sábado, 22 de julho de 2006

Segunda leitura acerca da violência em São Paulo

Alguns meses atrás, publiquei um post sobre a violência na desocupação de um imóvel em São Paulo. "De lá pra cá", os efeitos de uma desastrosa política social só agravaram a situação da população paulista. Senão, vejamos.

Os fatos sociais não são conseqüências aleatórias, mas também não são matematicamente previsíveis ou explicáveis. Daí a impossibilidade de prevê-los, ou poder explicá-los nos mínimos detalhes. O quê se pode fazer, enquanto estudioso, é traçar algumas linhas gerais que sejam capazes de traduzir a realidade de um contexto específico e demonstrar as reações que esse contexto provoca no seio social.


Não foi nenhuma surpresa o caos vivido pelos paulistanos nos recentes meses que correram; as rebeliões prisionais, ataques às instituições públicas, terror contra os serviços públicos (...), enfim, a segurança em todo o Estado de São Paulo ficou comprometida e paralizada pela ação do crime organizado que, ante a incapacidade de preparo e de resposta das autoridades legalmente instituídas, tomaram nas mãos armadas o controle da vida no centro neuvrágico da economia nacional. Ora, mas que outra situação se poderia esperar? Pode não ser muito clara a resposta, mas uma coisa parece óbvia ao ponto de ser redundante: a calamidade que viveu a população daquela unidade da Federação foi germinada em sucessivas más administrações do Governo do Estado, e a prova disto pode ser colhida nos recorrentes escândalos de desvio e má aplicação de verbas públicas que a Terra da Garoa protagonizou nas últimas décadas.

Falar que o sistema prisional está falido e que as delegacias e centros de detenção não tem capacidade de absorver a quantidade crescente de delinquentes e criminosos já é uma repetição infrutífera de pensamentos. Os problemas de superlotação e tráfico (de drogas, de armas, de celulares dentro das prisões e assim por diante) são conhecido por todos; o quê vem chamando a atenção da comunidade é a participação de advogados e agentes públicos nos esquemas de corrupção do crime organizado, que vem estendendo seus braços a quase todos os setores da res publica. O crime, no Brasil, já evoluiu, mudou de feição. Achar que o verdadeiro bandido é o pobre, sem educação e faminto "favelado" é pura tolice, porque o que as pesquisas indicam é que os grandes chefes e mentores do crime no País são pessoas da classe média, líderes das "novas religiões", funcionários públicos, políticos, dentre outros atores sociais que, na visão do homem comum, são pessoas idôneas e inofensivas - como o vizinho que mora no apartamento ao lado e escuta Roberto Carlos nos fins de semana.

Uma reflexão acerca desses problemas pode ser reveladora de uma situação aviltante, qual seja, a de distorção da moral brasileira, num ciclo vicioso de repetição histórica que impõe a cultura do descaso, influenciando largas camadas populacionais a aceitarem os desvios de comportamentos como coisas naturais - neste caso, desvios de conduta dos ideais éticos dos povos pós-modernos, construídos por vários aspectos da vida social, tendo em vista o paradigma Ocidental da democracia e da coisa pública, para a via dos comportamentos anti-sociais. Mas a formação do povo brasileiro e, por conseguinte, de sua cultura política, sofreu e sofre uma ação repressora por parte de grupos com interesses alheios àqueles expressos no ordenamento jurídico e no sentimento patriótico da Nação. De fato, um país, qualquer que seja, de grandes dimensões territoriais, com um subsolo rico, uma multi-biodiversidade preservada e de valor econômico inestimável, um mercado interno em formação e com grandes possibilidades de inserção consumista, tem um potencial de crescimento político e econômico que pode colocar em risco a hegemonia imperialista de um pequeno grupo de países. Imagine-se, ainda, uma posição geograficamente privilegiada, com a possibilidade de quatro safras anuais de uma infinidade de produtos agrícolas, reservas de combustíveis fósseis, lençois freáticos contendo o líquido precioso da vida e um povo acostumado a laborar nas mais adversas condições climáticas.

Mas os interesses de retardo no desenvolvimento brasileiro não encontram-se apenas em território estrangeiro. Tolo daquele que desconhece as vantagens de manter, sob rédeas curtas, uma grande massa populacional ignorante - e cá não se está a falar dos analfabetos -, porque não compreende quão complexa é a situação em que se encontra a República e o povo. A carência intelectual do povo brasileiro é alimentada e tutelada de forma genial por uma série de recursos midiáticos - e agora não se quer falar das divergências políticas ou dos interesses conflitantes dos diversos grupos ou comunidades. Na realidade, admitindo-se o fim das ideologias, o quê se vê é a pura dominação por poder, pelo poder e para o poder, em que uma pequena parcela da sociedade mantém subjugado o corpo social, para que se perpetue a condição social miserável na qual a maioria se encontra. Tanto isso é verdade, quanto o fato da dominação político-cultural brasileira se iniciar pelo incentivo de uma baixa auto-estima das população tropical - sempre acusada de ser preguiçosa e indolente.

E qual o papel da violência no Estado? A resposta foi dada por uma matéria publicada na revista Primeira Leitura, na matéria de capa da edição n.° 1793, do mês de junho de 2006. O título do artigo era "A violência é política", e os autores empenharam-se muito bem em atribuir ao Governo Federal toda a culpa pelo desmantelo da segurança no Estado de São Paulo, mas esqueceram-se de atribuir a mesma culpa a todas as pessoas envolvidas nesse drama: os eleitores paulistas, os ex-Governadores do Estado, os (mal remunerados) agentes prisionais, delegados de polícia, policiais e, por que não dizer, quitandeiros e feirantes, padeiros, motoristas de transportes públicos e o cão de rua que insiste em atravessar a rua... Diga-se isso porque a explosão de violência no território paulista não se reflete apenas na diminuição de repasse de verbas federais aos governos estaduais, assim como o problema da democracia da maioria não pode ser resolvido com o aumento do número de deputados federais paulistas na bancada congressista. Essa crise é política porque misturou-se a política com a bandidagem, no momento em que o Executivo do Estado começou a negociar uma "guerra fria" com o crime organizado - fechando acordos de paz, principalmente, nas vésperas de eleições. Com a cadeira do Executivo paulista vazia, em função das eleições presidenciais, ficou difícil deixar nas mãos do Vice-governador as intrincadas negociações de paz - ou não foi isso, também, o problema? Sim, porque o Governador do Estado abandonou o Estado para concorrer à Presidência, e seu substituto atua de maneira pífia diante das obrigações do Gabinete - ou não é esse, ainda, o problema? Tanto o Estado de São Paulo, quanto a própria capital homônima, são quase sempre machetes na mídia, com notícias as mais diversas: corrupção, crime organizado, pobreza, marginalidade, miséria, falta de planejamento, poluição. Esses são fatores determinantes no caos em que se meteu a população daquela região. Agora, determinar, com precisão cirúrgica a responsabilidade Federal no que ocorre em âmbito Estadual é como colocar a culpa da existência de favelas nos emigrantes nordestinos que foram trabalhar no Sudeste - recebendo baixos salários e proporcionando o crescimento e acúmulo do poder econômico dos industriais da Região.

A violência é sim um problema político. Só que a política é uma atitude humana e depende da participação do ser para que possa ser construída, de acordo com o equilíbrio de interesses humanos na Sociedade. A atividade política, ensinam os manuais, é uma constante negociação em torno de interesses legítimos e legais, ou seja, ela deve ocorrer tendo por objetivo o bem comum e a boa governança e, ainda, o respeito à ordem jurídica e social estabelecida pelo próprio agrupamento político. No caso brasileiro, tomando-se por base a tradição constitucionalista e, por força da Constituição "Cidadã" de 1988, esse processo de negociação dá-se através do sistema representativo, no qual os indivíduos eleitos pelo povo vão parlamentar nos processos de decisão - que originam o processo administrativo, o processo legislativo, orçamentário, dentre outros. Esses indivíduos comandam a coisa pública, traçam e determinam os rumos da Nação e suas atitudes servem, muitas vezes, de modelo de conduta para todos os cidadãos. Entretanto, devido aos problemas na infra-estrutura política nacional, que podem ser encontrados em todos os aspectos da vida social brasileira, as pessoas que comandam a "Nau" em sua maioria, ou na quase totalidade, são inaptas para exercer a vida pública, pois carecem de diversos atributos essenciais ao exercício de suas funções: conhecimentos técnicos, científicos, acadêmicos... Mas a inaptidão intelectual dos governantes, talvez, não seja o déficit mais preocupante. O que mais preocupa é a inexistência, na maioria dos parlamentares, de uma boa e decente formação moral, que os tenha atribuído a noção de respeito à coisa pública, de zelo pelo patrimônio de todos, o respeito pelo cumprimento das obrigações do cargo e o gosto pelo trabalho em prol do bem coletivo - essas são suas verdadeiras e mais preocupantes inaptidões. E são essas inaptidões que influenciam o aumento da criminalidade, de certeza da impunidade, a dilapidação do patrimônio coletivo. A violência é política e está institucionalizada; é um fato social brasileiro, que exige soluções particulares. Existem várias medidas, algumas mais urgentes que outras: a reforma do sistema carcerário e penitenciário, a reforma do processo e do Direito Penal, a reforma nas Funções Judiciárias, Executivas e Legislativas.

O que vem acontecendo em São Paulo não foi predeterminado pela vontade concreta de alguém, como também não foi um dado aleatório da vida em sociedade. Pode ser explicado de várias formas, mas a que parece mais concreta e palpável é aquela que explica o fato em virtude da incapacidade dos representantes do poder em zelar pela coisa pública e da que mostra o povo numa posição de incapacidade de engajamento na construção de uma identidade política brasileira que esteja segregada do clientelismo e das manobras midiáticas da elite econômica que controla o País. Ou seja, parafraseando Hegel e Del Vecchio, "cada povo tem o governo que merece".