-institucional. Porém, antes de querer arrumar suas malas e ir morar em Elysium, vale referir que os burocratas-corporativos, quer dizer, o corpo político responsável pela administração dessa grande Empresa Global, utilizam-se de forças militares convencionais (robots) e não-convencionais (mercenários), fazendo uso de golpe de Estado, abuso de autoridade e, enfim, tudo o quanto for possível para a manutenção do status quo e de seu enriquecimento imoderado e luxurioso.

Com certeza, pode-se afirmar que "Elysium" é uma dura crítica ao capitalismo financeiro e corporativista, concretizado nos últimos anos por políticas neoliberais. Todavia e ao contrário do que se possa imaginar, a crítica levantada pelo autor da obra é, antes, a favor de um conservadorismo e de um retorno às benesses de um sistema produtivo que tinha amparo e respaldo no individualismo iluminista e liberal de um Estado garantista. Sem querer antecipar o final da estória (spoiler alert!), a "revolução" impetrada pelos heróis não estabelece a eliminação das classes hierarquicamente superiores, nem a divisão de todos os bens sociais do trabalho. O desfecho da trama tão simplesmente se resume numa restituição: são devolvidos à população mundial aqueles direitos fundamentais que foram usurpados pelo grande capital transnacional e corrupto. Nada de revolução, nem propriamente uma reforma. Apenas restituição.

Como se poderia antever, seria bastante contraditório para a Sony Pictures ou qualquer outra grande corporação defender um posicionamento revolucionário (no correto significado do termo). Nesse gênero cinematográfico, a proposta é sempre conservadora, numa tentativa de redenção por meio da manutenção de um sistema de produção "livre" (no campo simbólico), mesmo que esse sistema não seja livre (no campo real).

É dizer: o grande alívio da platéia é constatar que os heróis e heroínas estão sempre à procura de remeter sua realidade futurística ao passado no qual se encontra a platéia, e isso, por si, seria libertário, exatamente porque redime a platéia de qualquer responsabilidade por esse futuro que está por se concretizar a qualquer instante. Mas libertário, sem ser emancipatório, exatamente porque somente os campos do real e do simbólico seriam transformados, haja vista a inexistência de uma promessa utópica (imaginário), que pusesse um fim definitivo à violência, à acumulação desproporcional e à desigualdade generalizada. Libertária porque se limita apenas à restituição das regras de um jogo competitivo, atávico e matemático, presente inclusive na personalidade dualística dos atores sociais - todos submetidos à lógica da violência, da ganância e da lei do mais forte.

Dessa forma, conclui-se que essa aposta de Hollywood em filmes que projetam cenários nos quais as sociedades vêem-se em um estado de calamidade generalizado (distopia) é, na realidade, uma ferramenta de controle muito bem organizada. Ela proporciona o ganho simbólico de redenção, na figura do herói (homo sacer) que se sacrifica em prol da continuidade do real (desta realidade), vingando-se dos anti-heróis (homo economicus). E isso só se torna possível diante da natureza dicotômica - profana e sagrada - desses heróis imaginários, cúmplices dos espectadores.

segunda-feira, 28 de outubro de 2013

A "Fortaleza apavorada" e o "apocalipse zumbi"


Existe uma grande aproximação narrativa entre o seriado televisivo "The Walking Dead" e o sentimento de insegurança que se instalou no espírito urbano de uma parte da população de Fortaleza (Ceará / Brasil). Sendo possível fazer uma metáfora entre o programa televisivo e a intitulada "Fortaleza Apavorada", talvez seja também possível demonstrar que há uma lógica inerente às novas formas de dissociação entre as diversas realidades urbanas, a partir da perspectiva da exclusão social. Assim, ficariam mais expostas as linhas divisórias -- abissais -- que dividem a cidade, de forma caricata em relação às outras capitais brasileiras. Dessa foma, estar apavorado é fugir dos nossos "zumbis sociais".


Primeiramente, vamos situar a narrativa do "apocalipse zumbi", presente na obra cinematográfica citada. Trata-se de um gênero que ganhou popularidade nos países anglo-saxões por meio da obra do europeu George A. Romero - "The Night of the Living Dead" (1968) -, no qual a humanidade é destruída por uma calamidade qualquer (vírus, bactéria, radiação etc), que transforma os seres humanos em zumbis comedores de carne humana. Sem entrar no enredo propriamente dito -- até mesmo porque há diversos filmes com a mesma narrativa, com pequenas variações --, o que importa observar é a forma como a população que consegue sobreviver à praga global entrincheira-se, de forma a evitar o contágio, visto que qualquer mordida de um contaminado e a morte transforma o sobrevivente num morto-vivo.

Nesse contexto, os "normais" são aqueles que conseguem evitar o contato e, evidentemente, a contaminação com os "anormais"; isso significa que, para continuar vivo, o grupo de humanos rivaliza necessariamente por acesso aos recursos econômicos (água, comida, remédios etc) nos espaços sociais onde há uma infestação de "comedores de gente". E como fazer para evitar ser transmudado num zumbi? Armas! Armas e muita violência, posto que essas pessoas, no seriado, vivem num estado de anormalidade, no qual todas as instituições estatais e sociais foram destruídas -- imperando a máxima de "cada um por si" e do "salve-se quem puder", diante da qual a eliminação dos fracos e contaminados é quase mandatória, para garantir a continuidade da vida e do acesso aos recursos que a garantem. 

Nenhuma outra narrativa parece tão apropriada quanto aquela, para se delinear a segunda narrativa deste texto, qual seja, da "Fortaleza apavorada". Esta, por sua vez, reside no sentimento de "abandono", que deriva da insegurança pública que transpôs os limites da periferia pobre e invadiu o centro financeiro da capital alencarina. A violência -- tanto a institucionalizada, quanto a não-institucionalizada --, que era uma realidade das comunidades carentes (favelas) que circundam o centro urbano propriamente dito, agora converte-se numa regra geral, diante da impossibilidade de se concertar os problemas inerentes à pobreza e correlata incapacidade de se controlar a criminalidade somente com o recurso à polícia.

Em outras palavras, isso significa que, enquanto a violência física (agressões, mortes, assassinatos, roubos, estupros etc) faziam parte do cotidiano apenas das pessoas submetidas à violência econômica (pobreza, marginalização etc), a camada beneficiada pelo gozo dos direitos e das facilidades do mercado levava sua vida de consumo com um certo receio: a de que esse consumo poderia ser eventualmente suprimido. Isso porque a cidadania, nos tempos que correm, resume-se à cidadania econômica de consumo; quanto mais consumo, mais cidadania, maior é a inserção social e, consequentemente, mais "normal". Significa, também, que toda e qualquer forma de comportamento que danifique ou se rebele contra a autoridade da lei do mercado -- que define essas linhas urbanas (abissais) -- precisa ser combatida com a violência física apropriada e institucionalizada, com a proporcionalidade do delito cometido (como se pudesse ser submetida à análise economêtrica, como uma grandeza de ordem econômica, e não social).

Diante disso, é necessário reconhecer duas posições nessa comparação: (a) a da maioria numérica desprovida dos recursos financeiros e do espaço urbano central, do qual só podem aspirar a utilização caso estejam a realizar serviços e a produzir bens que não irão consumir; (b) a da minoria numérica, sobrevivente às calamidades da pobreza. No primeiro espaço, há o domínio das drogas, da banalidade da violência, da violência doméstica e urbana como condições inerentes à vida. No segundo espaço, prevalece a competição pelo acesso aos bens e aos serviços e a submissão à lex mercatoria (uma lei acima do próprio Estado, supranacional) -- sendo esta última elevada à categoria de dogma (realidade inquestionável).

Diante disso, quais as soluções apresentadas pela "Fortaleza Apavorada"?

A primeira delas vem da confiança (ainda que simbólica) nas instituições sociais consubstanciadas no aparato estatal. Nesse ponto, a reivindicação é por melhoria do aparelhamento, remuneração e do efetivo das forças policiais (recrutadas, também, dentre os cidadãos com menor poder aquisitivo) -- efetivo humano que, por razão das contingências sócio-econômicas, vê-se obrigado a entrar numa mini-guerra civil com os "anormais" que se inserem no crime. Essa ótica vê no Estado um instrumento coativo legitimado apenas a manter o status quo, visto existir uma ordem normativa superior (lex mercatoria) que é a única infalível e perfeitamente apta a regular a vida social; pertence à leitura weberiana de Estado, que predomina até hoje nos bancos das faculdades de Direito.

A segunda solução é o clamor pelo direito de resposta imediato à violência oriunda da "anormalidade": a violência privada e não institucionalizada, assente na ideia de autonomia e autotutela. Essa perspectiva, ao contrário da primeira, é uma espécie de distopia; distopia não no sentido de "apego à realidade", mas de negação da utopia, pela defesa da sociedade do horror -- um aspecto da sociedade do espetáculo de que nos falava a categoria de Baudrillard. Os adeptos dessa via imaginam um cenário no qual são protagonistas da defesa de seus próprios interesses, por meio de seus próprios recursos -- armas, segurança privada, organizações para-militares e congêneres --, e fazem uso desse discurso porque possuem os meios materiais (armas, carros blindados e dinheiro, enfim), capazes de substituir as instituições sociais e os mecanismos jurídicos democraticamente eleitos para tal desiderato. Trata-se de uma representação narcisística do "eu", que substitui o grande "Outro" (sociedade), por não ver nele a possibilidade de realização de seus interesses.

A terceira e última via, e que menos reverbera nos canais tradicionais de comunicação social, é a que exige a concretude de políticas públicas que ultrapassem a linha desenvolvimentista (ou neodesenvolvimentista) e que realizem o objetivo constitucional (política e utopicamente) positivado, de redução das desigualdades sociais, por meio da não-discriminação e da efetivação dos direitos sociais mínimos (educação, saúde e condições de trabalho digno). Isso porque a "normalidade" não dispõe nem dos recursos, nem da vontade política para realizá-la, haja vista a necessária reorganização de toda a malha de relações sócio-institucionais, que implicaria numa reconfiguração política da República -- única medida capaz de corrigir as discrepâncias entre o ser e o dever ser.

E quais as similaridades entre as duas narrativas, quais sejam, a dos mortos-vivos e a dos fortalezenses apavorados?

A primeira similaridade ocorre na noção de uma necessária separação entre as duas realidades, que só pode ser garantida por meio de uma linha urbana (abissal), que continue a cumprir o seu papel de separar a "normalidade" (do consumo e da opulência) da "anormalidade" (da violências física e da sócio-econômica); separação essa que garanta uma não contaminação entre os providos de recursos materiais e os desprovidos desses mesmos recursos. Isso porque é necessário que se deixe de fazer e que se deixe passar, quer dizer, que se adote uma nova atitude política que ultrapasse a da continuidade da produção e do consumo; é preciso gerar uma "descontinuidade" nessas relações sociais dominantes. Reconhecer isso significa dar reconhecimento ao confronto entre duas urbanidades: (i) uma comum à periferia, da fome e da ausência de dignidade, e (ii) outra à "centralidade", onde se concentra o dinheiro, da plenitude dos bens e das facilidades do mercado de consumo e da opulência.

A segunda similaridade é aquela hegemonicamente traduzida através do recurso à violência institucionalizada e não institucionalizada; ela recorre ao uso da força, das armas, do aparato coativo e coercitivo, como único instrumento capaz de manter afastada a contaminação que ameaça o cotidiano do consumo e da ostentação que somente o mercado (e suas leis internas) é capaz de proporcionar. Nesse sentido, a normalidade é a sujeição a essas normas e a capacidade de usufruto desse "campo do real", na medida em que haja uma adequação entre o que se faz e o que se pode consumir, ou entre os meios e recursos, de um lado, e a medida proporcional e desigual na obtenção dos bens, serviços e acesso aos espaços urbanos, de outro lado.

A terceira similaridade vem pela destruição discurso da terceira via, que seria a reestruturação da sociedade, por meio de regras humanitárias e solidárias que simplesmente não são mais aplicáveis, ante o horror generalizado pela tomada dos espaços sociais pelos "anormais". Essa é a mais cruel de todas as similaridades, pois reconhece que houve (ou que há) um discurso jurídico-político de inserção social, mas que lhe nega qualquer eficácia. A cidadania isonômica é uma promessa que não pode ser cumprida, uma das duas razões: (1) para que ele se cumpra, é necessário suspender as benesses do mercado, sacrificando o consumo e reestruturando a divisão social da riqueza; (2) não vale a pena defendê-lo, pois as pessoas que se beneficiariam dele -- os "anormais" -- não estariam aptos a gozar da "normalidade", por já estarem inaptos ao convívio com os normais (não há cura para a infestação apocalíptica dos zumbi). Diante dessas duas razões (hipotéticas), de uma forma ou de outra, a periferia teria que ser "centralizada", e isso seria o fim do espetáculo proporcionado entre os objetos do consumo e as desigualdades (diferença na concentração do poder social) que eles proporcionam. A única promessa viável é a cidadania econômica, centrada no consumo daqueles que "já possuem".

Antes de se concluir, deve-se reconhecer que o desastre escatológico (apocalíptico) sempre indicou aos humanos que a normalidade diante do horror só se realiza com apelo ao carpe diem -- prática social necessária à continuidade dos modelos de organização social. O "deixai fazer, deixai passar" também é um modelo ideológico subjacente à continuidade, pois se propõe a demonstrar a necessidade de uma conduta permissiva que conduza a um fim (no sentido escatológico) -- representa o "destino final": a síntese que põe termo ao sofrimento e à existência humana, diante de uma lei superior, inquestionável e fatal, sendo, por si, uma estratégia fatal. 

Portanto, o "anormal" é resistir à essa resolução, resistir à morte, à corrupção da carne e do sangue. Insistir em ser -- é essa a estratégia do morto-vivo --  é um comportamento que revoluciona, que se opõe à evolução natural, às "fatalidades" e à morte. Ser um morto-vivo (undead)  reorganiza, traz de volta à vida o que é podre, o que está em decomposição, alterando as dinâmicas do espaço-tempo humano: a insegurança reside no fato de que os "anormais" clamam os espaços (e os bens) materiais dos "não infectados", mesmo que para isso tenham que matá-los. Enquanto isso, os "normais" tem que eliminar os mortos-vivos, ou continuar aquartelados e enclausurados nos condomínios e nas fortalezas... e a urbe segue seu rumo.


quarta-feira, 19 de junho de 2013

O "Gigante acorda": acordou para o que?

Nas últimas duas semanas, temos assistido a um fenômeno bastante interessante no Brasil: insurgências em diversas capitais brasileiras, que colocaram o povo na rua, contra os interesses dos governos de Estados e municípios. Houve também repercussão nacional, quando a Presidente da República, senhora Dilma Rousseff foi vaiada no jogo de abertura da Copa das Confederações. Some-se a isso a manifestação inaugural, na cidade de São Paulo, que desencadeou o processo, exatamente no centro da força econômico-financeira do País.

Mas existe um movimento político organizado? Onde foram organizadas essas manifestações? As informações passadas pelas empresas de comunicação privadas estão sendo manipuladas contra os manifestantes?

A primeira informação relevante acerca das manifestações é que a maioria é composta por donas de casa, trabalhadores da iniciativa privada, funcionários públicos, desempregados, estudantes e professores universitários. É uma massa disforme, não organizada de pessoas que, movidas por vários interesses, convergiram para formar uma multidão de indignados com os mesmos desafios de sempre: inflação, desemprego, corrupção, ineficiência do Estado diante das políticas públicas relativas à saúde, transportes, educação, infraestrutura dentre várias outras.


Um fator também relevante na mobilização popular é óbvia: o fato de o Brasil estar em foco, diante da realização da Copa das Confederações, orquestrada pela FIFA. No País do futebol, alguém reportou, seria natural que os brasileiros aproveitassem o momento para protestar. E protestam, inclusive, diante de diversas exigências relativas a deveres impostos ao governo brasileiro, relativos à segurança e direitos sobre produtos e serviços prestados aos espectadores nos estádios, e assim por diante. Diante dos olhos de milhões de brasileiros, viu-se o governo federal e dos Estados-membros dobrarem-se diante das exigências de tal organismo internacional, além, obviamente, dos elevados gastos públicos com a construção de estádios de futebol e outras obras - todas atrasadas, super-faturadas e, como se declara à boca miúda, objetos de fraudes com desvio de verbas.

Essa multidão organizou-se nas mídias sociais digitais, notadamente, no Facebook e Twitter. A versatilidade dessas mídias, que podem ser acessadas da maioria dos dispositivos de comunicação móvel (telefones celulares, tablets e afins) favoreceu a organização e a disseminação de diretrizes aos manifestantes. Os encontros têm sido marcados em páginas, onde o manifestante consegue não apenas as informações sobre as passeatas, como também arregimenta a participação de colegas e familiares, aos eventos programados em locais públicos.

O interessante desse suporte digital é que, por comportar conteúdo audiovisual, ele tem servido, também, como veículo de comunicação social, demonstrando a truculência com que as autoridades públicas têm tratado os manifestantes. Não é incomum, sendo correto afirmar que abundam fotos e vídeos sobre ataques de ambos os lados - e a violência surge, aqui, como um tema também a ser discutido.

De fato, tanto os governos, quanto os insurgentes alegam que há violência: os manifestantes são acusados de depredar o patrimônio público, além de causar transtorno ao trânsito e aos demais membros da população; os governantes são acusados de usar a força policial para amedrontar e agredir a população. Importante, contudo, é ressaltar o seguinte: estas manifestações são compostas por uma "panaceia" de indivíduos (uma variedade de opiniões e matizes culturais capaz de curar todos os nossos "males" sociais); dentre esses indivíduos, existem aqueles que apelam à violência, e que tem sido até controlados por outros manifestantes. O que é importa é afirmar: a violência e a depredação do patrimônio público e privado não têm sido os objetivos nem a tônica do movimento - a despeito do que temos assistido nas empresas de comunicação televisiva; o movimento tem natureza pacífica.



Quanto aos que se indignam diante disso tudo, um recado breve: esse é um fenômeno social interessante, inovador e que pode ser útil para o aprofundamento da democracia brasileira. Jorge Hélio, meu antigo professor de Direito Constitucional e, atualmente, conselheiro do Conselho Nacional de Justiça, fez a seguinte provocação: "Que tipo de democracia queremos? Uma democracia de manifestações pacíficas? Ou de demonstrações violentas?". Esse questionamento deve ser encarado da seguinte forma: ambas são formas qualificadas de democracia; compete ao povo escolher qual das duas prefere. E a quase-totalidade dos insurgentes escolheram manifestar-se pacificamente.

No meio disso, está a mídia tradicional, sendo acusada de selecionar as informações que são repassadas ao grande público, tendenciosamente favorecendo os interesses dos industriais e governantes. Nesse aspecto, várias são as opiniões e estudos que podem ser chamadas a explicar essa tendência da mídia tradicional, mas prefiro apelar para a seguinte: na composição da mensagem que é passada ao público, além de outros fatores, imperam tanto o sensacionalismo que movimenta os índices de audiência, quanto a óbvia falta de uma percepção sistêmica do problema. Também é cediço que sempre se opta por este ou aquele padrão editorial, que beneficie este ou aquele interesse, mas conjecturar sobre isso é abrir a discussão para um viés que, neste texto, não é a principal "linha editorial" - e o que demandaria um esforço enorme, já realizado em outros documentos lançados neste blog.



Escolhemos a subsidiariedade: aqueles que estão em contato direto com o conflito têm melhores condições de resolvê-lo e maior legitimidade para falar sobre ele. Não pode haver uma dúvida sequer: este é um movimento político, de uma sociedade civil desorganizada. Não está sendo dirigido, até o presente momento, por nenhum partido político, mas é um movimento político. Embora o significado desse termo tenha se perdido nos últimos anos, ele é também ideológico: efêmero e desprovido de essência. Como tudo o que vem se produzindo no campo do social, não há solidez de princípios, nem um foco exclusivo de atuação. Chega a congregar setores político-partidários que, tradicionalmente, são antagônicos, mas tem por mérito a re-utilização e re-significação do espaço público. É uma forma de (des)organização política: informal, autóctone e soberana.

Entretanto, é muito conveniente ressaltar o seguinte: esse movimento ainda é, e provavelmente ainda será durante muito tempo, observado com muita desconfiança pela sociedade brasileira. Não temos a tradição de nos rebelar, porque nossa capacidade política se resume à participação no processo eleitoral, que tem uma periodicidade num interstício de 02 anos. Fomos acostumados a um distanciamento das questões políticas; um ditado popular estabelece que "futebol, religião e política não se discute". Esse dizer popular revela que essas três paixões encontram-se num mesmo nível, e ajudam a compor o imaginário sentimento de pertença da população, unificada culturalmente em torno de alguns "símbolos nacionais": samba, futebol, carnaval e obediência.

Isso significa, também, que espera-se dessa insurgência um comportamento compatível com o estado de torpor que uma sociedade economicamente emergente precisa, para que possa continuar a haver o consumo de bens. É notório e, de uma certa forma, escandaloso que o sistema econômico precise limitar as manifestações populares a níveis ponderados de manifestação democrática; em recente entrevista, o Secretário-Geral da FIFA chegou a afirmar que uma Copa do Mundo organizada num país autoritário, como a Rússia, seria menos problemático do que uma organizada na Alemanha ou no Brasil, onde há democracia. Essa afirmação reconhece a complexidade das demandas sociais, consideradas atentatórias à segurança do consumo dos produto-serviço oferecidos pela FIFA; tal perspectiva teme que a visibilidade do evento seja catalizador de novos protestos e revolta populares. Mas isso também pode ocorrer numa paralização de uma categoria qualquer que, durante um dia semana, no horário comercial, bloqueie uma avenida e impeça outros trabalhadores de trafegar rumo ao trabalho, ou impedir que os consumidores se dirijam aos shopping centers (me ocorreu a origem estrangeira do termo, neste instante...). Segurança para o consumo, segurança para o lucro.

O espaço público, agora, se desloca para um outro lugar. Esse lugar é digital, virtual, mas é tão real como a extinta praça pública. Ele é composto por bits e bytes, e ainda não está completamente regulado, porque é caótico na sua composição, dinâmico na sua entropia e negentropia, e sistêmico na sua operacionalização. Todas essas caracterísitcas tornam bastante difícil um controle sobre as informações que são ali difundidas. Se é certo que um serviço possa ser bloqueado e até mesmo fechado, é também correto que outros sítios agregadores surjam, com velocidade superior à da burocracia estatal. Se as pessoas estão confinadas em seus apartamentos e casas, com cercas elétricas e sistemas privados de segurança; se a praça pública é o espaço da droga e do crime, o cidadão encontrou um novo local para as suas demandas e organização política, e tem partido desse não-lugar de volta às ruas, à praça pública. Liberdade de locomoção, liberdade de expressão e manifestação do pensamento.

As empresas privadas e públicas de comunicação social continuam a ter uma maior inserção, no que pertine ao alcance de zonas rurais e nas camadas sociais sem acesso à Internet (ou que ainda utilizam-na precariamente, como fonte de informação). O que impõe aos insurgentes o desafio de transpor os limites sócio-econômicos naturalmente associados à tecnologia de informação, e de levar as informações sobre o que está ocorrendo ao resto da população.

Por fim, compete-nos avaliar duas coisas: (1) está havendo um conflito jurídico-político, no Brasil e (2) nossa democracia está amadurecendo. Nós que clamamos uma nova hermenêutica, efetuada sobre uma Constituição aberta (para utilizar a expressão de Peter Häberle), e que desejamos nos inscrever como membros de uma comunidade internacional civilizada, precisamos considerar se vamos sacrificar nossa liberdade em prol da segurança; se vamos aquietar nossas indignações e assegurar nossos interesses de mercado (sim, fazemos parte dele, pois somos produtores-consumidores de bens e serviços, e não nos resta mais nenhuma gota de hipocrisia para esconder isso). Temos que decidir, ainda, se vamos continuar vivendo numa Democracia não-democrática. Esse é o legado que temos a deixar, para a próxima geração.

Fotos e vídeos recolhidos na manifestação ocorrida hoje, na cidade de Fortaleza, registrando a violência policial patrocinada pelo Governo do Estado do Ceará.

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

Direito e Força

O pensamento analítico ocidental define força como tudo aquilo que possa mudar o estado no qual se encontra um objeto. Para isso, foram formuladas duas classificações na Física, que podem ajudar o jurista a compreender o conceito de força. A primeira, é a força de campo: uma força que age à distância, e provoca uma alteração no estado inicial de um corpo. A segunda, é a força de contato: que necessita de dois objetos em contato, para que possa haver a transferência de energia capaz de alterar o status corporis, pelo contato da matéria.


Mas, por que falar de  Física, para comentar acerca do Direito? Por dois motivos. Primeiro, porque precisamos recorrer a conceitos externos à nossa disciplina, que devolvam aquilo que estudamos ao mundo natural; o Direito é um fenômeno social, parte do mundo dos fatos, vez que o ser humano não está dissociado da natureza - embora isso contrarie o pensamento positivista. Segundo, porque a mente humana lida bem com metáforas; o processo cognitivo segue, dentre outros fenômenos menos nobres, algumas etapas racionais: do concreto para o abstrato, do abstrato para o abstrato pensado, e do abstrato pensado para o concreto pensado. O ser humano, portanto, ao passo em que é transformado pelo conhecimento, impregna os objetos do mundo com o seu raciocínio, com significados, modificando a sua forma de percepção do real. Assim, por utilizarmos uma linguagem transversal, podemos atingir objetivos mais amplos do que se utilizarmos apenas a habitual.

Dessa forma, podemos assumir que o Direito é um fenômeno do mundo das idéias, que se transfere à realidade por meio da ação humana: atos que são praticados por meio de forças, de razões e, também, de sentimentos ou emoções, do acaso e de contingências sócio-ambientais. Não precisamos dizer que esse fenômenos é registrado documentalmente, dispendendo o trabalho de muitos, quer para sua conservação, quer para sua transformação.

As percepções de mundo e ações humanas são traduzidas em forças de campo e forças de contato, respectivamente: aquelas que dirigem a tomada de decisões, controlando ideologicamente as atitudes, são forças de campo, como a Moral, as religiões, o Direito, a Economia, Psicologia, Matemática e tantas outras normas sociais; essas não precisam do contato: são referenciais teóricos que guiam o agir, instituídas quer através do consenso, quer através da violência. E, por falar em violência, as forças de contato são aquelas atribuições exercidas pela Sociedade, amparadas pelas forças de campo: as instituições estatais e empresariais, os agentes estatais, as pessoas incumbidas da função de punir, prender e controlar, que executam suas funções interagindo com os indivíduos, por meio das relações intersubjetivas que colocam as pessoas em contato e, caso as "leis das forças de campo" sejam descumpridas, praticarão atos para reorganizar a matéria.

Ocorre que, ao contrário das forças de campo naturais, como a gravidade, o ser humano não é capaz de criar as suas "forças de campo" de forma a que atuem de forma perfeita; por não dispor de uma visão holística do Universo, e por estar limitado aos padrões não só de análise mas por questões biológicas que o impedem de ter uma visão do todo, a humanidade produz leis e códigos de conduta baseados na sua percepção que, sedo muito alargada ou reduzida - não importa -, jamais age prevendo todas as possibilidades e certezas.

O mundo natural e o social, o universo circundante, todos os elementos que nos cercam trazem uma infinidade de informações; todas as variantes de uma determinada realidade observada só tornam possível a descoberta de pequenas probabilidades. Mesmo que possamos deduzir um evento imediato a uma determinada ação, já podemos imaginar os infinitos desdobramentos que um simples ato poderá ter no futuro, afetando vários outros atos, em cadeia, até os limites da imponderabilidade - tornando-nos incapazes de prever o futuro.

Essa nova forma de observar o mundo foi-nos trazida pela Física quântica, que colocou em causa todos os conhecimentos adquiridos pela Mecânica e, dizem alguns estudiosos, pondo em causa até a Termodinâmica. Medindo as menores partículas que compõem a matéria, os cientistas descobriram que não é possível medir, ao mesmo tempo, a velocidade e a posição de um elétron, por exemplo; isso significa que, todas as vezes que tentamos descobrir a velocidade de um elétron, alteramos a sua posição, e vice-versa. Da mesma forma, se fizermos um furo numa cartolina, e colocarmos uma fonte luminosa (uma lanterna) por detrás dessa cartolina, com os raios de luz incidindo sobre o furo, observaremos uma projeção desfocada, porque fizemos com que o fóton se comportasse, ao mesmo tempo, como onda e como partícula, alterando tanto a onda quanto a partícula.

Mas, qual a influência dessa imponderabilidade no Direito e em outras áreas do conhecimento humano? Profunda. Devemos tomar consciência de que todas as tomadas de decisão são tão limitadas quanto nossas percepções; mesmo que dispuséssemos de todas as informações, não teríamos como prever eventos que se encontram adiante da nossa capacidade ante o imponderável. As análises simplistas que juristas, economistas e todos os "istas" disponíveis e de plantão fazem sobre a realidade serão sempre limitadas pelo acaso. Foi por isso que desenvolvemos uma ferramenta bastante útil: o diálogo, no qual cada uma das partes envolvidas por um problema pode apresentar o seu ponto de vista desse mesmo problema, aumentando, assim, o leque de possibilidades de solução.

Daí a importância de termos forças de campo que sejam bastante cuidadosas na operacionalização das forças de contato: o mau emprego dos recursos naturais, o mau uso da violência (essa temível e necessária característica bio-antropológica), o mau uso dos recursos econômico-financeiros (...), todos os riscos inerentes às nossas ações devem ser exaustiva e finamente calculados porque, mesmo que ainda nos arvoremos como únicos intérpretes do mundo natural, temos que nos lembrar não só das análises limitadas que fazemos, mas, também, temos que levar em conta o imponderável, o imprevisível. Nesse contexto, nós elegemos o Direito como uma força de campo no controle e prevenção de riscos: embora não seja uma ferramenta útil para repará-los ou remediá-los, impõe limites e previne-os, diante das experiências passadas.

Por falar em imprevisível, olhemos para o ser humano e a infinidade de condições na qual se encontra. Uma análise objetiva do sujeito poderá ser útil a alguns interesses imediatos, localizáveis no tempo presente, como o de ter acesso às riquezas naturais e sociais, como os minérios e o dinheiro. Mas essa análise objetiva do sujeito é, além de egoísta, quer dizer, além de desconsiderar a alteridade, aliena o observador ou a observadora, tornando-o insensível quanto a posição do outro que, porventura, esteja submetido à dificuldade ou à opressão, ou seja, em condição objetiva diferente em relação àquele que analisa. Uma análise subjetiva do sujeito também apresenta riscos: pode induzir à massificação e à perda de identidades, diante de um súbito desejo que brota no observador ou na observadora, da padronização, generalização e igualitarização, por meio de um desejo de que os fenômenos e pessoas sejam vistas à sua maneira.

Isso nos indica que o Direito, como uma força de campo, é um instrumento à nossa disposição para substituir a violência, como força de contato. Mas, como todo instrumento, não é bom, nem mau, e muito menos, um bem ou mal (do ponto de vista moral). Embora seja um bem ontológico, no sentido patrimonial, pois fruto da cultura, alerta-nos para o fato de que existe a violência, e que ela poderá ser utilizada, como último recurso.

Por isso, por ser um objeto do mundo cultural, o Direito é útil ou inútil. Ele também pode ser o fruto de uma violência anterior, que moldou um organismo social, fazendo-o aceitá-lo, e que pôs fim a um outro regime anterior. Mas, devemos nos lembrar que as sociedades humanas sempre tiveram modelos de normas de conduta, e que são elas que nos orientam à compreensão da realidade circundante. Por meio de erros e acertos, construímos e registramos a História, deixando de contar esse ou aquele detalhe que, na altura do registro, parecia irrelevante - por isso, não temos uma única e verdadeira compreensão do real, pois houveram várias narrativas silenciadas nesse processo.

Para mudar tudo isso, seria necessário reinventar tudo: do ser à coisa, atribuindo novas interpretações a tudo, por meio de análises, sínteses, lógicas e dialéticas reinventadas.

Portanto, se quisermos admitir que o Direito é uma força - diante da precariedade e das limitações das linguagens -, temos que perceber que é uma força bem distinta da violência. A sua composição, como tudo, depende da cognição humana. E essa cognição é o nosso autêntico problema. Que mundo? Que Direito? Quo vadis?