Depois de 10 anos de publicações concentradas em apenas um autor e com a participação de alguns colaboradores eventuais, surgiu a ideia de tornar o LoboFrontal uma publicação colaborativa e comunitária.
Agradecemos a visita de nossos leitores habituais, no novo endereço: http://refutacao.blogspot.com. Obrigado por nos visitar.
É com essa frase que se pode começar uma investigação sobre a misoginia contida nas recentes declarações do Deputado Federal Jair Bolsonaro. Essa provocação inicial é necessária, pois, ao que tudo indica, os estudos de gênero que são desenvolvidos pelos renomados centros de pesquisa em Ciências Sociais europeus e norte-americanos não atingiram a inserção necessária no meio acadêmico brasileiro, com raras exceções. Portanto, uma provocação prévia é necessária, para que se possa traçar um molde genérico sobre o tema e despertar um debate atento a detalhes normalmente silenciados.
Preliminarmente, é preciso esclarecer uma premissa. Em tempos de solipsismo, as palavras perdem o significado que originalmente / culturalmente têm, em função de uma "vontade de poder" (Der Wille zur Macht) que o indivíduo exerce sobre cada uma delas. Esse tipo de ato interpretativo parte da concepção de que somente o indivíduo existe enquanto ser que pensa um objeto e que, para além do ato de pensar desse mesmo indivíduo, nada existe de concreto. Isso representa um difícil problema de interpretação, visto que, ao contrário do que possa parecer, além do indivíduo existem outros, e o significado das coisas é feito (também) coletivamente e, na maioria das vezes, de forma consensual.
No passado, a palavra dita tinha a força de uma raiz que, uma vez fincada no solo, não poderia ser removida, sob pena de destruição daquele que a pronunciava, assim como uma planta. Enquanto o silêncio guarda (em si) uma natureza plurisignificativa, que desperta no interlocutor uma inabalável dúvida sobre seu significado, a palavra é a concretização do pensamento, embalada pelos desejos que se revelam, e que extrapola os mecanismos de controle a que a mente humana se submete no convívio com os demais. Falar é, acima de tudo, conviver.
Agora, sobre a misoginia. Na literatura, esse comportamento já foi expresso por autores do porte de Nelson Rodrigues que, ironizando as relações afetivas heterossexuais, apontava o desejo implícito que as mulheres teriam, por exemplo, de apanhar. Esse imaginário faz referência direta a certos comportamentos sociais, reproduzidos no mundo da cultura e determinantes dos papéis sociais de gênero - o que pode ocasionar abusos de interpretação / percepção, como no caso da mulher que se comporte de forma anormal e deseje não apanhar. Da mesma forma, chamar uma mulher de "vadia", dentro de um contexto qualquer, significa a verbalização de uma perspectiva sobre essa pessoa, num processo de coisificação fundada no desejo.
É isso o que a comunicação interpessoal faz: ela estabelece a interconexão entre as subjetividades. A grande questão: lançar palavras ao vento, sem uma preocupação com seus efeitos (significados), é ignorar o que existe de mais vulgar na comunicação humana, no que respeita às emoções e suscetibilidades da psique. Afinal, "as palavras ferem mais que a espada" - teria dito, em coro, a população.
Da mesma maneira, a afirmação "Jamais te estupraria, porque você não merece" apresenta, além do erro gramatical de concordância evidente, um erro contextual e outro de convivência: a organização dos espaços sociais não comporta esse tipo de verbalização dos desejos (até então ocultos) sobre a outra pessoa. Se é bem verdade que as palavras devem ser analisadas nos meio (contexto) em que são proferidas, existem algumas delas que se convertem em desejos que são socialmente execráveis, ainda mais quando ditas em espaços públicos nos quais os ouvintes do discurso não compactuam com o que é dito, quer por razões morais, jurídicas, ou religiosas, por exemplo. Trata-se da adequação quanto ao local (logos) no qual as palavras são reproduzidas, e quanto ao sistema de crenças (ethos) compartilhados por esses animais sociais e políticos (seres humanos).
Ante o exposto, deve-se tentar perceber que o processo civilizatório pressupõe convivência (interação social) e regulação (atribuição de direitos, deveres, competências etc). Contextualizando essa ideia, é de se notar que, num parlamento democrático, a exposição de ideias encontra por limites as normas garantidoras da continuidade das relações intersubjetivas (do tipo políticas) e referentes, portanto, ao decoro que é exigido de cada membro que ali convive. Admitir que, no decurso de suas atividades, os parlamentares se utilizem de expressões discriminatórias (xenófobas, racistas, misóginas, marginalizantes etc) e violentas, agride diretamente os objetivos para os quais o Estado Democrático de Direito foi constituído - consoante o disposto no art. 3º da Constituição Federal -, e atentatórias aos fundamentos no qual se alicerça, vis-à-vis, cidadania e dignidade da pessoa humana - desta vez, com fulcro no art. 1º do Texto Maior.
Como representantes que exercem a soberania, isto é, exercendo o Poder Político-Social em nome do povo (titular efetivo desse Poder), os parlamentares devem estar atentos aos valores morais que dão substância ao que se fala (parlar = falar; parlamento = lugar onde se fala), por consenso. É consenso da população que o estupro é um ato que atenta à intimidade e ao próprio ser (autônomo), sendo repudiado de maneira tão incisiva que se converteu em crime contra a pessoa, passível de penalidade. Em que pese o Deputado Jair Bolsonaro defender ferrenhamente o aumento das penas para tal modalidade de crime, não parece haver harmonia entre o seu desejo (verbalizado) e suas atitudes políticas, haja vista que tal assunto sobrevém em sua comunicação em tom jocoso e de escárnio, contra a Deputada Maria do Rosário. Não há ligação, nessa "brincadeira", entre o significado da palavra e o repúdio social que ela desperta.
"Brincar" tem um significado bastante específico: "divertir-se; entreter-se com alguma coisa infantil; galhofar, gracejar" (Dicionário Priberam). Não se pode imaginar como alguém possa "brincar" com a palavra "estupro" ou com o verbo (= a palavra em ação) "estuprar", direcionando essa "brincadeira" a uma mulher que é, antes de mais, uma adversária política pelo qual (ele) nutre antipatia e intolerância. Pela mesma razão, não se pode (tentar) esconder essa agressão verbal e simbólica pelos "bons comportamentos" anteriores e prévias boas intenções, como se isso não tivesse um significado ofensivo à "mulher enquanto gênero".
Em vista disso, mesmo que se considere a "brincadeira" do sereno e bem humorado parlamentar, é óbvio que sua intenção era de agredir, e assim o fez. Essa atitude poderia ter sido evitada por um solene silêncio, que ocultaria seu desprezo e "vontade de poder" sobre a mulher contra quem proferiu e na qual objetivou seu desejo (inconsciente) de submissão sexual, em ato falho. Nada contra o sexo: é que, embora o Congresso não goze de uma austera reputação - no momento -, as palavras, ali, têm um significado público.
Estupro, portanto, não, Deputado. "Por favor = É obrigado".
Desde as eleições recentes (outubro de 2014), as redes sociais têm sido espaço para a verborreia do ódio e do descontrole, intercalado apenas pelo bom senso de poucos, que tentam contemporizar e trazer à tona a racionalidade e a cidadania, necessários ao desenvolvimento pleno da Democracia brasileira. Porém, a Internet tem sido apenas o palco, onde os personagens multiplicadores desses sentimentos vis e antidemocráticos funcionam como fantoches de forças e grupos com intensões bem claras, e objetivos políticos concretos.
Para compreender o "estado da Nação", é preciso que se reconheça que os ânimos se acirraram, principalmente após a vitória apertada da atual Presidente da República - legitimamente eleita mediante pleito eleitoral, por escrutínio secreto e universal. Depois de encerradas as eleições, ao contrário do que se poderia imaginar - com a reorganização das forças políticas em torno de questões relevantes e urgentes para o País -, alguns setores da oposição têm utilizado das funções do Estado brasileiro para clamar porimpeachment-sem que tenha havido, até o momento, a abertura de qualquer procedimento inquisitivo nos moldes do devido processo legal - egolpe militar - sem que se precise dizer que, além de estarem obrigados a respeitar o Estado Democrático de Direito (art. 142 da Constituição Federal), como grupo de cidadãos, os representantes dos altos escalões dasForças Armadas já firmaram posição de respeito à Democracia, em que pese à dissidência interna (e velada) sobre o tema...
No Congresso Nacional, outro espetáculo: a personificação do ódio e da intolerância nas atitudes reiteradas do deputado federal Jair Bolsonaro, revela o ganho político que os comportamentos das redes sociais fomentam e reproduzem. Tal parlamentar clama, aos quatro ventos, os maioresimpropérios contra todos aqueles que colocam em dúvida ou entram em desacordo ao seu "sistema de crenças", chegando aexpor (abertamente) comportamento misógino, fundado numa percepção completamente equivocada do que venha a ser um parlamento; em vários episódios como esse, toda manifestação de pensamento contrária desperta,incontinenti,ataques verbaisultrajantes. Além disso, esses mesmos setores descontentes e seus locutores utilizam-se de adjetivações e imputações criminais ao Executivo da União e até a classificar todos os eleitores do Partido dos Trabalhadores de "criminosos" - caso protagonizado pelo candidato derrotadoAécio Neves-, como se opção política fosse motivo para se imputar conduta delituosa a qualquer eleitor. A escolha democrática tem que ser respeitada, quer seja fundada em interesses materiais conquistados por meio de políticas públicas assistencialistas, quer na ideologia do eleitor (sim, a velha ideologia de esquerda...), quer em qualquer outro motivo emocional, partidário, ou psíquico, ou, ainda, até decorrente da boa ou má formação política e educacional do cidadão.
Na linha das conhecidas argumentações defendidas pelos mais exaltados, segue a retórica da "população apavorada", no esteio da noção (equivocada e imprecisa) de que o atual ordenamento jurídico é o instrumento de excelência para a disseminação do crime e da desordem. Frases soltas, do tipo "Os direitos humanos só protegem bandidos" têm sido veiculadas abertamente, diante de uma população que, desta feita, por ignorância, desconhece a amplitude conceitual do tema dos Direitos Humanos - que albergam normas protetoras dos direitos políticos do cidadão, civis e políticos das crianças, da maternidade, dos idosos, dos trabalhadores (...) e, sim, dos investigados em inquéritos policiais e acusados em processos penais. Diante da inapetência do Estado em cumprir as normas constitucionais que contém as chamadas "sanções promotoras" (conforme classificação do autor italiano Norberto Bobbio, chamado a explicar sobre os fundamentos do Estado de Bem-Estar Social), vulgariza-se essa abordagem a respeito da proteção estabelecida por normas de direito interno e internacional que incidem sobre os direitos e garantias fundamentais da pessoa humana.
Na contraposição a essas pontuações, está abrilhante defesa do Direito, da Ética e das instituições sociais organizada de forma bastante informal e didática pelo Prof. Haroldo Guimarães, mestre em Direito Constitucional pela Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará. De uma maneira muito gentil e descontraída, os ensinamentos do Professor são claros: para a boa convivência social, é necessário um diálogo aberto, amistoso e racional, com o fito de preservação da malha social. Somente através do conhecimento (não só proporcionado pela Educação formal ou acadêmica) é que se torna possível uma verdadeira emancipação social, vez que tanto na política, quanto nas mais simples relações humanas vigoram as mais intrincadas e sutis emanações de Poder.
Ainda, a História revela que a personificação e o direcionamento do ódio para grupos sociais específicossempre resultou em atos debarbárie e que, para alcançar esse resultado, os grupos que os disseminavam se utilizaram de argumentos acríticos semelhantes aosexpostos pelos defensores do ódioemTerra Brasilis. Vale ressaltar que o discurso de ódio sempre irrompe em momentos de crises (institucionais e econômicas), proporcionando Poder a seus propagandistas.
Valendo lembrar que, em tônica muito resumida, aderir a esta ou aquela bandeira partidária e ideológica é um dos fundamentos da República; os ataques aos assim rotulados "comunistas", "marxistas", "bolivarianistas", "socialistas" e "gayzistas" (sic) têm se mostrado prática absolutamente intolerante e em descompasso ao pluralismo político consubstanciado no art. 1º, inciso V da Constituição Federal. Em outras palavras: ao invés de se construir uma oposição racional às ideologias e percepções de mundo contrárias aos seus interesses, esses grupos que discursam o ódio optam pela lógica do silenciamento e da censura, por meio da violência, numa sociedade na qual o espetáculo da brutalidade ganha cada vez mais adeptos. Ressalta-se: não é uma violência presumida da qual se fala, mas de uma que se apresenta na forma de violência física, psicológica e político-social, e sobre a qual somente o esclarecimento pode verter alguma luz - num explícito apelo ao modelo mais simples de Estado de Direito, fundado na razão.
Portanto, mesmo que essa parcela "politicamente agressiva" da população seja inexpressiva, deve-se duvidar que o discurso que reverbera nas redes sociais não possa encontrar "ouvidos carentes" e, diante dessa orfandade acrítica, multiplicar-se. Silenciar diante desses atos significa: (i) tornar esses atores políticos os únicos e legítimos proprietários das soluções sociais, e (ii) conferir-lhes a atribuição exclusiva de identificar quais as verdadeiras causas da - e os (convenientemente) culpados pela - desorganização das instituições públicas e dos poderes constitucionais. Esse silêncio é, acima de tudo, um ato de omissão política inaceitável.
***
Em homenagem ao Prof. José Haroldo Guimarães Filho.
O título deste texto é uma autêntica provocação; e essa provocação, de certeza, não é uma das mais prudentes atitudes a serem tomadas nos dias que correm. A expressão "filhotes de ditadura" foi cunhada por uma colega professora e, vez por outra, ressoa em minhas memórias como um alerta, uma lembrança de que ainda não superamos o autoritarismo do golpe de 1964. Essa é uma chaga aberta na sociedade brasileira, que ainda não conseguiu discutir todos os aspectos que envolvem o regime de exceção que se instalou no Brasil, de 1964 até 1988 - regime de exceção de um Estado não-democrático de Direito. Esse é mais um problema que se arrasta e que desperta o ódio e a ira de grupos que não conseguem (ainda) estabelecer um debate amplo sobre os males que o originaram e que germinaram durante esse período.
A mudança de regime jurídico-político de 1988, que se inaugurou com a Constituição da República Federativa do Brasil, também não foi eficazmente constituído de forma a resgatar o passado e, no espírito verdadeiramente democrático, efetuar a delimitação da culpa de cada partícipe desse processo - que se inicia num golpe de Estado e que termina na promulgação de um documento regente de um povo com tantas mazelas. O fetiche do legalismo estatista só não foi absoluto porque o modelo jurídico implantado teve o mérito de ter sido conduzido por meio de um debate social, no qual participaram diversas correntes de pensamento e grupos de representação social e de pressão - o que caracterizou o pluralismo político defendido no texto vigente.
Se tal não fosse verdade, não teríamos a necessidade de discutir se adotaríamos uma Monarquia Parlamentarista, por exemplo, ou da discussão do sistema de governo - parlamentarista ou presidencialista. Haviam dúvidas, posicionamentos divergentes, questões históricas e todo tipo de conjectura acerca de nossa vocação sócio-política, e que ainda ressoam nesses grupos que ora são ignorados, ora causam rebuliço naquela paz que adviria do fim do controle e da opressão dos governos militares. Isso para não dizer que, olhada atentamente, a História da República teve a contribuição das forças armadas desde a proclamação dessa estrutura política, passando pela composição da Presidência e nos momentos de intervenção nos governos civis. Entretanto, essa contribuição precisa sempre ser reavaliada, em função da essência do que designa o conceito de "militar": a força que, fazendo a guerra, garante a paz... Então, quer dizer, somos um povo que não atinge a paz, senão por meio da guerra, da violência?
Como é óbvio, a Democracia, por si, não é um instrumento capaz de apagar os erros históricos cometidos pelos governantes e pelas "cabeças pensantes" que comandavam e continuam a comandar os rumos políticos do País. Ela servirá, talvez, para impedir que cometamos os mesmos erros, por meio da experiência adquirida no passado. Porém, somente o preparo e o empenho de uma população comprometida com os ideais de Justiça social, liberdade (de pensamento, de empreendedorismo, de opinião, expressão e consciência) e igualdade (jurídica, política, cultural e de ascensão econômica) poderia concretizar os objetivos e defender os fundamentos do atual sistema político e do ordenamento jurídico vigente. Contudo, esse preparo pressupõe não apenas o conhecimento dos fatos, mas a possibilidade de refletir sobre cada um dos fatores que nos fazem ser quem somos - os "filhotes de ditadura". Ainda, esse empenho indica a abstinência de interesses individualistas e imediatistas que nos impulsionam antes à ação do que à reflexão, embotando o bom julgamento e impedindo a exposição de motivos daqueles que querem (e merecem) ser ouvidos.
Me incluo como membro de uma geração que não teve participação direta nos eventos que concorreram para o início do período em destaque, porque fui espectador passivo e impúbere do sentimento de mudança que acalentava os sonhos de uma liberdade que os meus pais não tiveram. Por sorte (e por várias outras razões), não posso afirmar que passei por perdas familiares, nem fui eu mesmo vítima da perseguição política, nem muito menos decidir agir violentamente para mudar aquilo que parecia imutável. Mas sinto-me no direito de requerer que haja a construção de um debate em torno dessas questões, que possibilite a exposição dos motivos, das razões e das desculpas (mesmo que esfarrapadas) que levaram compatriotas a mutilarem-se e matarem-se uns aos outros, em nome de ideologias e posicionamentos que afetavam a regulação da vida de toda a sociedade brasileira. Inclusive, penso que qualquer forma de autocracia - seja na forma de ditadura, seja na de autoritarismo - é sempre maléfica àqueles ideais destacados do preâmbulo constitucional e que, supunha eu, pudessem dirigir os rumos políticos do País.
Essas preocupações são mais inquietantes quando podemos assistir nos meios de comunicação de massa (até na via digital), a comemoração velada ao autoritarismo que vigorou e ao que continua a vigorar, de maneira difusa, no Brasil. É mesmo a expressão de um sentimento que se encontra arraigado na comemoração da diferença (desigualdade) e numa falsa meritocracia (posto que excludente a partir de privilégios injustamente adquiridos), que impede que o grande público tenha acesso a expressões que são afetas (e prediletas) aos bancos universitários - ainda não democratizados e, em que pese toda tentativa e esforço nesse sentido, continuam elitizados.
Igualmente, me pergunto se, enquanto nação, podemos ser refratários à dor das famílias que perderam entes queridos - e algumas delas, impiedosamente massacradas - por força dessa autêntica guerra de todos contra todos. Talvez, seja necessário dizer que toda a sociedade perdeu com a tortura, os atentados, os enforcamentos, degolações ... que foram a prática corriqueira, tanto dos que se diziam defensores da liberdade, quanto dos que - em nome dessa mesma liberdade - praticaram essas barbaridades. Quantos males já se perpetuaram, e quantos outros ainda se perpetuarão em nome desse valor? Ainda na seara desses valores, quantos critérios seriam aplicáveis à igualdade, que nos colocam como inimigos uns dos outros, num país com riquezas incalculáveis, e quanto é possível se sacrificar esse povo em nome dessa (genérica) igualdade? Que Justiça social é possível diante dos privilégios, dos acordos entre poderosos, da inépcia das instituições e das precárias assistência e segurança sociais?
Enquanto o jogo da verdade continuar restrito aos mesmos jogadores; enquanto a maioria do povo continuar sem uma voz ativa e esse debate estiver concentrado na representatividade de minorias - que se arvoraram em proprietárias desse debate -, haverá solução possível? Quando deixaremos de ser "filhotes da ditadura"?
Esse diálogo é apenas uma fração correspondente a um sofisticado e longo debate, na dura luta pelo poder, pelas mentes e corações...
O projeto democrático brasileiro vem, aos "trancos e barrancos", sofrendo diversos reveses nos últimos anos. Se é certo que depois da Constituição de 1988 pode-se falar de um ressurgimento da participação popular, é também correto admitir que ainda há muito a se democratizar no Brasil. Como um dos desafios, surgem as diversas e, por vezes, conflitantes perspectivas políticas e concepções ideológicas, calcadas nas tradições e leituras (ontologicamente construídas) que o legislador constituinte originário soube tão bem colmatar no texto constitucional - sob a rubrica do pluralismo político.
De fato, pode-se afirmar que, hoje, o Brasil possui um ordenamento jurídico que adota a liberdade de consciência política - encontrando respaldo na melhor doutrina do liberalismo político. Sob o imperativo categórico da tolerância, defende-se a ideia do lema "que vença a melhor ideia". O sistema federal, bicameral, compõe-se da Câmara dos Deputados e do Senado Federal que, juntos, desempenham a função maior da Democracia brasileira: o Congresso Nacional. Ali, todas as garantias para a desenvoltura dos debates estão assegurados: desde as garantias e direitos fundamentais, tais como a liberdade de expressão e consciência, até as garantias e direitos políticos, como a liberdade de filiação partidária e as imunidades parlamentares, há todo um aparato jurídico-político que conflui diretamente para o exercício de uma parcela de nossa Democracia - a representativa. Além disso, o País possui mecanismos de participação decisória direta, que ultrapassa as limitações do sufrágio universal e secreto, responsável pela escolha daqueles políticos: ferramentas como orçamento participativo, fiscalização e controle de contas dos poderes executivos (municipais, estaduais, distritais e federal), e outros, como a proposta de lei de iniciativa popular, referendo e plebiscito são todas ferramentas jurídicas à disposição do povo brasileiro, para o exercício de uma das mais preciosas conquistas sociais - a soberania popular.
Esse conceito de soberania popular, que adquirimos da tradição europeia, não é um conceito unívoco. Ao contrário, ele indica que há um certo tipo de soberania, qual seja, aquele no qual o poder deriva diretamente da vontade do povo. O conceito de povo, também, também não é unívoco - embora a preguiça e o senso comum tentem sempre distorcer o seu significado, para não falar das insidiosas práticas do intelecto desonesto, que deturpa o real sentido e alcance da palavra. Povo, no sentido constitucional, é a classe de pessoas que habita este País e que, sendo sujeitos de direito como todos os outros membros da população (estrangeiros, turistas e apátridas), possuem a capacidade ou a expectativa de direito de votar e serem votados. Seguramente, junto da melhor doutrina, referenciada aqui em Paulo Bonavides, no seu livro "Ciência Política", o elemento povo apresenta uma faceta jurídica (sujeito de direito) e outra política (poder, um dia, votar e ser votado).
Como se vê, até este ponto, Direito, Poder e Política são três elementos que estão em constante contato. Isso porque a Política é um meio, no qual o Poder se expressa e, como resultado, surge o Direito. Mas essa interação não pára nesta primeira síntese; assim como ocorre em todo processo dialético, esse resultado (o Direito) dá ensejo a novas conformações da Política, pois a dinâmica social é uma constante e, nela (na dinâmica social) ocorrem novas manifestações de Poder. A Sociedade promove constantemente uma reformulação dessa dialética, reconstruindo posições, com novas interações entre atores políticos que, negociando seus interesses e defendendo suas convicções e ideologias, fornecem novas configurações ao Direito.
A Democracia é, então, um jogo político que se desenvolve sobre o pano da liberdade política. E quanto mais saudável é uma Sociedade, mais claras são as intenções e os atos praticados pelos representantes políticos escolhidos pelo sufrágio, e mais acessíveis aos olhos do povo são os atos desses governantes e legisladores. Então, qual seria a dificuldade da Democracia à brasileira? Por que ela é uma Democracia de baixa intensidade - para utilizar uma expressão do professor sociólogo Boaventura de Sousa Santos?
1) Educação
Seria muito pertinente elaborar uma defesa da Educação que fizesse apologias emotivas ao valor dos professores, à necessidade de preparar as crianças para um futuro melhor e ... enfim, apelar ao bom senso do leitor. Mas o caminho a ser trilhado aqui é outro: o do cumprimento da Lei - coisa que nem a população, nem os governantes parecem gostar.
A Constituição Federal estabeleceu um conjunto enorme de artigos voltados ao desenvolvimento de uma Educação inclusiva, que fosse capaz de realizar os objetivos fundamentais da República, consubstanciados no art. 3º, que também concretizasse a dignidade da pessoa humana do art. 1º e, por fim, pudesse lançar as bases de realização de uma justiça social - conforme preleciona o preâmbulo constitucional. Ainda, colocou-a como um direito fundamental, pois ela integra o art. 6º, no capítulo dos Direitos Sociais, que pertence ao Título II da Carta Constitucional - que cuida dos direitos e garantias fundamentais (esse é o nome do Título, para aqueles que não sabem ou não "entendem" que a Educação e os direitos dos trabalhadores, por exemplo, são direitos fundamentais). Sobremaneira, desponta o clarividente art. 205, estabelecendo o que se pode entender como um rol taxativo e hierárquico dos objetivos da Educação: "(...) direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade"; a finalidade desse direito é (1) o pleno desenvolvimento da pessoa, (2) seu preparo para o exercício da cidadania e (3) sua qualificação para o trabalho.
Em que pese a valorização do trabalho como única forma de construção de riquezas, veja-se que a primeira diretiva teleológica é "o pleno desenvolvimento da pessoa", quer dizer, o desenvolvimento das aptidões que tornem o indivíduo uma pessoa feliz, realizada, consciente de todo o seu potencial. O segundo objetivo é "seu preparo para o exercício da cidadania". Nesse segundo ponto se descortina o principal entrave ao desenvolvimento de uma Educação democratizada: não havendo educação de qualidade para o trabalho, que torne a absoluta maioria da população apta à competitividade do mercado de trabalho da Era da Informática, o que se poderia dizer de uma Educação para o exercício da cidadania?
A maior queixa e a grande parte das críticas que se fazem ao sistema eleitoral brasileiro é exatamente focada nas escolhas dos representantes políticos: embora existam restrições acerca da vida pregressa dos candidatos e as proibições de candidaturas daqueles condenados por crimes e delitos de variada ordem, as reclamações de uma parcela que se diz "esclarecida" clama pela proibição do voto dos analfabetos - proposta que faz lembrar o voto censitário, que já vigorou nestas terras.
2) Desigualdade social
Há redundância na junção das expressões "situação social no Brasil" e "desigualdade social". Desde a exploração-colonização, passando pela independência política e adentrando a fase republicana, a acumulação e concentração de riquezas e as mazelas da maioria esmagadora da população sempre andaram pari passu com a História Nacional.
Para não falar dos tempos em que havia mão-de-obra escrava e que essa situação era reconhecida pelo Direito positivado, e para não comentar sobre a escravidão que ainda se reproduz nos rincões deste vasto território, a situação das cidades e do campo evidenciam o que há muito se escreve e se descreve acerca da condição humana nas terras tupiniquins: vive-se a insustentabilidade de um modelo de produção que ainda não foi capaz de solucionar o problema da exclusão social. Se a educação de qualidade só existe na rede privada de ensino; se essa rede privada de ensino encontra-se fora dos padrões e possibilidades de consumo da maioria esmagadora do povo; se aquela educação pública, ofertada pelo Estado não serve minimamente à qualificação de trabalhadores; se essa escola pública é um depósito de jovens, que não oferece uma perspectiva emancipatória e, ainda por cima, os sujeita ao convívio das mais diversas formas de violência - da prostituição às drogas -, com raríssimas exceções... Então a conclusão a que se pode chegar é que o cenário de miséria e despreparo intelectual de crianças e jovens da maioria dos cidadãos é absolutamente incapaz de apaziguar o que se pode chamar de "jogo da ilegalidade".
3) Jogo da ilegalidade
Existe uma vasta literatura sobre os jogos psicológicos, que tanto se dão em nível individual, quanto coletivo. Uma das obras mais conhecidas nesse território é aquela da lavra de Eric Berne, intitulada "Games People Play", e é diante das estratégias dos diversos atores sociais que se instituiu no Brasil o "jogo da ilegalidade".
Essa interessante dinâmica começa no nascimento daquele indivíduo pobre e miserável, que recebe a alcunha de "favelado": quando ele nasce, se tiver a sorte de nascer num Hospital, pode até ter alguma chance mais segura de sobrevivência, mas geralmente vem ao mundo sem os menores cuidados; ao contrário do que ocorre com uma parcela minoritária da Sociedade brasileira, esse sujeito na maioria dos casos não é registrado (a certidão de nascimento no Brasil é paga, mesmo pelos hipossuficientes; embora a lei lhes garanta tal direito, os cartórios cobram os emolumentos dos pobres e miseráveis). Para o Direito, sua existência é uma situação de fato, visto que o formalismo jurídico que aqui ainda reina carece de uma comprovação que ele não pode fornecer. Além disso, com alguma sorte (se não for abandonado por uma mãe faminta e desesperada), a casa na qual habita não pode ser chamada de propriedade: ele não possui um dos direitos mais elementares, que é o direito de possuir um local onde se abrigue e no qual, sendo cidadão, estabeleça de forma segura a sua residência, seu domicílio.
Inclusive, diga-se de passagem que, esse seu direito de 1ª dimensão, um direito civil, de possuir algo como seu, é tolhido exatamente pela força do direito de quem possui a propriedade do terreno no qual seu barraco está construído. E é exatamente nesse momento, no da definição de "o quê é de quem" que começa uma das partidas mais cruéis do jogo da ilegalidade: esse sujeito, desprovido, despreparado e desapropriado tem que enfrentar aquela minoria citada anteriormente, que possui todas as condições materiais para competir e vencer a luta da sobrevivência numa das maiores potências econômicas do planeta (sim, a sexta economia do mundo). Uma potência econômica que ainda tem na terra e no solo os seus bens mais preciosos, extremamente custosos e cada vez mais escassos, visto estarem concentrados nas mãos daqueles que ou conseguiram o que têm através da herança (e nada conhecem do trabalho), ou obtiveram através da luta competitiva do sistema de produção vigente (porque estão aptos a concorrer), ou porque usurparam os bens através da malícia e violência (porque o roubo, a sedução e a corrupção também são meios à acumulação), ou porque tiveram sorte (no jogo, ou no "amor"...).
Nesse quesito, há também o Estado - essa pessoa jurídica de Direito Público controlada por políticos, funcionários e agentes públicos, numa das repúblicas mais corruptas do mundo. Esse ator agoniza de todas as formas: em primeiro lugar porque, obviamente, encontra-se a serviço de toda sorte de gente e do conflito de interesses dos políticos; em segundo lugar porque tem ainda que combater toda sorte de doenças sociais, como o crime organizado, a tensão constante da real politique praticada por outros Estados e assim por diante - inimigos internos e extermos; e em terceiro e último lugar, porque ele é operacionalizado por meio de regras burocráticas que o impedem de cumprir sua missão de forma efetiva e eficiente, o que dá lugar ao desperdício e desvio de recursos, quer por má-fé, quer por inaptidão de seus servidores e funcionários.
Some-se a isso o jeitinho brasileiro... E toda forma de legalidade e legitimidade não passará de mero discurso retórico ou, como se diz na linguagem politicamente-irrelevante das redes sociais, "blá, blá, blá"- coisa para inglês ver.
4) A violência e o abuso de autoridade
Não é à toa que o Brasil é um dos países mais violentos do mundo: todas as dificuldades na formação cultural e intelectual de seu povo - conforme narrado acima -, associada ao despreparo e desonestidade, agravada pela ilegalidade e temperada com a falta de oportunidades cria um sentimento de ineficiência e ineficácia dos institutos jurídicos e das instituições aqui referidas.
É curioso observar que até as opções de leitura filosóficas da parcela do povo que se prepara para preencher os cargos e funções públicas (os futuros burocratas, bacharéis em Direito), direcionam-se a autores cujo trabalho e especulações giram em torno da violência, do uso da força, da brutalidade e da concentração de autoridade. Quais outros, senão Hobbes e Maquiavel, a alimentar toda sorte de devaneio na mente dos incautos leitores, que desejam adquirir o conjunto de conhecimentos que tornam a razão instrumental apta à solucionar suas crises existenciais?
Embora exista aqui uma deferência ao autor inglês Thomas Hobbes, pela sua contribuição na formação do pensamento iluminista - e nos desdobramentos que essa escola trouxe ao pensamento e cultura ocidentais -, é necessário esclarecer alguns aspectos de sua teoria sócio-política, tendo em vista ser um autor estudado de maneira recorrente pelos estudantes de Direito - na seara da Ciência Política e Teoria do Estado. Ao lado desse nome, com a mesma ferocidade e vontade de poder, surge o autor Nicolau Machiavel, um dos nomes mais conhecidos pelos curiosos e investigadores que se debruçam sobre o palco da Política, numa tentativa de compreender seus lados e, sobremaneira, aquele mais obscuro - o autoritarismo. O primeiro chega a falar numa criatura monstruosa, avassaladora, invencível (o Estado), e a necessidade de ele concentrar todo o Poder (social), para determinar o futuro desse ser tão miserável, que é o humano. O segundo coloca à população, aos súditos, apenas duas opções: o amor ou o medo; a coerção como forma de dominação de todos, sob a ameaça de uma deusa da justiça que não tem nenhuma balança, nem venda, mas só a espada...
Diante de tudo isso, e do que mais ficou faltando falar, pergunta-se: qual será o futuro da nossa Democracia?
*** Em homenagem à professora Jacqueline Alves Soares, coordenadora do Escritório de Direitos Humanos do Centro Universitário Christus, a quem devo vários minutos extra-laborais, por uma importante discussão.
Discussão pertinente esta lançada pela Presidente da República, sobre convocar um plebiscito específico popular para tratar de alguns assuntos que pautam a agenda nacional. A respeito do tema, seria interessante observarmos algumas contribuições, em especial as trazidas por Gomes Canotilho (que, creio, todos reconhecem e respeitam, inclusive o nosso STF), Jorge Miranda e diversos juristas alemães, franceses e italianos, infelizmente pouco difundidos.
A questão central parece tratar-se do receio da instação de um poder constituinte (poder de revisão) ilimitado, absoluto, portanto, seja em relação a limites formais (matérias e assuntos a serem abordados), bem como em relação à competência do órgão revisor (competência quanto ao sujeito e limites daí oriundos).
Para as duas hipóteses acima aludidas é farta a contribuição doutrinária, jurisprudencial e de textos legislativos prevendo a possibilidade de instalação de um processo revisor específico, por meio de plebiscito. Apenas a título de curiosidade, e para fundamentar a adoção da tese lançada pela Presidente, existem três limites estabelecidos para o poder de revisão, quanto ao sujeito, estabelecidos pelo pensamento doutrinário:
1. O órgão de revisão é o próprio legislativo ordinário
Aqui no Brasil, isso se daria por meio de aprovação, segundo os ditames constitucionais, de uma proposta de emenda consitucional, ainda que com pareceres de órgãos não legislativos.
Uma observação necessária é a de que, em momentos de constestação da legitimidade do sistema de representatividade como é o caso presenciado no Brasil, essa opção acabaria por ser a mais inviável em termos de efetividade do processo revisório, pois, nos dizeres de CICCONETTI, não deixa de ser uma opção interna e pouco permissiva aos anseios das ruas. Apenas a título de curiosidade, esse modelo foi utilizada pelo “Grande Conselho do Fascismo”, que dava pareceres não vinculantes (em tese) sobre a revisão da Constituição.
A questão é se poder-se-ia traçar um paralelo (de corpo) entre o Grande Conselho e as nossas Comissões Congressuais ou mesmo órgãos de outros poderes. Caso esse modelo fosse o escolhido, ter-se-ia uma representatividade mitigada ou minorada, especialmente quando se trata de momentos de crise institucional (como a que ocorre atualmente, em relação ao sistema representativo).
2. O órgão de revisão é o órgão legislativo, mas a revisão exige a participação direta do povo
O órgão legislativo assumiria a posição de protagonista limitado à manifestação por meio de referendo obrigatório (seja prévio – plebiscito, seja posterior – referendo em espécie) do conteúdo a ser modificado. Essa possibilidade existe e está prevista nas Constituições holandesa (art. 204) e belga (art. 13). É, ainda, a opção adotada pelo sistema francês, (artigo 89 da Constituição francesa) e em termos parciais, pela constituição italiana (artigo 128). Não se esqueça ainda do caso suiça (artigos 18 e 120 desta constituição).
3. O órgão de revisão é um órgão especial
Aqui, poderá o órgão ter ligação ou não com o órgão legislativo normal, podendo ser protagonizado pela reunião das duas Câmaras (Casas Congressuais no Brasil) ou por órgão especialmente eleito para o efeito. Essas hipóteses são admitidas, a título de exemplo, tanto pela Constituição francesa de 1958, em seu artigo 89, item 3, como pela Constituição argentina, em seu artigo 30.
Como se vê, a possibilidade é perfeitamente factível e presente na Teoria da Constituição e na prática do Direito Constitucional, a contrario sensu do que diz o Senhor Luís Roberto Barroso em entrevista publicada no youtube:
A outra questão a ser objeto de tratamento específico diz respeito a existência ou não de limites materiais aplicáveis a um poder de revisão. Numa primeira impressão, a corrente tradicional filia à ideia de ilimitação ou caráter inconteste e absoluto do poder de revisão parece ser a mais lógica. Mas não se sustenta, igualmente, em face da Teoria da Constituição.
A limitação do poder de revisão já pode ser tratada em Loewenstein (em sua obra Teoria de la Constitución), autor não estranho à nossa primaveril academia. Visa barrar a disposição da Constituição ao sabor das próprias maiorias congressuais, inertes ao clamor popular, como parece ser o caso do Brasil na atualidade, evidenciando um deficit de legitimidade democrática dos representantes do Poder Legislativo. Num sistema parlamentarista, a solução seria óbvia, com a queda do Parlamento e a convocação, pelo Chefe do Poder Executivo, de novas eleições. Não é o que ocorre num sistema Presidencialista. As maiorias Congressuais são estáveis e apenas são modificadas – numa primeira análise, pelo voto popular expresso nas urnas. E como essas parecem não representar os anseios das ruas, pertinente que as alterações se façam por meio de outro órgão – o titular da própria soberania, por meio de plebiscito.
Uma das formas existentes em se limitar o poder de revisão é a fixação de prazo (fator temporal) para a realização de um processo de revisão, como parece ter sido a opção de nosso legislador constituinte de 1988 (originário (?)), presentes nos artigos 2º e 3º dos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias.
Note-se que o aludido artigo 2º, para além da delimitação de prazo, explicita a limitação de matéria a ser tratada quando atribuiu ao referendo popular a escolha da forma e do sistema de governo que deveriam vigorar no país. Limitação de matéria é, assim, perfeitamente possível, inclusive por meio de constituinte que atribui ao titular da soberania o exercício direto do poder de escolha revisora.
Em segundo lugar, notável o teor do também citado artigo 3º, que, na esteira do artigo 2º, delimita prazo para revisão, mas estalece na segunda parte do dispositivo um poder de revisão geral, a ser realizado nos termos específicos daquele dispositivo, com a validade das proposições adotadas desde que aprovadas pela maioria absoluta dos membros do Congresso, em sessão unicameral – conjunta, portanto.
Vislumbrados tais dispositivos, seria difícil negar que o nosso constituinte (originário (?) não tenham recepcionado as duas possibilidades de revisão do texto – ilimitada e limitada em razão da matéria, qualificada, no caso do artigo 2º, pela participação de órgão distinto do órgão legislativo normal – o POVO.
A baila de uma conclusão, restarai uma abordagem, ainda que passageira, da recepção pela Teoria da Constituição de fixação de limites à atuação do revisor, independentemente do órgão que protagonize a revisão. A esse respeito, H. NEF, autor alemão (Die materielle Schranken der Verfassungsrevision, in ZSR, 1942, pp.III e ss), , citado por Gomes Canotilho (Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 4ª ed., 2000, p. 1030), assevera que nem toda matéria poderá ser objeto de revisão constitucional. Há limites. Não seriam eles os inferiores, pois toda matéria não constitucional ou infra-constitucional pode, em determinado momento, sofrer o movimento de constitucionalização.
Agora, outra coisa se passa em relação aos limites superiores. Há normas, como diz o jurista alemão citado por Canotilho, normas cerne da Constituição que não são passíveis de revisão. Podem eles ser expressos ou mesmo implícitos, na esteira do referenciado por Marcelo Rebelo de Sousa (in Valor jurídico do ato inconstitucional, cit., pp. 286 e ss.), de acordo com uma escala de valores pré-estabelecida no próprio texto. O que acaba por se revelar de difícil mensuração em nosso caso, em razão da diversidade das pretensões esboçadas nas ruas.
A mesma questão já havia sido posta por Thomas Jefferson, em seus escritos (Writings) sobre a possibilidade de uma geração impor suas condições à outra. Sua resposta a respeito é culturalista, nos termos de que o “processo histórico”, apesar de incontido, não significa sujeição de todos os valores a um processo revisório. A revisão total ou absoluta, assim, estaria descartada. Nesse mesmo sentido opina Herman Hesse (in Grundzüge, pp. 272-3). E é o que parece ter optado o Constituinte (?) na lavra das cláusulas constantes nos primeiros artigos de nossa Constituição de 1988.
Relativamente à questão, algum pensamento do professor Jorge Miranda a respeito torna-se indispensável:
Daqui não decorre, porém, que o poder constituinte equivalha a poder soberano absoluto e que signifique capacidade de emprestar à Constituição todo e qualquer conteúdo, sem atender a quaisquer princípios, valores e condições. Não é poder soberano absoluto – tal como o povo não dispõe de um poder absoluto sobre a Constituição – e isso tanto à luz de uma visão jusnaturalista ou na perspectiva do Estado de Direito, como na perspectiva da localização histórica concreta em que se tem de pronunciar o órgão nele investido. O poder constituinte está sujeito a limites.
Na sequência, discorre o Professor da Universidade de Lisboa sobre os limites denominados transcendentes, imanentes e heterônomos. Discussão pertinente, mas em outro momento.
A guisa de conclusão, ao menos, em termos de teoria e prática constitucional, gostaria de contribuir para apaziguar os ânimos dos colegas e nobres amigos, concluindo não apenas pela admissibilidade da adoção da proposta feita pela Presidente da República, como também para aplainar, ao menos em termos comparativos e doutrinários da melhor estirpe, a postura do Leviatã em releção ao tema. Temos um sistema de controle de constitucionalidade para eventuais abusos, caso sejam verificados. O que é, discutivelmente, de difícil ocorrência, em face dos ares de sensibilização que norteiam a jurisprudência e prática da Suprema Corte de nosso país. Observemos.
Rodrigo Costa Ribeiro de Lima é Mestre em Ciências Jurídico-Políticas/Direito do Estado – Universidade Coimbra/FADUSP e Professor do Centro Universitá rio do Norte Paulista – UNORP.
"Muita gente está me perguntando sobre a proposta de um Plebiscito para Constituinte Exclusiva relativa à Reforma Política. Bom, vamos lá:
"O Poder Constituinte Originário, que é aquele que de forma soberana, ilimitada e incondicionada, elaborou a Constituição promulgada em 1988, previu de maneira taxativa a possibilidade de alterações de seu texto. Repito para ser bem claro: previu de maneira TAXATIVA.
"Não há qualquer possibilidade de uma Constituinte Específica para a Reforma Política.
"O Congresso Nacional (e nunca a Presidente da República!) pode convocar um plebiscito acerca de uma nova Assembleia Nacional Constituinte? Pode sim. Mas nesse caso a Nova Constituinte teria poderes ilimitados e incondicionados para elaborar uma Constituição Inteiramente Nova, e não apenas para modificar o texto existente.
"O que Presidente da República fez foi pura retórica. Ela sabe melhor do que eu que a proposta é incostitucional.
"Lembrem-se: o Povo é titular permanente do Poder Constituinte Originário. Pode, a qualquer tempo, se dar uma nova Constituição. Constituinte com poderes originários é incondicional e ilimitada, portanto, não pode ficar restrita à alteração dos dispositivos que versão sobre direitos políticos e eleitorais. Constituinte com poderes derivados, é limitado e condicionada pelo texto da Constituição em vigor. E o texto em vigor não trata da possibilidade apresentada pela Presidente da República. Simples assim". Fernando Antônio Castelo Branco Sales possui graduação em História pela Universidade Estadual do Ceará, licenciatura plena (2003), graduação em Direito pela Universidade de Fortaleza, bacharelado (2004) e mestrado em Direito Constitucional pela Universidade de Fortaleza (2008). Tem experiência na área de Ciência Política, com ênfase em Classes Sociais Democracia e Grupos de Interesse, atuando principalmente nos seguintes temas: direito, história e política externa e democracia.
Os eventos de mobilização de massas no Brasil estão a nos cobrar uma reflexão mais exaustiva, fugindo dos impressionismos e das abordagens unilaterais. A Academia - não a dos músculos brandidos pelos policiais e agentes provocadores - precisa se deter nas expressões contraditórias que se aninham no bojo das manifestações de massa que tem ocorrido.
De um lado percebe-se nitidamente um esgotamento da representação, pelo menos em sua feição liberal clássica, engolfada pela torrente do Capital e dos processos de financiamento eleitoral que tudo constrange e uniformiza. Os partidos, quase sem exceção, incluindo aqui o PT, genuflexa perante as construtoras, as grandes empresas, os banqueiros, as imobiliárias, etc, buscando a grana para o azeitamento das campanhas, cada vez mais "profissionalizadas", cabendo aos militantes um papel mirrado, de tarefeiros acríticos á soldo de estruturas institucionais de candidatos, Vinculação subalterna que adultera os programas de esquerda, rebaixa seus horizontes de ação ao nível da "administração do cotidiano", onde o que prepondera é a racionalidade dos "ganhos parciais", da "melhoria de vida" encerradas na narrativa triunfante do capitalismo global. Pior preso a uma visão legitimadora do consumismo e do ideal medíocre, esquálido do ponto de vista cultural e estético de se tornar "classe média". Daí o esgarçamento, cada vez maior, entre as expectativas dos recém integrados a sociedade e a frágil elaboração civilizatória de alternativas para além da brutalidade da sociedade de mercado. A juventude em especial, apesar da dispersão atomizadora, das apreensões de mundo fundadas no desejo individualista, sente-se esmagada, pressionada em sua existência pelas retortas da uniformidade e do controle asfixiante de um capitalismo devorador do "tempo livre" e da expressão autêntica da personalidade. Tendências mórbidas que não são contrarrestadas por nenhum partido ou movimento tradicional, dada a assimilação pragmática dos mesmos à ordem, ou seja porque a "tribalização moral" de suas reivindicações não cabem em lógicas propriamente institucionais como são os partidos. Nesse sentido, a especificidade da categoria juventude nos lança desafios, requer criatividade para repensar dimensões utópicas que a motivem. "O amor que teme pronunciar o nome" praticado pelas burocracias de determinados setores de esquerda, traveja o desenvolvimento do socialismo, de sua dimensão libertária, da revisitação dos fundamentos ético-políticos do comum. Isso explica um dos fatores da mobilização, mas parece-me que há outros motivos, razões que o explicam que também não podem ser desconsiderados.
Um outro aspecto, a meu ver, tem a ver com a "desilusão" trazida pelos megaeventos urbanos em que se veiculou a crença de que investimentos vultosos catapultariam as cidades, sua gente ao "Primeiro Mundo", produzindo melhorias generosas na qualificação do espaço urbano, na ampliação dos serviços, das ruas, dos transportes, etc. A compreensão que isto não correria gerou um furor cívico na sociedade, particularmente junto àqueles mais suscetíveis a ideologia do 'urbanismo de exceção", dos adeptos da supremacia dos milagres da técnica, das virtudes intrínsecas da modernidade, notadamente em relação a nossa classe média. Tal descompasso trouxe à tona a inviabilidade do plano modernizador, da perpetuidade de nossas mazelas endêmicas que vão desde a insegurança, passando pela precariedade das malhas viárias, dos sonhos "civilizadores" de nos tornarmos uma espécie de Barcelona tropical.
Creio que outro aspecto está relacionado a dinâmica mobilizante de um conservadorismo protofascista que dialoga com as ondas longas do autoritarismo nativo em que o hipermoralismo é apenas a ponta do iceberg do sentimento de repulsa de setores médios, pequeno-burgueses, a "insignificância" de sua função política, social e cultural, após o desplugar das classes trabalhadores de sua direção mais direta. Segmentos da vaga "classe média" que não aceitam ter perdido o protagonismo de sua influência sobre as eleições, nem de figurar como o alvo preferencial das estratégias do país, inclusive no âmbito cultural. A ênfase nos governos Lula/Dilma no "pobreletariado" - como menciona André Singer em seu "Sentidos do Lulismo"- ao mesmo tempo que favorecia o incremento dos ganhos e lucros do empresariado, trouxe a classe média um sentimento de abandono, de secundarização social. Agora seus jovens ao envergar a simbologia do nacional buscam resgatar sua importância, secretando sua revolta, exprimindo seus códigos normativos e valores centrados na exemplaridade da moralidade privada como modelo para a política.
Não tenho a pretensão de apreender toda a realidade, sempre mais complexa e diferenciada, nem pretendo ocupar o lugar dos "cientistas políticos" mais versados no assunto, mas apenas de contribuir para o debate em meio a tantos desencontros, tateios e perplexidades. O fato é que precisamos nos debruçar sobre esses eventos para melhor compreendê-los, disputar sua hegemonia atualmente conservadora, e ajudar a que se dirijam mais à esquerda. Como mais à esquerda precisam ser deslocados o PT e os órgão de representação dos trabalhadores e do povo. O Brasil precisa retomar o veio das mobilizações sociais contra o Capital, recolocar no centro o debate sobre estratégia socialista, aprofundar a democracia.
Newton de Menezes Albuquerque possui graduação em Direito pela Universidade Federal do Ceará (1993), mestrado em Direito (Direito e Desenvolvimento) pela Universidade Federal do Ceará (1999) e doutorado em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (2001). Atualmente é Professor Adjunto da Universidade de Fortaleza, professor adjunto da Universidade Federal do Ceará e membro do Conselho Curador da Fundação Perseu Abramo. Atua principalmente em Teoria do Estado Direito Internacional e desenvolve pesquisas com os seguintes temas: sociedade internacional e soberania; Estado nacional e democracia no Brasil e direitos fundamentais.
O libertarianismo é uma corrente de pensamento que defende a destituição da figura do Estado, que seria substituído por um não-regime de auto-governo (self-government), através de unidades locais de organização social. Em sua gênese, apropria-se de alguns aspectos da teoria anarquista do século XIX, mas diverge quanto aos critérios de emancipação social porque não propõe uma ruptura com os sistemas de produção e apropriação da riqueza social - a despeito de propugnar a eliminação da figura do Estado. Seus teóricos (os economistas Ludwig von Mises e Milton Friedman são os grandes expoentes) partem da concepção norte-americana de federação e propugnam o desmembramento e fim do Estado de uma maneira genérica ou global.
Por quem sorri Friedman?
Dentre as "revolucionárias" ideias associadas a esses dois economistas, e aos libertarianistas, estão: o fim do Direito Tributário, a extinção das normas regulatórias que compõem o Direito do Trabalho e o Direito Previdenciário, a completa desregulação da economia (um retorno da ideia de mão invisível e da teoria das expectativas racionais, que auto-regulam o mercado) e o fim de todos os tipos de intervenção na liberdade dos capitalistas, como o Direito do Consumidor.
Até dá para fazer piada, caso prosperasse tal ideia no Brasil: o "terrível" exame da Ordem dos Advogados ficaria bem mais fácil, e haveria infinitamente menos reprovações, pois os estudantes estudariam apenas Direito Empresarial (que tem mais ou menos uns quatro modelos de petição, na segunda fase)... Mas, defender isso é querer "esticar demais a baladeira" e brincar com a inteligência alheia, ou não?
Para não dizer que Friedman era assim tão sinistro (sic), ele era favorável à liberação de todas as drogas (todas elas! Uáu...). Com certeza, a essas alturas, você deve estar se perguntando o que sobra, quando se desmonta o Estado... Sobram apenas as grandes corporações e multinacionais, que passariam a explorar economicamente todas as atividades antes reguladas e controladas pelo Estado - evidentemente, para quem poder pagar por elas: polícia, saúde, educação, corpo de bombeiros, correios etc. E, quem sabe, até o tráfico legalizado de drogas, que tal?
É cediço que existem diversos argumentos que amparam as teses acima ventiladas. Todas elas são embasadas em conceitos micro-econômicos que prospectam vultosos lucros e vantagens para aqueles que, detendo o poder econômico, puderem participar da divisão desse maravilhoso e rentável "bolo".
Entretanto, convém lembrar que a esmagadora maioria da população mundial (para não falar só a nível de Brasil) vive em condições precárias de subsistência -- o Sol não nasceu da mesma forma para todos. A não ser que esses senhores estejam a propor algum tipo de medida genocida -- daquele tipo de solução adotada no Brasil, décadas passadas, de resolver o problema da fome deixando que os miseráveis morressem de fome --, é de se concluir que bilhões de pessoas estariam automaticamente excluídas da participação de tão eficiente modelo, por uma simples razão: enquanto os Estados organizam a distribuição de serviços públicos de forma gratuita, as empresas privadas só fornecem serviços mediante a contra-prestação (pagamento). E somente se esses serviços forem lucrativos (caso contrário, são descontinuados).
Vamos relembrar uma das frases mais interessantes de Friedman: "Não se distribuem almoços grátis". Não? Essa é a proposta; um futuro tenebroso, no modelo libertarianista, quase eugênico e, sem dúvida, apelando à "seleção natural": aqueles que não forem aptos, sucumbirão.Solidariedade? Zero.
O FIM DO ESTADO
A priori, essa noção de emancipação por meio da destruição do Estado pertence às correntes do pensamento sociológico e revolucionário que tiveram por base não apenas as ideias iniciais de Jean-Jacques Rousseau, mas se desenvolveram décadas depois nos trabalhos de pensadores como o irlandês Edmund Burke, ou o russo Peter Alexeyevich Kropotkin. Mas essas correntes contemporâneas não trataram do anarquismo em primeira mão; a ideia de uma sociedade "sem-governo" remonta ao período clássico da Antiguidade, e as discussões em torno disso são milenares; Júlio César teria dito, na conquista do povo lusitano: "Que povo é esse, que nem se governa, nem se deixa governar?".
Porém, a História demonstra que um determinado povo, que tem a pretensão de habitar um determinado território, e viver sem a opressão de outros, deve organizar suas relações políticas de cooperação. Não há registro de nenhum agrupamento humano que tenha prosperado sem a organização de um governo. Até o termo "civilização" pressupõe um certo grau de organização sócio-político-cultural, com a divisão interna do trabalho e a consecução de objetivos comuns. Aqueles que não se organizam politicamente e agem sem cooperação e solidariedade são facilmente dominados por grupos mais fortes e/ou numerosos -- sucumbem e perecem diante da competição por riquezas sociais e recursos naturais.
Noam Chomsky, um dos mais respeitados professores do Massachusetts Institute of Technology, filho de imigrantes anarquistas ucranianos erradicados nos Estados Unidos da América desde o começo do século XX, em um debate com o ex membro do Partido Comunista, o francês Michel Foucault (falecido professor de filosofia, psicologia e história da Université Lille e da École Normale Supérieure), depois de muito debater o tema anárco-comunitário versus comunismo, admitiu que o atual estágio de organização social em torno da figura do Estado possibilitou à humanidade uma melhoria extraordinária na qualidade de vida das populações. Acrescentou, ao final do debate que, pondo-se fim à figura do Estado, as populações estariam sujeitas à ação da mafia e do crime organizado internacional que, dispondo de recursos financeiros e de armas, poderiam desestabilizar não só as pequenas comunidades, mas aquilo que se entende por "nações".
CRÍTICAS PONTUAIS AO LIBERTARIANISMO
A primeira e óbvia crítica ao libertarianismo é aquela que constata haver um projeto de submissão das populações às formas empresariais de organização das relações sociais. Nem se pode cogitar a possibilidade de um exército privado -- pois isso seria uma mera reprodução do Estado Absolutista, que concentrava poderes militares nas mãos dos aristocratas e do monarca --, nem se pode cogigar uma organização paramilitar com interesses determinados apenas pelo lucro. Pois. Como é sabido, a teoria libertarianista não promove, antes, pelo contrário, repele qualquer compromisso solidário de bem estar dos povos. Apenas os interesses individuais são garantidos. Conseqüência de uma deturpação do pensamento neoliberal, o libertarianismo foca sua atenção apenas no valor liberdade; e se essa liberdade for garantida aos acionistas, tudo é permitido, inclusive a submissão de uma população desarmada ou desorganizada militarmente.
Essa mesmo desprendimento do libertarianismo com o bem estar populacional, levanta a segunda observação crítica: ele atenta contra os serviços de primeira necessidade que não geram lucros. Vejam-se alguns exemplos: (a) a construção de estradas pode ser considerado um investimento econômico, e pode trazer bons lucros, se for direcionado ao escoamento da produção e da organização de acesso às empresas, fábricas e comércio, mas as populações de baixa renda se veriam desprovidas desse recurso, a não ser pela atitude caridosa dos proprietários dessa "nova organização política", ou se eles mesmos as construíssem; (b) os serviços públicos de saúde desapareceriam, dando lugar a um tipo de prestação lucrativa que só admitiria o acesso a esses serviços por aqueles que pudessem pagar por eles; (c) quem não pode pagar por segurança, fica sem polícia, sem bombeiros, sem salva-vidas, e se você acha que a polícia pública é violenta (mesmo vinculada a preceitos constitucionalmente assegurados), imagine uma polícia que é comandada apenas pelo dinheiro - já ouviu falar na expressão capanga, ou jagunço? Em terceiro lugar, existem aqueles argumentos sobre a corrupção e a burocracia. Até onde se sabe, a corrupção é um mal registrado pela humanidade desde tempos imemoriais, e ela florece em igual proporção à omissão dos administrados, não sendo um privilégio de nenhuma sociedade em particular. Se no Estado Democrático, que pressupõe a participação da população nas decisões governamentais, há corrupção, pense nesse "novo modelo", no qual não há participação! Seria a corrupção em absoluto, pois não haveria como averiguar o bem comum -- apenas o bem empresarial.
Na realidade, o bem comum seria somente a medida do que é consumido; isso levaria à seguinte hipótese: havendo consumo, há bem estar, continua-se com a prática; não há consumo, não há bem estar, ajustam-se as práticas. Entretanto, o bem estar não é meramente o ato de consumir produtos; é o ato de poder participar igualitariamente de uma Sociedade, na produção de cultura, de política, e de bens também, além de outras coisas. Além do mais, qual o destino de quem não puder consumir aqueles produtos citados acima (educação, saúde, transporte, segurança)?
Convém salientar, por falar em Democracia, que Suécia, Suiça, Finlândia (...) são Estados democráticos, quer dizer, não existe só a democracia à brasileira, ou à yankee. Não existe democracia só em países pobres. E todos os povos ricos e desenvolvidos preservam as suas instituições estatais, protestam contra os desmandos e abusos, cobram e fiscalizam seus representantes.
Finalmente, porque faz-se tarde, a despeito de ainda haver uma tendência de sobrevalorização do modelo norte-americano de cultura política -- negligenciando várias outras experiências sócio-políticas ao redor do planeta --, a teoria tem se alastrado em alguns círculos acadêmicos dominados pela elite econômica e pelos seus seguidores. Faz parte de um sistema de crenças, que não propõe efetivamente nada de incrível e nem de novo (considerada sua existência paralela ao neoliberalismo), visto que desde os anos de 1980 que existem discussões sobre a privatização de todos os espaços públicos e livres do mundo.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ante o exposto, ficam alguns questionamentos: como vai se chamar a instituição que surgirá em substituição ao Estado? Quem mandará nela? Pode-se pensar em BRASIL S/A? Quem seriam os acionistas? Quanto você tem no bolso? Hum...
O que leva à seguinte conclusão: o modelo libertarianista garante a máxima liberdade para aqueles que detém recursos econômicos, e a máxima opressão aos desprovidos. A proposta é uma deturpação do conceito de emancipação.
O conceito de emancipação trabalha com a ideia de mudança social que promova a melhoria das condições de vida da população, como um todo, por meio do sopesamento de valores compartilhados a nível social. As sociedades que conseguiram avançar tecnologicamente, economicamente e garantiram melhores índices de bem estar às suas populações foram exatamente aquelas que alicerçaram suas instituições na solidariedade, no controle e na fiscalização de seus Estados nacionais. O resto é presunção de economista.
--- P.S.: Talvez essa ideias sejam bastante sedutoras ao jovem desavisado, ou àquele aluno de Direito meio preguiçoso -- que não gosta de estudar Ciência Política, Filosofia, Sociologia... que tem pavor de Direito Constitucional etc. Talvez, a ideia de acabar com vários ramos do Direito fosse até interessante, principalmente para o exame de Ordem... Mas, no fim disso tudo, imagine a concorrência para protestar um cheque! #ficaadica
Um dos assuntos políticos mais polêmicos da atualidade orbita em torno do julgamento da Ação Penal nº 470, julgada pelo Supremo Tribunal Federal (STF). É um caso interessante, pois ressalta a competência do STF, para o julgamento de crimes comuns e de responsabilidade que sejam cometidos por ministros de Estado, conforme disposto no art. 102 da Constituição Federal. O debate gira em torno de um comprometimento político do julgamento, o que teria afetado a jurisdicidade do processo.
O Supremo, como sabemos, é um órgão composto não necessariamente por juízes, mas por juristas, quer dizer, a Constituição Federal não faz nenhuma exigência de que os seus membros tenham pertencido, anteriormente, ao Poder Judiciário. Basta que os ministros tenham notável saber jurídico e reputação ilibada, sendo escolhidos entre brasileiros de 35 a 65 anos de idade, dentre outras exigências. A nomeação dos ministros dá-se por ato do Presidente da República, depois de aprovação pelo Senado Federal. É, portanto, um órgão de natureza política, ligado diretamente à estrutura democrática da República. No caso sob exame, vez que recebeu a competência descrita no art. 102 da Constituição Cidadã, não pode ser considerado tribunal de exceção. O infortúnio de quem lá é julgado originariamente é não poder recorrer a nenhum outro tribunal nacional.
Ocorre que, iniciada a persecução criminal dos acusados de crime de corrupção, com integrantes do chamado "núcleo duro" dos governos de Luis Inácio Lula da Silva e da atual Presidente Dilma Rousseff, o proselitismo político se arvorou como fundamento exclusivamente válido para discussões de natureza jurídica, diante do apoio popular de que goza o Partido dos Trabalhadores (PT) – que, neste caso, representa a situação, isto é, ocupa a direção do Estado brasileiro e tem, portanto, grande força política.
Só que, ao que tudo indica, a “coisa tomou um rumo inesperado”, como se diz coloquialmente. Um dos ministros do STF, o doutor Joaquim Barbosa, nomeado ao cargo pelo Presidente Lula, ao contrário do que poderia imaginar o leitor incauto, protagonizou uma das mais árduas batalhas jurídico-políticas que a Corte Constitucional já teve oportunidade de assistir. Utilizando a teoria de domínio do fato, o ministro e seus colegas condenaram José Dirceu e outros integrantes do PT como incursos nos crimes de corrupção ativa e passiva, de acordo com a conduta individual de cada réu. Esse fato gerou, como afirmado acima, uma disputa política em torno de questões eminentemente jurídicas, que revela não a fragilidade dos conceitos e institutos jurídicos, mas a implicação direta de outros sistemas (ética, política, economia, dentre outros) no sistema jurídico.
Uma leitura técnico-jurídica de Cesare Beccaria, considerado o pai do Direito Penal moderno, revela ao jurista que, embora não tenha explicitamente adotado a teoria, ele a teria previsto de forma implícita em sua obra “Dos Delitos e das Penas”, Capítulo XXXVII, ao tratar da Tentativa, Cúmplice e Impunidade, ainda no século XVIII:
“não é porque as leis não castiguem a intenção, que o crime deixe de merecer pena, delito que comece com ação que revele o ânimo de cometê-lo, ainda que a pena seja menor do que a aplicável à própria prática do delito. A importância de prevenir a tentativa autoriza a pena, mas, assim como pode haver intervalo entre tentativa e execução, reservar pena maior ao delito consumado pode ocasionar arrependimento. Diga-se o mesmo quando houver vários cúmplices do delito, e não todos eles executores imediatos, mas por diferentes motivos. Quando vários homens se unem num risco, quanto maior for esse risco tanto mais eles procuram tornar igual para todos. Será, pois, mais difícil achar quem se contente com o papel de executor do delito, correndo maior risco do que os outros cúmplices. A única exceção seria a hipótese em que fosse prometido prêmio ao executor, caso em que, tendo ele, então, recompensa pelo risco maior, a pena deveria ser igual”.
Em artigo recentemente publicado, o professor Róger Augusto Morcelli, especialista em Direito Penal, explica melhor não apenas os objetivos da teoria, mas a sua aplicação às organizações criminosas. Considerando que o fato imputado a alguns membros do PT envolve o planejamento e execução do delito popularmente chamado "Mensalão", não haveria outra alternativa ao STF, diante da natureza do crime: o julgamento do núcleo político do Partido encaixa-se na Lei do Crime Organizado, pois há uma dissociação entre o planejamento e a execução do crime. Trata-se de lei especial, que ultrapassa o disposto nos arts. 29 e sucessivos do Código Penal. A doutrina da teoria do domínio do fato não foi uma invenção do Supremo Tribunal Federal. A doutrina alemã já adota essa abordagem, desde 1939.
Vejamos o que afirma o professor de Direito Penal, Róger Augusto Morcelli:
"Se não adotada a Teoria do Domínio do Fato no caso de organizações criminosas, os verdadeiros mandantes e organizadores não poderiam ser penalizados a não ser como meros partícipes, pois em geral não praticam a conduta prevista nos tipos penais. Assim, aqueles que realmente deveriam ser apenados de forma mais grave, por se tratar dos verdadeiros mentores do delito, acabariam recebendo pena menor que a do executor do fato, o qual poderia ser qualquer pessoa a quem o mandante – chefe da organização criminosa imporia a ordem para praticar a conduta delituosa" (MORCELLI, 2012).
Dessa forma, não obstante ter havido a aplicação de um preceito normativo diverso daquele contido na lei objetiva penal geral, é óbvio que houve um julgamento político na apreciação dos fatos da AP 470 / STF. A Corte Constitucional, além de ter essa mesma natureza jurídico-política – porque é a guardiã do Direito Político nacional --, atuou no processo utilizando-o como um instrumento jurídico-social de controle, que está vinculado às finalidades jurídico-políticas do ordenamento brasileiro. Finalmente, vale relembrar que o magistrado é um profissional que não deve olvidar suas experiências adquiridas e suas origens sociais. Tem-se por superada a noção de um juiz neutro, pois é ser humano, inserido num contexto social específico, homem ou mulher de seu tempo e submetido às pressões da opinião pública, além de estar vinculado aos valores morais, religiosos, culturais, enfim, sendo criatura submissa às suas convicções, sejam elas quais forem.
Portanto, é muito natural assistir discussões acadêmicas acaloradas, que tenham por base discutir os aspectos jurídicos do “Mensalão”. Essas discussões, como todas as outras, são também políticas, haja vista que existem políticas universitárias, de ensino e assim por diante, todas elas contendo uma inclinação ideológica, explícita ou implicitamente. Essa é uma das vantagens da Democracia, que tolera o debate de ideias. Porém, cumpra-se a decisão do Supremo, e prendam-se os condenados, vez que não há instância superior e foi cumprido o devido processo legal.
Leia mais em: Beccaria, Cesare. Dos delitos e das penas. São Paulo: Martin Claret, 2006. MORECELLI, Róger Augusto F. "Teoria do domínio do fato". Disponível em http://sisnet.aduaneiras.com.br/lex/doutrinas/arquivos/TeoriaDominio.pdf.
Há poucos anos, o Procurador do Trabalho Francisco Gérson Marques de Lima, meu professor na Universidade Federal do Ceará, coordenador e amigo, lançou o livro "O Supremo Tribunal Federal na crise institucional brasileira". É uma obra de Sociologia Constitucional ímpar, lançando tema inédito na produção jurídica nacional, merecendo as melhores críticas e resenhas nacionais e internacionais. É a partir de sua leitura que escrevo as linhas infra, rendendo meus melhores cumprimentos ao dileto mestre alencarino.
Estamos assistindo ao julgamento de diversos escândalos, que têm (escândalos e julgamentos) abalado as estruturas institucionais brasileiras. Esse abalo consiste numa reverberação interna, relativamente à superestrutura que se estabeleceu a partir do governo de Fernando Henrique Cardoso (que chamaremos de fernandismo) e que foi continuado pelos governos de Luís Inácio Lula da Silva e de Dilma Rousself (que chamaremos de lulismo, tendo em vista que a atual Presidente da República não teve tempo de se afirmar como líder de uma política própria). Essa estrutura é promotora de uma profunda reorganização da máquina administrativa, que vai da alteração de regras de pensão à propostas de fim de estabilidade do funcionalismo público, por meio de argumentos classificados como neoliberais -- representando, na realidade, uma privatização do Direito e da Administração públicos. A justificativa para essas mudanças seriam (i) a necessidade de adequar o funcionamento do Estado ao século XXI e (ii) reduzir custos econômicos (neles considerados encargos sociais).
O que ocorre é que a República e suas instituições têm funcionamento complexo, ambivalente e ambíguo, refletindo uma diversidade de laços intersubjetivos que não são assim tão facilmente desfeitos e refeitos. Senão, vejamos o caso do julgamento do mensalão, utilizando o voto do ministro Toffoli, mas analisando o seu perfil como jurista.
Antes de tudo, convém esclarecer aos incipientes estudantes de Direito e ao público leigo que os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) são nomeados pelo Presidente da República, depois de aprovados pela maioria absoluta dos senadores - conforme regra exposta no art. 101, parágrafo único, da Constituição Federal de 1988 (CF88). Como se vê, a escolha de um ministro do STF é política; esses juristas, homens e mulheres, embora não sejam eleitos, também não ocupam o cargo mais alto do Poder Judiciário brasileiro por mérito de concurso público. É exigido apenas que tenham notório saber político.
O ministro José Antônio Dias Toffoli, nascido em 1967 (hoje, com 45 anos) é exatamente isso: um jovem jurista, não habituado com os esquemas de Poder inerentes à atividade que exerce. Está sendo escrachado publicamente porque, no seu parecer, foi lacônico e considerado por muitos como impreciso/incompleto, ou desapropriado para um cargo tão importante. Bem, esse jovem foi escolhido no mandato do então Presidente Lula, e era uma aposta para a renovação Pretório Excelso brasileiro, para ser um dos guardiães da Constituição.
Entretanto, não podemos ser ingênuos e pensar que o STF realiza apenas julgamentos "jurídicos propriamente ditos. A Corte tem uma função política, e ela concentra-se principalmente na execução da teoria dos freios e contra-pesos - uma forma de fiscalização e exame recíprocos dos atos praticados entre as funções executiva, legislativa e judiciária, que foi incorporada historicamente e é uma de nossas tradições constitucionais mais importantes.
Ocorre que, não me parece estranho o ato do Sr. Toffoli, em defender aqueles que o escolheram para ocupar um cargo que é (nada mais nada menos) político. Talvez, o que esperássemos, como observadores dessa novela, seria um empenho do jurista que, na posição de magistrado da mais alta Corte, tivesse zelo no preparo de sua argumentação.
O que é importante aqui salientar é que o STF, na condição de Instituição estatal/social, é um dos órgãos que está inserido numa crise sistêmica. Isso significa que não podemos imaginá-los (os ministros, quer dizer, as pessoas que ali desempenham suas funções jurisdicionais) como pessoas isentas de uma co-participação política na atual crise.
Inclusive, gostaria de lembrar ao leitor incauto que crise pode também significar vitalidade, na medida em que os atores nela envolvidos podem apresentar alternativas (modificando o atual modelo) e soluções (pequenos ajustes no modelo) que deem continuidade à vida de qualquer das instituições envolvidas nos esquemas de favorecimento financeiro em escrutínio e investigação, atualmente. Porém, é imperioso reconhecer que existem diversas forças sociais a acompanhar o deslinde desses atuais julgamentos. E alguns setores bem específicos, quer sócio-políticos, quer institucionais, ainda detém poder de fato suficiente para abalar as estruturas da atual Democracia.
Portanto, seria bastante útil à manutenção da Democracia que o STF realizasse um julgamento "jurídico propriamente dito" e condenasse às sanções penais, administrativas e civis, todos aqueles que comprovadamente participaram, direta e indiretamente, nos esquemas de desvio de verbas e cooptação política (lobby). Isso colocaria em risco à governabilidade, mas qualquer um(a) pode ser Presidente, mas nem todo governo é necessariamente Democrata.