domingo, 20 de abril de 2008

Lex mercatoria versus Democracia

O "Fim da História e o Último Homem" de Fukuyama celebra o capitalismo como a síntese do conflito social humano -- seria isso verdade? Os economistas neoliberais decretam o fim do Estado e o surgimento de um mercado livre, de um comércio livre, num mundo globalizado -- seria isso prudente ou verdadeiro, quer dizer, existe algum mercado ou comércio "livre"? Qualquer ativista social deve seguir essas e outras (várias) indagações, com vista a perceber o que se passa no mundo contemporâneo e, assim, saber em que direção deve atuar por um mundo melhor, mais justo e mais responsável.

Com efeito, o estudo atento dos fatos políticos, econômicos e sociais dos últimos 150 anos demonstra que a diminuição do poder estatal é inversamente proporcional ao fortalecimento do poder do mercado (quanto menos Estado, mais mercado). Alguns autores alegam que as revoluções liberais e a implantação do capitalismo como sistema de produção trouxeram consigo as liberdades civis e políticas. Porém, isso é um fato que precisa ser analisado do ponto de vista prático, para que se deslinde uma falácia teórica: quando partimos para a análise da aplicação desses direitos de primeira geração, ela revela que o "jogo democrático" da democracia liberal não passa de um estratagema meramente jurídico-formal, fundamentado em abstrações ideológicas que esvaziaram o espectro de influência do poder social, substituindo-o pelo poder econômico. Assim, é possível e correto dizer que a lex mercatoria (lei do mercado) é um imperativo de regulação social que se impõe acima de todos os poderes sociais, posto que foi elevado à categoria de único caminho lógico -- constitui-se numa tautologia, indispensável ao funcionamento de qualquer Sociedade.

Também, convém dizer que o modelo de Estado liberal, nas suas mais variadas configurações, utilizou-se do poder social (soberania) para a coação e coerção da Sociedade (opressão da maioria), em benefício das classes dirigentes (governo pela minoria). Na utilização ilegítima desse poder, os liberais jogaram as instituições sociais umas contra as outras, e o uso da violência contra os civis foi prática comum em todos os lados. Mas convém também lembrar que esse tipo de violência pública não é característica apenas do liberalismo; em qualquer momento da História é possível detectar o mal-uso do aparato militar, ou do Judiciário contra as populações. Contudo, veja-se que as instituições não existem; o que existem são homens e mulheres imbuídos no cumprimento do dever; o que importa a nós é dizer qual é esse dever: o exercício da cidadania numa Sociedade civil organizada.

Diz-se aquilo, porque pensa-se que só existe um remédio, uma idéia capaz de vencer a mal aplicação dessas forças, ou um antídoto ao uso anti-social e ilegítimo do poder: a Democracia direta e participativa. Quanto mais Democracia, melhores são as instituições estatais e sociais e melhor é o Estado. Não é possível de se pensar o fim do Estado sem que tenham surgido soluções para a dominação imperial dos povos do Norte global, como seria uma estupidez admitir um completo esvaziamento do poder de pressão (uma das expressões da soberania) sobre as classes dirigentes por uma maior participação direta das populações nas decisões governamentais. Ora. É muito conveniente esvaziar as funções e influência coercitiva do Estado, conforme ganha força e se assenta no imaginário popular a idéia de uma verdadeira e crescente Democracia; o avanço das tecnologias de comunicação e o acesso à informação a ele associado proporcionaram o ambiente ideal para o florecimento dos ideais democráticos e contestatórios ao modelo de Estado liberal instituído.

Nenhum argumento pode sobreviver à falta de evidências. Então, podemos dar alguns exemplos dos reais desafios que se colocam perante as populações de países periféricos e semi-periféricos, que se constituem em justificações para uma manutenção e fortalecimento das instituições estatais: 1) a existência de forças paramilitares privadas (também demoninadas de "empresas de segurança privada), que levam a cabo as operações sujas do capital internacional, em intervenções e operações militares ilegais em países não alinhados à lógica da lex mercatoria (Iraque, Afeganistão, Colômbia, Nigéria, Dafur e etc.); 2) é preciso assegurar a existência de uma força interna que seja capaz de fazer valer a vontade geral e aplicar o consenso social e democrático (por exemplo, é assim que a revolução bolivariana e cubana ainda resistem, isto é, com o apoio das instituições policiais e militares democratizadas); 3) a ambição na acumulação de capital não justifica o esvaziamento das funções estatais, simplesmente porque as entidades privadas só vendem um determinado serviço enquanto ele for lucrativo, ou se sua implementação for economicamente viável (assim, distribuição de água e saneamento básico, segurança e polícia, educação e outras atividades são funções públicas).

Se observarmos cada um dos pontos sugeridos no parágrafo anterior, podemos avançar com os seguintes argumentos: 1) antes de intervir militarmente, seria mais eficaz a não comercialização e o combate ao tráfico de armas de fogo àquelas regiões (assim, a "ajuda humanitária" seria novamente interpretada como o envio de comida, medicamentos, serviços e etc., ao invés de significar "envio da guerra"); 2) as forças de segurança pública podem ser democratizadas, ou seja, o Estado pode aplicar justiça e garantir segurança à Democracia (quem sabe um dia elas podem garantir a distribuição equitativa de riquezas); além do mais, como é óbvio, o mundo (ainda) não é um lugar seguro, havendo uma desigualdade gritante entre classes sociais e, ao passo que aumenta essa clivagem entre elas, aumenta a violência; 3) o interesse privado não pode prevalecer diante do interesse público, posto que o discurso da "liberdade" não pode ser um monólogo (a liberdade sem igualdade e solidariedade é escravidão).

Faz parte do imaginário acadêmico pensar no Estado (forças armadas, Judiciário, Legislativo, Executivo e etc.) como um monstro qualquer a ser eliminado; mas o fim do Estado burguês e a instituição de uma nova Sociedade -- sem o controle do "Leviatã-burguês", na qual haveria justiça social e liberdade -- é um projecto social. Essas mudanças não podem ser executadas de qualquer forma ou sem estratégias que reforcem o poder social; pensa-se que o aparato institucional do Estado só possa servir aos interesses de uma tal classe dominante e que eles devam ser eliminados da face da terra. Mas convém observar essas idéias com maior atenção, pois o atual estado das coisas sugere uma abordagem um tanto mais cuidadosa desses "ideais".

Portanto, algumas lições de cidadania são capazes de alertar para os perigos de uma Sociedade sem Estado: enquanto o sistema de produção for o capitalismo, a ausência do Estado se converte numa "anarquia capitalista de mercado"! Os riscos de um sistema anárco-capitalista são evidentes: a exploração absoluta é sinônimo de Poder absoluto, e todo poder absoluto corrompe absolutamente.

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