O sufrágio é o direito conferido ao cidadão de participar na gestão da coisa pública. Essa participação poderá ser direta, se o povo decide sobre a prática de ato de governo, ou indireta, se o povo escolhe representantes políticos - que receberão das mãos do povo um mandato eletivo para exercer, como mandatários de uma delegação de poder, a gestão pública, elaborando leis e executando atividades do Estado. Eis a lição de Paulo Bonavides, em "Ciência política", na segunda edição, de 1974, bem cuidada, que conservo entre minhas obras preferidas.
Na República brasileira, o sufrágio é univeral e compreende as idéias de eleição, forma de escolha do representante político, e voto, decisão manifesta pelo representante escolhido na eleição. "Votar" - sabemos que não é esta a expressão - é um direito e um dever, concedido e imposto aos brasileiros. Se, por um lado, todos são autorizados a votar - desde que cumpram as exigências da legislação eleitoral -, de outro lado, a obrigatoriedade do "voto" força os eleitores inscritos a comparecer às urnas e registrar sua escolha - seja ela qual for, vez que além de obrigatório, é direto e secreto. Escolher os representantes é um ato coletivo, que ultrapassa os eventuais interesses do indivíduo e o congrega ao interesse público para que o Estado possa organizar suas instituições representativas; daí a eleição não pertencer ao Estado, mas ao povo. Os eleitores que não comparecem aos locais indicados pela Justiça Eleitoral sofrerão sanções estatais pela inobservância do dever eleitoral. Independente deste caráter obrigatório, eleger um representante continua a ser um direito oponível e exigível: quem vir impedimento a seu exercício, pode confrontar aquele que impede e exigir do Estado a proteção necessária a assegurar o sufrágio. Assim, o cidadão vê concretizado um direito humano fundamental: acesso ao Estado, por meio da manifestação de liberdade de expressão e opinião política, na escolha de representantes políticos, conforme ilustrado na Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Diante do atual quadro institucional brasileiro, algumas "mentes brilhantes" têm defendido o retorno ao sufrágio restrito. A "crise ética" ganhou força na mídia "imparcial" brasileira e, com essa força, se multiplicaram as vozes nas classes mais abastadas contra a participação do "povão" nas eleições, por meio de restrições ao voto popular. Ora, convém dizer o quê vem a ser isto, sufrágio restrito, antes de se proceder qualquer comentário ou qualquer linha ácida contra o instituto. Entenda-se bem que, diante da teoria do sufrágio restrito, pertencente à tradição da soberania nacional fulminada de morte no século XIX, somente algumas pessoas da sociedade têm o direito de exercer o sufrágio; este restrito grupo seria composto pelas pessoas mais capacitadas ou aptas, vez que representariam a "nação", o grupo étnico ou tradicional capaz de determinar qual a melhor política governamental. Este grupo seria composto por pessoas "de berço", a exemplo dos patrícios da Roma antiga, ou que preenchessem "determinados requisitos de riqueza ou instrução" (BONAVIDES, 1974, p. 274). Ou seja, estabelecer critérios de formação educacional para restringir o acesso do voto dos analfabetos é forma ilegítima de se compôr o Poder do Estado, vez que a soberania não seria popular, mas nacional (de uma nação, de pessoas com determinado e adequado "sangue azul").
Impossibilitar a participação dos analfabetos, ou melhor, daqueles que não saber ler e/ou escrever, não resolve o problema ético da política brasileira. Alega-se que eles, analfabetos, não sabem votar, não sabem escolher seus representantes, porque não têm formação acadêmica, ninguém os "ensinou a pensar". Ora, fico surpreso. Bem sabemos que não é uma Academia que forma um bom estudante ou um estudante politizado, bem informado; o quê forma uma cabeça pensante é sua curiosidade e persistência na busca do saber. Quantos jovens, que sabem ler e escrever, são incapazes de interpretar a realidade fática ou mesmo a mensagem dos livros neste País? A quanta desinformação está submetida a população brasileira, de todos os níveis sociais, que absorve passivamente a informação dos meios de comunicação de massa, sem interagir com a notícia? Quantas são as pessoas deste País que, além de trabalhar feito escravos, têm tempo de ler livros, quaisquer que sejam os livros? Conheço camponeses do interior deste Ceará que tem desenvoltura "p'ra colocá muito doutô no bolso". As pessoas humildes deste País - não se esqueçam - pertencem ao mesmo grupo destinatário das normas daquela Declaração de 1948 (sempre tão esquecida...), que assegura à espécie o direito de participar nas decisões democraticamente. Muito pior que o voto dos analfabetos, é o voto dos alienados. Muito pior que o voto dos alienados políticos, é a conduta de "homens do saber" deste Brasil que, inobstante terem frequentado as "melhores universidades" do mundo, foram capazes de cometer os maiores erros estratégicos em relação à pátria brasileira - isso para não dizer que muitos desses doutores não cometeram erro nenhum, senão agiram de má-fé e com óbvios e claros interesses particulares na gestão da coisa pública.
O que me entristesse, em relação a algumas camadas sociais brasileiras, é que existem "alguns" que "pensam" que o caminho mais eficaz para acabar com a pobreza é distanciar o pobre da vida estatal. O País pertence ao povo: aos favelados, aos que moram em casas de palafitas, aos que estão abandonados no campo. Este País é deles! E, docilmente, continuam suas vidas, massacrados, com jornadas de trabalho de mais de 15 horas por dia (porque saem de casa às 4:30h da manhã, para só retornarem às 20h da noite), morando em lugares insalubres, fétidos, sujos, habitados por animais e insetos que trazem doenças, morando no meio da lama e do esgoto que eles mesmos produzem. Não tem acesso ao saneamento, nem à água própria para o consumo. Não tem acesso à saúde pública (que existe, mas é precária e ineficiente), nem ao lazer ou desporto (a não ser nos "campinhos" espalhados nas grandes cidades, que nada mais são do que propriedades privadas a serviço da especulação imobiliária invadidas pela diversão popular). Não tem acesso, pois, ao Estado: à justiça, à riqueza, aos serviços públicos essenciais. E vão perder o seu direito mais importante? O direito ao voto? O qual injustos ainda podemos ser com estes milhões de brasileiros? Estes tais analfabetos não podem ser excluídos do pleito eleitoral. Aqueles que se sentem indignados com a escolha popular que se dignem a descer de seus tronos absolutistas e que vão à favela, ao campo, ao sertão "ensinar o povo a votar"!
Sugestão: leitura do artigo do professor catedrático da Universidade de Heidelberg, Friederich Müller, "Democracia e República". É preciso um alemão vir ao Brasil para ensinar-nos a nos comportar democraticamente? Talvez sim, para demonstrar que o Direito se faz através da luta, nunca através da concessão do "governante bondoso". Qualquer intenção legislativa em limitar o acesso do povo ao sufrágio deve ser duramente combatida, sob pena de retornarmos ao império do voto censitário.
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