domingo, 2 de dezembro de 2012

O "Mensalão" e o "jus esperniandi"

Um dos assuntos políticos mais polêmicos da atualidade orbita em torno do julgamento da Ação Penal nº 470, julgada pelo Supremo Tribunal Federal (STF). É um caso interessante, pois ressalta a competência do STF, para o julgamento de crimes comuns e de responsabilidade que sejam cometidos por ministros de Estado, conforme disposto no art. 102 da Constituição Federal. O debate gira em torno de um comprometimento político do julgamento, o que teria afetado a jurisdicidade do processo.



O Supremo, como sabemos, é um órgão composto não necessariamente por juízes, mas por juristas, quer dizer, a Constituição Federal não faz nenhuma exigência de que os seus membros tenham pertencido, anteriormente, ao Poder Judiciário. Basta que os ministros tenham notável saber jurídico e reputação ilibada, sendo escolhidos entre brasileiros de 35 a 65 anos de idade, dentre outras exigências. A nomeação dos ministros dá-se por ato do Presidente da República, depois de aprovação pelo Senado Federal. É, portanto, um órgão de natureza política, ligado diretamente à estrutura democrática da República. No caso sob exame, vez que recebeu a competência descrita no art. 102 da Constituição Cidadã, não pode ser considerado tribunal de exceção. O infortúnio de quem lá é julgado originariamente é não poder recorrer a nenhum outro tribunal nacional.

Ocorre que, iniciada a persecução criminal dos acusados de crime de corrupção, com integrantes do chamado "núcleo duro" dos governos de Luis Inácio Lula da Silva e da atual Presidente Dilma Rousseff, o proselitismo político se arvorou como fundamento exclusivamente válido para discussões de natureza jurídica, diante do apoio popular de que goza o Partido dos Trabalhadores (PT) – que, neste caso, representa a situação, isto é, ocupa a direção do Estado brasileiro e tem, portanto, grande força política.

Só que, ao que tudo indica, a “coisa tomou um rumo inesperado”, como se diz coloquialmente. Um dos ministros do STF, o doutor Joaquim Barbosa, nomeado ao cargo pelo Presidente Lula, ao contrário do que poderia imaginar o leitor incauto, protagonizou uma das mais árduas batalhas jurídico-políticas que a Corte Constitucional já teve oportunidade de assistir.  Utilizando a teoria de domínio do fato, o ministro e seus colegas condenaram José Dirceu e outros integrantes do PT como incursos nos crimes de corrupção ativa e passiva, de acordo com a conduta individual de cada réu. Esse fato gerou, como afirmado acima, uma disputa política em torno de questões eminentemente jurídicas, que revela não a fragilidade dos conceitos e institutos jurídicos, mas a implicação direta de outros sistemas (ética, política, economia, dentre outros) no sistema jurídico.

Uma leitura técnico-jurídica de Cesare Beccaria, considerado o pai do Direito Penal moderno, revela ao jurista que, embora não tenha explicitamente adotado a teoria, ele a teria previsto de forma implícita em sua obra “Dos Delitos e das Penas”, Capítulo XXXVII, ao tratar da Tentativa, Cúmplice e Impunidade, ainda no século XVIII:
“não é porque as leis não castiguem a intenção, que o crime deixe de merecer pena, delito que comece com ação que revele o ânimo de cometê-lo, ainda que a pena seja menor do que a aplicável à própria prática do delito. A importância de prevenir a tentativa autoriza a pena, mas, assim como pode haver intervalo entre tentativa e execução, reservar pena maior ao delito consumado pode ocasionar arrependimento. Diga-se o mesmo quando houver vários cúmplices do delito, e não todos eles executores imediatos, mas por diferentes motivos. Quando vários homens se unem num risco, quanto maior for esse risco tanto mais eles procuram tornar igual para todos. Será, pois, mais difícil achar quem se contente com o papel de executor do delito, correndo maior risco do que os outros cúmplices. A única exceção seria a hipótese em que fosse prometido prêmio ao executor, caso em que, tendo ele, então, recompensa pelo risco maior, a pena deveria ser igual”.
Em artigo recentemente publicado, o professor Róger Augusto Morcelli, especialista em Direito Penal, explica melhor não apenas os objetivos da teoria, mas a sua aplicação às organizações criminosas. Considerando que o fato imputado a alguns membros do PT envolve o planejamento e execução do delito popularmente chamado "Mensalão", não haveria outra alternativa ao STF, diante da natureza do crime: o julgamento do núcleo político do Partido encaixa-se na Lei do Crime Organizado, pois há uma dissociação entre o planejamento e a execução do crime. Trata-se de lei especial, que ultrapassa o disposto nos arts. 29 e sucessivos do Código Penal. A doutrina da teoria do domínio do fato não foi uma invenção do Supremo Tribunal Federal. A doutrina alemã já adota essa abordagem, desde 1939.

Vejamos o que afirma o professor de Direito Penal, Róger Augusto Morcelli:
"Se não adotada a Teoria do Domínio do Fato no caso de organizações criminosas, os verdadeiros mandantes e organizadores não poderiam ser penalizados a não ser como meros partícipes, pois em geral não praticam a conduta prevista nos tipos penais. Assim, aqueles que realmente deveriam ser apenados de forma mais grave, por se tratar dos verdadeiros mentores do delito, acabariam recebendo pena menor que a do executor do fato, o qual poderia ser qualquer pessoa a quem o mandante – chefe da organização criminosa imporia a ordem para praticar a conduta delituosa" (MORCELLI, 2012).
Dessa forma, não obstante ter havido a aplicação de um preceito normativo diverso daquele contido na lei objetiva penal geral, é óbvio que houve um julgamento político na apreciação dos fatos da AP 470 / STF. A Corte Constitucional, além de ter essa mesma natureza jurídico-política – porque é a guardiã do Direito Político nacional --, atuou no processo utilizando-o como um instrumento jurídico-social de controle, que está vinculado às finalidades jurídico-políticas do ordenamento brasileiro.
Finalmente, vale relembrar que o magistrado é um profissional que não deve olvidar suas experiências adquiridas e suas origens sociais. Tem-se por superada a noção de um juiz neutro, pois é ser humano, inserido num contexto social específico, homem ou mulher de seu tempo e submetido às pressões da opinião pública, além de estar vinculado aos valores morais, religiosos, culturais, enfim, sendo criatura submissa às suas convicções, sejam elas quais forem.

Portanto, é muito natural assistir discussões acadêmicas acaloradas, que tenham por base discutir os aspectos jurídicos do “Mensalão”. Essas discussões, como todas as outras, são também políticas, haja vista que existem políticas universitárias, de ensino e assim por diante, todas elas contendo uma inclinação ideológica, explícita ou implicitamente. Essa é uma das vantagens da Democracia, que tolera o debate de ideias. Porém, cumpra-se a decisão do Supremo, e prendam-se os condenados, vez que não há instância superior e foi cumprido o devido processo legal.

Leia mais em:
Beccaria, Cesare. Dos delitos e das penas. São Paulo: Martin Claret, 2006.
MORECELLI, Róger Augusto F. "Teoria do domínio do fato". Disponível em http://sisnet.aduaneiras.com.br/lex/doutrinas/arquivos/TeoriaDominio.pdf.