terça-feira, 22 de abril de 2008

"Libertem a Língua" - Por Boaventura de Sousa Santos

(Publicado na coluna Visão, em 17/04/2008)

"Sendo a ortografia uma pequena dimensão da vida da língua, seria legítimo esperar que não fosse necessário o acordo ortográfico ou que, sendo-o, pudesse ser celebrado sem dificuldade nem drama. No caso da língua portuguesa assim não é, e há que reflectir porquê. A razão fundamental reside no fantasma do colonialismo inverso que desde há séculos assombra as relações entre Portugal e o Brasil. Durante séculos, a única colónia com propósitos de ocupação efectiva no império português, o Brasil, foi sempre e simultaneamente um tesouro e uma ameaça grandes de mais para Portugal. Depois de um curto apogeu no séc. XVI, Portugal foi durante toda a modernidade ocidental capitalista um país semiperiférico, isto é, um país de desenvolvimento intermédio, desprovido dos recursos políticos, financeiros e militares que lhe permitissem controlar eficazmente o seu império e usá-lo para seu exclusivo benefício. Teve, pois, de o partilhar desde cedo com as outras potências imperiais europeias, e foi por conveniência destas que ele se manteve até tão tarde. A partir do séc. XVIII, Portugal foi simultaneamente o centro de um império e uma colónia informal da Inglaterra. À semiperifericidade de Portugal correspondeu a semicolonialidade do Brasil, tão bem analisada por António Cândido, a ideia contraditória de um país mal colonizado e superior ao colonizador, um país que resgatou a independência de Portugal e que, logo depois da sua própria independência, foi visto como uma ameaça aos interesses de Portugal em África. A relação colonizador-colonizado entre Brasil e Portugal foi sempre uma relação à beira do colapso ou à beira da inversão. Até hoje. É essa indefinição que torna tão necessário quanto difícil o acordo ortográfico. Do lado português, a posição ante o acordo assenta sempre na ideia de “rendição ao Brasil”, tanto para o aceitar como para o recusar. Em ambos os casos, o fantasma do colonialismo do inverso, em vez da ideia libertadora do inverso do colonialismo.

"Acontece que hoje a inconsequência do acordo tem consequências que não tinha, por exemplo, em 1911. Em 1911, o acordo teve lugar entre dois países em que a língua portuguesa era a língua natural. No caso português, o colonialismo proibia que as línguas nacionais faladas nas colónias fossem um problema linguístico, no caso do Brasil, o colonialismo interno impedia que as línguas indígenas existissem. Portugal considerava-se o dono da língua portuguesa, mas porque não o era de facto, o acordo só começou a ser implementado em 1931. Hoje são oito os países de língua oficial portuguesa, e em seis deles a língua portuguesa coexiste com outras línguas nacionais, algumas delas mais faladas que o português. Nestes países, o contexto da política da língua é muito mais complexo. Mexer no português só faz sentido se se mexer nas línguas nacionais, e mexer nestas, em países que há pouco saíram de uma guerra civil, pode ter consequências bem mais graves que as do drama bufo luso-brasileiro. Por estas razões, deviam ser estes países a decidir o desacordo, mas pelas mesmas razões é pouco provável que aceitassem tal magnanimidade.

"Neste contexto, a língua portuguesa deve ser deixada em paz, entregue à turbulência da diversidade que torna possível que nos entendamos todos em português. Revejo-me, pois, no comentário irónico e contraditório de Fernando Pessoa aos acordos ortográficos, escrito em 1931, ano em que se implementava o acordo de 1911: “Odeio ... não quem escreve em orthographia simplificada, mas a pagina mal escrita, como pessoa propria, a syntaxe errada, como gente em que se bata, a orthographia sem ipsilon, como o escarro directo que me enoja independentemente de quem o cuspisse.

"Sim, porque a orthographia também é gente. A palavra é completa vista e ouvida. E a gala da translitteração greco-romana veste-m’a do seu vero manto regio, pelo qual é senhora e rainha”.

"Apesar de transcrito na ortografia de Pessoa, foi difícil entender este passo?"

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Boaventura de Sousa Santos: Doutorado em Sociologia do Direito pela Universidade de Yale (1973). Professor Catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, Distinguished Legal Scholar da Universidade de Wisconsin-Madison e Global Legal Scholar da Universidade de Warwick. Director do Centro de Estudos Sociais da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra. Director do Centro de Documentação 25 de Abril da Universidade de Coimbra. Director da Revista Crítica de Ciência Sociais.

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