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sexta-feira, 8 de agosto de 2014

O mérito numa sociedade desigual e de privilégios

Um dos temas mais polêmicos na teoria política diz respeito à meritocracia. De acordo com essa teoria, a investidura no poder deve dar-se quase que exclusivamente em razão do mérito do candidato. Porém, embora a meritocracia tenha sido um fator determinante no preenchimento de cargos públicos na Antiguidade, nas sociedades contemporâneas ela diz respeito diretamente ao sucesso na competição pela sobrevivência.




Antes de mais nada, convém ressaltar que os gregos - autores dessa perspectiva - pressupunham três critérios que integrariam a avaliação do mérito do cidadão num regime democrático: isagoria (a igualdade política entre os indivíduos do corpo civil), a isotimia (o livre acesso aos cargos públicos aos cidadãos) e a isonomia (a igualdade de todos perante a lei da pólis). Ainda, convém esclarecer que esse modelo helênico, puramente formal, tinha por alicerce uma sociedade fundamentalmente desigual e injusta: as mulheres e os filhos não eram cidadãos, ocupando, junto com o escravos, o patrimônio econômico do cidadão grego, ou seja, o locus social dessas pessoas era a puramente privado, sujeito às regras do justo e injusto de uma justiça privada ou não-pública, nos dizeres de Aristóteles (na obra "Política"). Isso para não descrever certos aspectos dessa cidadania, que admitia a venda de pessoas na qualidade de "escravo", como foi o caso de Platão, cidadão e filósofo ateniense que serviu nessa condição, num navio mercante, por vários anos. Com isso, pode-se afirmar que tal paradigma sócio-político de meritocracia era, inequivocamente, formal.

Dando prosseguimento a essa modesta investigação, pergunta-se: como essa estrutura foi absorvida pelas culturas ocidentais, e que marca (trauma) ela provoca nas formas de acesso ao poder (sócio-econômico)? Igualmente: quais seriam as consequências práticas desse tipo de perspectiva diante da obscena desigualdade entre os sujeitos que compõe um modelo jurídico-formal de Estado Democrático de Direito? E, finalmente: que perspectiva se abre diante dos contornos de uma democracia plural, inclusiva e participativa?

Em que pese os milênios de transformações sociais e culturais pelas quais passaram as civilizações ocidentais, que se abeberaram na filosofia grega para contemplar o modelo de Estado de Direito, a organização dessa Modernidade optou por uma abordagem puramente formal de configuração das estruturas de poder. Essa perspectiva está alinhavada numa transição paradigmática que faz parte das transformações registradas pela História (principalmente da Idade Média coletivista, para a Modernidade individualista), que culminou na prevalência dos interesses privados do homo oeconomicus, com uma mudança focal sobre a vida social, isto é, uma mudança de viés na concepção da organização da vida individual e coletiva: o cerne das preocupações do indivíduo passou da esfera pública para a privada. A promessa de um "futuro melhor" por meio do progresso foi o estopim e armadilha na qual se jogaram os países europeus, alimentados por ideologias e modelos sociais os mais variados - mas todos comprometidos com alguma tentativa ou proposta de equilíbrio entre os interesses individuais e nacionais: houve uma transmutação de conceitos: da coletividade para a nacionalidade, como bem ilustra os adeptos da Escola Histórica e das doutrinas jurídico-políticas que se utilizaram da filosofia hegeliana.

Entretanto, ao contrário do que indicava o fatalismo da abordagem histórica, os progressos tecnológicos de que se desfruta atualmente (revolução aeroespacial, telemática e informática, biotecnologia, energia termonuclear etc.) também modificaram aquela configuração sócio-política do Estado nacional: a globalização reduziu distâncias, eliminou fronteiras geográficas, tornando o mundo, paulatinamente, numa aldeia global, sem, contudo, resolver os problemas do passado. A miséria e os diversos tipos de desigualdade e exclusão social, ao contrário do esperado, se intensificaram. Isso porque essa globalização sedimentou-se sobre ruínas de uma disputa da Modernidade (entre os argumentos da economia de mercado e da economia planificada), que resultou com a vitória da perspectiva formal liberal, que assumiu os contornos de uma neoliberalismo: neo (novo) porque adequado a um mundo de plena liberdade conferida ao mercado financeiro e às grandes indústrias transnacionais; neo porque abandonou o indivíduo à própria sorte, por concentrar-se e validar apenas o direito à propriedade, e relegar ao plano meramente abstrato os direitos da personalidade (ao desenvolvimento das capacidades plenas do indivíduo).

Neste momento, torna-se necessário avaliar o argumento que discute a contemporaneidade - também designada de "pós-modernidade", que nada mais indica além da prevalência de um modo de vida pautado nas "sociedades mais desenvolvidas" (Lyotard) do complexo político de cariz eurocêntrico. O atual modelo de organização social tem na esfera econômico-financeira o seu alicerce primordial. Para ter "sucesso", os indivíduos devem zelar pela otimização dos recursos sociais e, dentre eles, tempo e dinheiro compõe a "chave para o sucesso" na organização dessa vida social. Assim, garantir os interesses pessoais e individuais é uma máxima válida e inquestionável, se o cidadão almejar uma sobrevivência plena e abundante em bens materiais e segurança financeira, numa sociedade de consumo em massa. Mas, em que pese todo o aparato das correntes do pensamento crítico, além da falta de oportunidade que continua a assolar as populações dos países da periferia da antiga divisão Norte-Sul globais, hoje, esse sistema global reproduz a miséria e os diversos tipos de desigualdade no centro desse sistema (Norte) - sendo a atual crise econômica europeia o melhor exemplo a ilustrar esse fato: inundados por imigrantes, sem perspetiva de empregabilidade (diante do fenômeno da deslocalização de empresas), com uma pirâmide social absolutamente invertida (envelhecimento populacional) e vivenciando políticas de austeridade, os europeus estão endividados, desempregados e desgovernados.

A competição global por acesso aos bens e aos recursos naturais, de um lado, só proporciona o referido progresso (prometido na Modernidade) àqueles dotados de privilégios que, porventura, consigam administrar e dispor de tempo e dinheiro (que já possuem) à formação que propicie o desenvolvimento de competências técnicas adequadas. De outro lado, os excluídos do processo não tem acesso a essas ferramentas, tendo que ocupar a margem industrial excluída pelos processos tecnológicos, recebendo apenas uma remuneração que só garante a sua reprodução biológica e o sustento de suas necessidades elementares. O que se constata é que houve um aumento (globalizado) do fosso que separa ricos e pobres.

Em que pese esse ser um cenário generalizado, ainda persistem algumas ilhas de resistência a esse panorama desalentador. Sobreviveu, em alguns países, uma linha de proteção social aos desamparados e, associada a ela, uma linha argumentativa de um modelo não-formal (mas nem por isso menos jurídico-político) de correção daquelas distorções formais do (neo)liberalismo. Seria uma linha por estabelecer um espaço limítrofe entre a humanidade e o mercado, entre o ser e o ter: as políticas públicas do Estado de Bem-estar Social e Democrático de Direito, sustentada por uma outra linha, também limítrofe, de reforma social, da social-democracia. Social-democracia essa que reconhece os direitos do indivíduo, consagrados pelo liberalismo político e jurídico, mas que também zela pelos direitos da sociedade; que dá a noção de que o indivíduo, antes de ter, é e está, e nessa condição de estar, convive. A união entre esse modelo estatal e o outro jurídico-político está vivo no texto constitucional de países como o Brasil, França, Itália, Alemanha e Portugal, dentre outros. Porém, as avaliações sobre a efetividade e a sobrevivência dessas linhas são desoladoras, porque, embora elas existam, a leitura e interpretação que se procedem sobre elas ainda é majoritariamente formal.

Significa dizer que, embora existam modelos jurídicos que assegurem a transposição dessas dificuldades e mazelas sociais, é necessário uma abordagem circunstancial e não-formal dessas garantias. Tome-se o caso de um problema global: corrupção. A abordagem formal da corrupção submete-a à formulações procedimentais e processuais que são incompatíveis ferramentas de solução do problema. Por que? Porque a impunidade relativa a ela é não-formal: não se trata de um problema sistêmico, mas extra-sistêmico; não é jurídico, é político, e está ligado à omissão (relativamente aos mecanismos da democracia participativa, de controle, fiscalização e cobrança dos atos de governo). Outro problema: formação educacional. Também esse seria um problema a exigir uma solução não-formal: de que adianta proporcionar o ingresso de discentes de classes sociais desprovidas às universidades (públicas e privadas), se não há livros, alimentação e transportes públicos e gratuitos aos estudantes? Em outras palavras: você consegue estudar com fome?

Portanto, as questões relativas ao mérito devem ser avaliadas diante da seguinte problemática: quem tem mais mérito? Aquele que goza de benefícios, facilidades, apoio e suporte financeiros, ou aquele que, mesmo diante de privações, falta de oportunidades e carestia consegue seu lugar ao Sol? Como se determina o mérito num modelo competitivo, desigual, formal e excludente?

segunda-feira, 28 de outubro de 2013

A "Fortaleza apavorada" e o "apocalipse zumbi"


Existe uma grande aproximação narrativa entre o seriado televisivo "The Walking Dead" e o sentimento de insegurança que se instalou no espírito urbano de uma parte da população de Fortaleza (Ceará / Brasil). Sendo possível fazer uma metáfora entre o programa televisivo e a intitulada "Fortaleza Apavorada", talvez seja também possível demonstrar que há uma lógica inerente às novas formas de dissociação entre as diversas realidades urbanas, a partir da perspectiva da exclusão social. Assim, ficariam mais expostas as linhas divisórias -- abissais -- que dividem a cidade, de forma caricata em relação às outras capitais brasileiras. Dessa foma, estar apavorado é fugir dos nossos "zumbis sociais".


Primeiramente, vamos situar a narrativa do "apocalipse zumbi", presente na obra cinematográfica citada. Trata-se de um gênero que ganhou popularidade nos países anglo-saxões por meio da obra do europeu George A. Romero - "The Night of the Living Dead" (1968) -, no qual a humanidade é destruída por uma calamidade qualquer (vírus, bactéria, radiação etc), que transforma os seres humanos em zumbis comedores de carne humana. Sem entrar no enredo propriamente dito -- até mesmo porque há diversos filmes com a mesma narrativa, com pequenas variações --, o que importa observar é a forma como a população que consegue sobreviver à praga global entrincheira-se, de forma a evitar o contágio, visto que qualquer mordida de um contaminado e a morte transforma o sobrevivente num morto-vivo.

Nesse contexto, os "normais" são aqueles que conseguem evitar o contato e, evidentemente, a contaminação com os "anormais"; isso significa que, para continuar vivo, o grupo de humanos rivaliza necessariamente por acesso aos recursos econômicos (água, comida, remédios etc) nos espaços sociais onde há uma infestação de "comedores de gente". E como fazer para evitar ser transmudado num zumbi? Armas! Armas e muita violência, posto que essas pessoas, no seriado, vivem num estado de anormalidade, no qual todas as instituições estatais e sociais foram destruídas -- imperando a máxima de "cada um por si" e do "salve-se quem puder", diante da qual a eliminação dos fracos e contaminados é quase mandatória, para garantir a continuidade da vida e do acesso aos recursos que a garantem. 

Nenhuma outra narrativa parece tão apropriada quanto aquela, para se delinear a segunda narrativa deste texto, qual seja, da "Fortaleza apavorada". Esta, por sua vez, reside no sentimento de "abandono", que deriva da insegurança pública que transpôs os limites da periferia pobre e invadiu o centro financeiro da capital alencarina. A violência -- tanto a institucionalizada, quanto a não-institucionalizada --, que era uma realidade das comunidades carentes (favelas) que circundam o centro urbano propriamente dito, agora converte-se numa regra geral, diante da impossibilidade de se concertar os problemas inerentes à pobreza e correlata incapacidade de se controlar a criminalidade somente com o recurso à polícia.

Em outras palavras, isso significa que, enquanto a violência física (agressões, mortes, assassinatos, roubos, estupros etc) faziam parte do cotidiano apenas das pessoas submetidas à violência econômica (pobreza, marginalização etc), a camada beneficiada pelo gozo dos direitos e das facilidades do mercado levava sua vida de consumo com um certo receio: a de que esse consumo poderia ser eventualmente suprimido. Isso porque a cidadania, nos tempos que correm, resume-se à cidadania econômica de consumo; quanto mais consumo, mais cidadania, maior é a inserção social e, consequentemente, mais "normal". Significa, também, que toda e qualquer forma de comportamento que danifique ou se rebele contra a autoridade da lei do mercado -- que define essas linhas urbanas (abissais) -- precisa ser combatida com a violência física apropriada e institucionalizada, com a proporcionalidade do delito cometido (como se pudesse ser submetida à análise economêtrica, como uma grandeza de ordem econômica, e não social).

Diante disso, é necessário reconhecer duas posições nessa comparação: (a) a da maioria numérica desprovida dos recursos financeiros e do espaço urbano central, do qual só podem aspirar a utilização caso estejam a realizar serviços e a produzir bens que não irão consumir; (b) a da minoria numérica, sobrevivente às calamidades da pobreza. No primeiro espaço, há o domínio das drogas, da banalidade da violência, da violência doméstica e urbana como condições inerentes à vida. No segundo espaço, prevalece a competição pelo acesso aos bens e aos serviços e a submissão à lex mercatoria (uma lei acima do próprio Estado, supranacional) -- sendo esta última elevada à categoria de dogma (realidade inquestionável).

Diante disso, quais as soluções apresentadas pela "Fortaleza Apavorada"?

A primeira delas vem da confiança (ainda que simbólica) nas instituições sociais consubstanciadas no aparato estatal. Nesse ponto, a reivindicação é por melhoria do aparelhamento, remuneração e do efetivo das forças policiais (recrutadas, também, dentre os cidadãos com menor poder aquisitivo) -- efetivo humano que, por razão das contingências sócio-econômicas, vê-se obrigado a entrar numa mini-guerra civil com os "anormais" que se inserem no crime. Essa ótica vê no Estado um instrumento coativo legitimado apenas a manter o status quo, visto existir uma ordem normativa superior (lex mercatoria) que é a única infalível e perfeitamente apta a regular a vida social; pertence à leitura weberiana de Estado, que predomina até hoje nos bancos das faculdades de Direito.

A segunda solução é o clamor pelo direito de resposta imediato à violência oriunda da "anormalidade": a violência privada e não institucionalizada, assente na ideia de autonomia e autotutela. Essa perspectiva, ao contrário da primeira, é uma espécie de distopia; distopia não no sentido de "apego à realidade", mas de negação da utopia, pela defesa da sociedade do horror -- um aspecto da sociedade do espetáculo de que nos falava a categoria de Baudrillard. Os adeptos dessa via imaginam um cenário no qual são protagonistas da defesa de seus próprios interesses, por meio de seus próprios recursos -- armas, segurança privada, organizações para-militares e congêneres --, e fazem uso desse discurso porque possuem os meios materiais (armas, carros blindados e dinheiro, enfim), capazes de substituir as instituições sociais e os mecanismos jurídicos democraticamente eleitos para tal desiderato. Trata-se de uma representação narcisística do "eu", que substitui o grande "Outro" (sociedade), por não ver nele a possibilidade de realização de seus interesses.

A terceira e última via, e que menos reverbera nos canais tradicionais de comunicação social, é a que exige a concretude de políticas públicas que ultrapassem a linha desenvolvimentista (ou neodesenvolvimentista) e que realizem o objetivo constitucional (política e utopicamente) positivado, de redução das desigualdades sociais, por meio da não-discriminação e da efetivação dos direitos sociais mínimos (educação, saúde e condições de trabalho digno). Isso porque a "normalidade" não dispõe nem dos recursos, nem da vontade política para realizá-la, haja vista a necessária reorganização de toda a malha de relações sócio-institucionais, que implicaria numa reconfiguração política da República -- única medida capaz de corrigir as discrepâncias entre o ser e o dever ser.

E quais as similaridades entre as duas narrativas, quais sejam, a dos mortos-vivos e a dos fortalezenses apavorados?

A primeira similaridade ocorre na noção de uma necessária separação entre as duas realidades, que só pode ser garantida por meio de uma linha urbana (abissal), que continue a cumprir o seu papel de separar a "normalidade" (do consumo e da opulência) da "anormalidade" (da violências física e da sócio-econômica); separação essa que garanta uma não contaminação entre os providos de recursos materiais e os desprovidos desses mesmos recursos. Isso porque é necessário que se deixe de fazer e que se deixe passar, quer dizer, que se adote uma nova atitude política que ultrapasse a da continuidade da produção e do consumo; é preciso gerar uma "descontinuidade" nessas relações sociais dominantes. Reconhecer isso significa dar reconhecimento ao confronto entre duas urbanidades: (i) uma comum à periferia, da fome e da ausência de dignidade, e (ii) outra à "centralidade", onde se concentra o dinheiro, da plenitude dos bens e das facilidades do mercado de consumo e da opulência.

A segunda similaridade é aquela hegemonicamente traduzida através do recurso à violência institucionalizada e não institucionalizada; ela recorre ao uso da força, das armas, do aparato coativo e coercitivo, como único instrumento capaz de manter afastada a contaminação que ameaça o cotidiano do consumo e da ostentação que somente o mercado (e suas leis internas) é capaz de proporcionar. Nesse sentido, a normalidade é a sujeição a essas normas e a capacidade de usufruto desse "campo do real", na medida em que haja uma adequação entre o que se faz e o que se pode consumir, ou entre os meios e recursos, de um lado, e a medida proporcional e desigual na obtenção dos bens, serviços e acesso aos espaços urbanos, de outro lado.

A terceira similaridade vem pela destruição discurso da terceira via, que seria a reestruturação da sociedade, por meio de regras humanitárias e solidárias que simplesmente não são mais aplicáveis, ante o horror generalizado pela tomada dos espaços sociais pelos "anormais". Essa é a mais cruel de todas as similaridades, pois reconhece que houve (ou que há) um discurso jurídico-político de inserção social, mas que lhe nega qualquer eficácia. A cidadania isonômica é uma promessa que não pode ser cumprida, uma das duas razões: (1) para que ele se cumpra, é necessário suspender as benesses do mercado, sacrificando o consumo e reestruturando a divisão social da riqueza; (2) não vale a pena defendê-lo, pois as pessoas que se beneficiariam dele -- os "anormais" -- não estariam aptos a gozar da "normalidade", por já estarem inaptos ao convívio com os normais (não há cura para a infestação apocalíptica dos zumbi). Diante dessas duas razões (hipotéticas), de uma forma ou de outra, a periferia teria que ser "centralizada", e isso seria o fim do espetáculo proporcionado entre os objetos do consumo e as desigualdades (diferença na concentração do poder social) que eles proporcionam. A única promessa viável é a cidadania econômica, centrada no consumo daqueles que "já possuem".

Antes de se concluir, deve-se reconhecer que o desastre escatológico (apocalíptico) sempre indicou aos humanos que a normalidade diante do horror só se realiza com apelo ao carpe diem -- prática social necessária à continuidade dos modelos de organização social. O "deixai fazer, deixai passar" também é um modelo ideológico subjacente à continuidade, pois se propõe a demonstrar a necessidade de uma conduta permissiva que conduza a um fim (no sentido escatológico) -- representa o "destino final": a síntese que põe termo ao sofrimento e à existência humana, diante de uma lei superior, inquestionável e fatal, sendo, por si, uma estratégia fatal. 

Portanto, o "anormal" é resistir à essa resolução, resistir à morte, à corrupção da carne e do sangue. Insistir em ser -- é essa a estratégia do morto-vivo --  é um comportamento que revoluciona, que se opõe à evolução natural, às "fatalidades" e à morte. Ser um morto-vivo (undead)  reorganiza, traz de volta à vida o que é podre, o que está em decomposição, alterando as dinâmicas do espaço-tempo humano: a insegurança reside no fato de que os "anormais" clamam os espaços (e os bens) materiais dos "não infectados", mesmo que para isso tenham que matá-los. Enquanto isso, os "normais" tem que eliminar os mortos-vivos, ou continuar aquartelados e enclausurados nos condomínios e nas fortalezas... e a urbe segue seu rumo.


sexta-feira, 8 de junho de 2012

O desperdício no sistema de produção capitalista e o papel do Estado

Muito se fala sobre os gastos do Estado Social e da necessidade de diminuir a participação deste não só nas atividades que desempenha, mas no exercício de regulamentação das atividades privadas. Os fundamentos para essas colocações seriam a sua ineficiência e o desperdício das ações públicas, e a maior habilidade dos privados (leia-se: empresas) na consecução dos serviços e atividades públicas. Porém, por detrás desses argumentos há um não tão evidente interesse na desregulamentação e exclusão do Estado, em favor do poder econômico ou poder das grandes corporações, em detrimento dos interesses sociais.


De fato, uma das maiores críticas que pesa sobre o Estado de Bem-estar Social é aquela que versa sobre o péssimo emprego dos recursos econômicos colocados à disposição do Estado pela Sociedade, arrecadados através da função tributária, e gastos através da intervenção estatal nas atividades econômicas e serviços colocados à disposição do público. 

Essas críticas se colocam antagonicamente à tese de que essa estrutura semi-intervencionista estatal possibilitaria uma redistribuição de recursos econômicos, por meio da captação de recursos e respectivos repasses, tanto a nível de infraestrutura econômica - o que promove o desenvolvimento das atividades empresariais, em momentos de crise de investimentos e excesso de liquidez -, e a garantia de serviços mínimos e estratégicos - que dão continuidade e estabilidade à vida social. Seria desse suposto equilíbrio, entre o público e o privado, que surgem os direitos sociais caracterizadores dessa forma de organização político-jurídica.

A hipótese acima ventilada confronta-se com as teorias de não-intervenção da lex publica sobre a lex mercatoria, tendo em vista um conflito de lógicas entre os interesses que seriam realmente "públicos" sobre aqueles que seriam iminentemente "privados". Porém, o que o modelo estatal sob comento preside é a criação de um espaço "social", que se coloca entre essas duas concepções, pela simples noção de que a "riqueza social", compreendidos entre a produção e a moeda, e os bens imateriais, neles inclusos os valores sociais e os objetos culturais, são bens sociais, o que significa dizer que pertencem à Sociedade - o esforço coletivo para a melhoria das condições de vida de todos os membros da Sociedade.

Ora, a ideologia (neo)liberal argumenta que o Estado dito "intervencionista" aumenta o desperdício de recursos naturais e econômicos, diante do problema da corrupção - que estaria inegavelmente ligado à atividade burocrática dos agentes e funcionários públicos. Esse argumento é válido, mas ele não se aplica apenas ao Estado. O desperdício e a ineficiência são sistêmicos: o sistema de produção capitalista pressupõe que as empresas estarão constantemente aumentando a sua produção e lucratividade, expandindo mercados e reafirmando sua posição diante de demandas que também, necessariamente devem se expandir, mesmo que os bens ofertados pelo sistema não sejam úteis ou necessários - como é o caso dos produtos supérfluos. Ainda, a eficiência propugnada por esse discurso existe apenas em modelos ideais de produção, que pressupõem argumentos como a "teoria das expectativas racionais" e os "equilíbrios de concorrência entre os agentes produtivos", que simplesmente não existem na prática - quer pelo comportamento irracional do mercado financeiro especulativo, quer pela existência de deformações concorrenciais (trustes, cartéis e monopólios de mercado). Isso porque a lex mercatoria atende apenas aos interesses do próprio mercado: a ideia de que as forças produtivas seguem uma lógica própria - o eterno apelo à "mão invisível" smithiniana. Ainda, a corrupção não é privilégio de funcionários e agentes públicos, mas um problema humano que, tendo em vista a busca pela satisfação de interesses e pela realização de desejos materiais, atinge a humanidade como um todo - diante de normas éticas, colocadas pelas comunidades, que são em maior ou menor grau desrespeitadas pelos indivíduos, em seu convívio.

Ocorre que, o funcionamento "natural" do mercado, discursivamente falando, apela a dois princípios que seriam caracterizadores da "natureza humana", em função da escassez: o egoísmo e a mesquinhez. De plano, é plenamente discutível se esses são dois valores elementares do ser humano, tendo em vista não a condição gregária do homem, mas mesmo a necessidade de solidariedade entre os indivíduos, para o atingimento de objetivos e interesses comuns - que é empregado, até mesmo, nas mais recentes correntes da gestão empresarial, que colocam o funcionário como um colaborador da empresa, por exemplo. Isso porque, mesmo se forem analisados os argumentos antropológicos da formação das Sociedades (independentemente se foi um acaso, ou força do destino), não há nenhum indício de que a liberdade de cada indivíduo prevaleceu ou prevalece sobre o desejo de igualdade de oportunidades trazido pela solidariedade humana. 

Se o sistema for observado de outra perspectiva (ecologia versus economia), vê-se que ele torna necessário  que haja um consumo crescente, o que impõe a não durabilidade dos produtos - a procura por bens deve ser exponencialmente positiva, para que seja também crescente a produção - o que pode ensejar a defesa da "eficiência" produtiva, mas não de uma eficiência "ambiental". Nesse sentido, à produção de bens e oferta de serviços está associada a fabricação de desejos (o fetiche da mercadoria), por meio das campanhas de marketing - um processo artificial de produção de necessidades, que deturpa a própria noção de "riqueza social". Além disso, o papel da mídia na criação dessas "falsas necessidades" está estruturado sistemicamente na requisição efetuada pelos produtores de bens e fornecedores de serviços, e não nos clamores de dignidade que advém da Sociedade.

Por fim, basta lembrar que, ao longo dos séculos, o Estado tem sido garantidor dos privilégios inerentes à propriedade, e tem respeitado a liberdade industriosa dos indivíduos que detém o poder econômico. Mas esse poder foi limitado, ao longo das reformas pelas quais tem passado o sistema, quer aquelas relativas exclusivamente à manutenção ideológica que dá suporte ao capitalismo (superestrutura), quer aquelas relativas ao apoio econômico dado à iniciativa privada. No primeiro caso, foi exigido o sacrifício da liberdade absoluta, em nível contratual, por meio de uma melhor proteção contra os abusos inerentes ao exercício do poder econômico. O segundo, a solidariedade exigida de toda a população, através do avanço no patrimônio de capitalistas e trabalhadores, para a manutenção do parque industrial, nos momentos de crise (como é o caso recente do bail out norteamericano, diante da crise financeira de 2008 - causa exclusivamente pelas instituições financeiras que, dentre outras práticas, emitiram títulos podres para capitalizar seus investimentos).

Diante dessas colocações, é preciso compreender que os processos de tomada de decisão jurídico-políticos não podem seguir apenas uma linha diretriz; não se pode privilegiar apenas o discurso da liberdade e da eficiência, nem apenas o da solidariedade e igualdade. O exame acurado da situação do desperdício não é um problema específico do Estado Social, mas um desafio à humanidade, supondo que não prosperará o sistema planificado de produção. Muito menos é salutar ou evidente pensar que o desperdício será solucionado apenas pelas forças econômicas do mercado. Preservar a livre iniciativa e os valores sociais do trabalho, com os objetivos de defender a soberania produtiva e a melhoria da qualidade de vida da população: eis um sistema equilibrado, que pressupõe a ponderação do jurista na escolha da melhor ética.

*
Antônio T. Praxedes é professor dos cursos de graduação e pós-graduação em Direito, na Universidade de Fortaleza, e do curso de graduação em Direito, na Faculdade Christus.

sexta-feira, 27 de abril de 2012

A questão agrária e a reforma agrária: críticas ao posicionamento da Avaaz.org - Por Gustavo Liberato

Caríssimos,

Atendendo a convocações e instâncias dos amigos Torquilho, Graça e Giovani, adentro esta comunidade para partilhar uma reflexão que me tomou ares de indignação, pela facilidade com que apresentada e pela "candura" justiceira que veicula.

De logo informo ao leitor que não advogo interesses de "criminosos de fazenda" (como se em algum grau fossem distintos dos demais) ou de escravocratas que reificam a condição humana, o que abomino - como se precisasse dizê-lo aos poucos que me conhecem. Mas devo atender à convocação da razão, acima de tudo, bem ao gosto de um Alber Camus, no seu "La Peste":


"Pero hay siempre un momento en la historia en el que quien se atreve a decir que dos y dos son cuatro está condenado a muerte. Bien lo sabe el maestro. Y la cuestión no es saber cuál será el castigo o la recompensa que aguarda a ese razonamiento. La cuestión es saber si dos y dos son o no cuatro".

Trata-se de um e-mail advindo da comunidade Avaaz.org, sempre muito bem quista pelo autor destas linhas, que, contudo, destoou de seu procedimento usual. Cuida-se de uma convocação à pressão sobre os parlamentares brasileiros no sentido de se aprovar uma Proposta de Emenda à Constituição - PEC que prevê o confisco, para fins de reforma agrária, das terras onde encontrado trabalho escravo. "Nada mais justo!", poder-se-ia dizer em rápida e irrefletida análise; outrossim, cumpre deixar o emocional um instante de lado, pois, como dito por Umberto Eco em seus "5 Escritos Morais":

“Diverso é, por outro lado, tentar definir 'função intelectual'. Esta consiste em distinguir criticamente aquilo que se considera uma aproximação satisfatória do próprio conceito de verdade – e pode ser exercida por qualquer um, até mesmo por um marginal que reflete sobre sua própria condição e, de alguma maneira, a expressa, do mesmo modo como pode ser traída por um escritor que reaja aos acontecimentos de modo passional, sem impor a si mesmo a decantação da reflexão”.

A "Função Intelectual" é parte indissociável do ser cidadão, e não exclusividade dos intelectuais, como a tautologia poderia fazer crer à primeira vista. De fato, o que se deve alertar para essa proposta é bem perceptível, pois sob as vestes do justiciamento contra a prática criminosa da redução de um ser humano à condição análoga à de escravo, há um palpável interesse de instrumentalização política, como se pode ver a seguir:

I - Passa-se a impressão da inexistência de normas no país, o que deixaria impunes os fazendeiros criminosos:

Ora, se isso for verdade, então inexiste possibilidade de seu julgamento nas esferas criminal e civil. Contudo, tanto os tipos penais existem (v. art. 149, do Código Penal - com apenação de 2 a 8 anos de reclusão no tipo básico, acrescido de multa) quanto se faz possível a responsabilização civil (inclusive com a penhora do bem, mesmo se considerado bem de família, caso o trabalhador seja visto como doméstico - v. art. 3º da lei 8.009/90).

II - Induz, nos arroubos de momento, à ilusão de que a vítima do crime seria beneficiária do confisco:

Essa hipótese não deve ser cogitada, pois se trata de ilação falsa, dado que o bem confiscado seguiria para fins de Reforma Agrária, e não pagamento de indenização às vítimas. É de se ver como se pretende obter, sempre indignamente, dividendos político-eleitorais da reificação alheia! Se o móvel da proposta é a proteção das vítimas, por que não lhes amparar processualmente (via Ministério Público e Defensorias) para fazer cumprir a legislação, inclusive civil, com o ressarcimento de danos materiais e morais? Por que entregar a propriedade à União para que "Ela" frua de dividendos políticos com o populismo? Registro novamente: a propriedade bem deveria ser penhorada para fins de pagamento das dívidas decorrentes de atos ilícitos cometidos contra as vítimas (uso conforme à legislação), e não para uso eleitoral.

III - Consideração de ordem constitucional:

Propõe-se a discussão de uma PEC que previria, a bem da função social da propriedade, mais uma restrição dessa. Contudo, porquanto já assinalado acima, resta evidente que seria necessário um juízo de ponderação, o qual, se devidamente conduzido, não autoriza a conclusão exposta. Com efeito, estar-se-ia instrumentalizando (a bem de certos interesses político-eleitoreiros) o patrimônio que deveria assegurar o valor das indenizações a serem pagas às vítimas do crime. Como, então, realizar a função social da propriedade se o primeiro prejudicado será o próprio vitimado? Simplesmente não faz sentido, a não ser se considerado o interesse de capitalização eleitoral.

Convém não acalentar ilusões; o teatro das sombras midiático e de mercado já se movimenta no sentido eleitoral de 2012 e 2014. Somente com o uso da razão é que se pode levar a efeito a missão central da cidadania: filtrar criticamente tudo o quanto lhe é apresentado como bom, justo e verdadeiro e, por vezes sem conta, frustrar-se, descobrindo o que de fato é e não é, mas sempre evitando o maldito processo de iconização da cidadania, tal como adverte o Prof. Friedrich Müller.

Por igual convém encerrar de logo, dado que não se deve abusar da cortesia feita pelo convite, mas talvez deixando e aberto a oportunidade de novas reflexões e críticas.

Agradecendo a oportunidade, firmo-me em fraternais saudações,

Prof. Gustavo Liberato
*
Gustavo T. Liberato é professor dos cursos de graduação e pós-graduação em Direito, na Universidade de Fortaleza. Ministra as disciplinas relativas ao Direito Constitucional.

terça-feira, 3 de janeiro de 2012

Ceará entregue ao crime e governo continua silente

O Estado do Ceará está entregue aos criminosos, devido a uma paralisação dos policiais militares - responsáveis pelo policiamento ostensivo, desde o dia 1º de Janeiro de 2012. Na realidade, como os militares não podem fazer greve, trata-se de motim, caso de insubordinação que pode culminar com a dispensa desonrosa dos amotinados. Além disso, o comportamento criminoso daqueles policiais militares que cobriram os rostos com capuz deveria ter sido rechaçado energicamente pelo Secretário de Segurança Pública - se não fosse o mais absoluto silêncio (descaso!) das autoridades governamentais cearenses.


Os policiais amotinados requerem 80% de reposição salarial e redução da carga de trabalho - reivindicações essas não atendidas pelo governo do Estado. Ora, causa espanto que esses agentes públicos estejam a requerer aumento a um governo que, meses atrás negou-se a atender semelhante demanda de professores da rede pública de ensino. Inclusive, ressalta-se que a Polícia Militar foi utilizada para reprimir (com um desfecho violento!) a greve dos professores. Ao que parece, essas reivindicações não serão consideradas legítimas pela população...

Porém, o que soa muito perigoso é o líder do motim dirigir-se ao comandante da 10ª Região Militar e desafiá-lo para uma "guerra" diante das câmeras de televisão. Além de ser uma tremenda estupidez (em duplo sentido: falta de bom senso e de bons princípios), tal atitude demonstra um sentimento de superioridade que somente a mais profunda arrogância poderia despertar. Em que pese o governo do Estado do Ceará, na figura de seu atual gestor - Cid Gomes - ter transformado alguns dos membros da corporação em autênticos criminosos (pelo uso desmedido e arbitrário da força contra os servidores civis do Estado), esses servidores militares adquiriram o sentimento de impunidade e a falsa noção de que não há legalidade neste País.

Observadas as regras democraticamente insculpidas na Constituição Federal, e na larga legislação infraconstitucional, percebe-se que essa (policiamento) é uma das funções estatais que não está albergada pelo direito de greve. Inclusive, já foi prolatada uma decisão judicial que considerou essa "greve" como ilegal - quer dizer, não podendo ser um ato qualificado como greve, não seria nada mais que um ato de ilegalidade. Ademais porque houve destruição do patrimônio público, ocupação ilegal de prédio militar e, evidentemente, insubordinação.

Entretanto, esses atos têm como supedâneo a mais completa irresponsabilidade e incompetência administrativas da atual gestão. É óbvio que a responsabilidade última é do governador Cid Gomes (que, ironicamente, encontra-se em visita à União Européia), que já deveria ter exonerado o atual Secretário de Segurança Pública (cujo nome não pode ser revelado aqui neste post por preguiça do autor em se dar ao trabalho de conhecer sequer a alcunha que já recebeu da população de Fortaleza - município mais afetado pela onda de violência). 

A solução para este caos deveria ter sido tomada imediatamente após a constatação de policiais encapuzados tomando de assalto o prédio da Polícia Militar do Estado. Enquanto existem mulheres e homens de família trabalhando nesta respeitável e ilibada Coorporação, que requerem e têm TODO O DIREITO a um aumento de remuneração e de melhoria das suas condições de trabalho, tem-se criminosos fantasiados de policiais. O Secretário de Segurança deveria ter prendido os "encapuzados" e ter-se declarado preso (esse é um procedimento militar), exigindo do governador o aumento do soldo de seus comandados. Teria conseguido, pelo menos, apoio moral das tropas. Mas, ao que parece, arriscar R$ 20 mil (vinte mil reais) de gratificação não é coisa para qualquer homem...

Exigir melhoria de remuneração e de condições de trabalho é direito de todo trabalhador. Em sua grande maioria, para não dizer na quase totalidade dos casos, a paralisação das funções é o último recurso dos trabalhadores. E ela ocorre quando o gestor se recusa a dialogar, é autoritário e/ou ausente - quem será que tem esse perfil? 

Por fim, seria necessário lembrar às autoridades públicas que a sociedade brasileira está desarmada. Quer dizer, hoje, no Brasil, apenas os bandidos e a polícia (???) possuem meios para a concretização da violência. A população abdicou do seu direito de autotutela (defesa dos próprios interesses) e encontra-se duplamente refém: do Estado e do crime. O Homem de bem está desarmado, e entregue.

***

O Ceará não é Sobral, senhor governador. É muito maior! Apareça por aqui, pois defender a segurança é uma competência constitucional do Governo do Estado. O clima europeu nesta época do ano, inclusive, não é muito propício para o turismo. Venha, pois já estamos todos com muitas saudades...

quarta-feira, 16 de junho de 2010

Em busca (de vestígios) do Socialismo brasileiro

O Socialismo surgiu como uma narrativa crítica ao contexto de exploração capitalista europeu. Desde sua conceituação utópica, até as influências analíticas que o transformaram numa disciplina de análise econômica, muitos foram os teóricos que se debruçaram diante da temática "injustiça social de natureza econômica". A influência do socialismo enquanto escola prático-teórica é claramente sentida na estruturação da Social-democracia europeia, cujos reflexos se fizeram sentir na redação dada à Constituição brasileira de 1988 - e é essa influência que pretendo comentar.

A priori, precisamos compreender que o Século XX foi um período dinâmico e fértil no campo da política / ideologia: o nazismo (Nationalsozialismus), o fascismo (de Salazar, em Portugal; de Franco, na Espanha; de Mussolini, na Itália; de Hiroito, no Japão) como expressão do poder da direita (elite capitalista); o capitalismo de Estado / comunismo (de Stalin, na União das Repúblicas Socialistas Soviéticas; de Mao Tsé Tung, na República Popular da China). Mais recentemente: o intervencionismo militar ao redor do globo, por meio do neoconservadorismo norteamericano (de Ronald Reagan e George Bush); a hegemonia russa em parte do leste europeu e Ásia (de Mikhail Gorbachev); da influência israelense no Oriente Médio e o surgimento do fanatismo islâmico como forma de resistência e, ao mesmo tempo, alternativa contra a influência ocidental.

Durante aquele século, as tecnologias de comunicação foram intensificando os contatos entre os povos de tal forma, disseminando idéias e novas formas de estar/conviver, que hoje temos essa aldeia global exatamente como reflexo desse avanço. A mídia (o meio) ajudou não só a disseminar essas idéias, mas sobremaneira, estabelecer padrões valorativos que se exprimiram por meio de práticas totalitaristas, das quais a mais conhecida é a política da Guerra Fria - como conseqüência natural da luta neoimperialista entre norteamericanos e soviéticos.

E o que a Guerra Fria tem a ver com a Constituição da República Federativa brasileira de 1988? Como explica a história, a Guerra Fria tinha como um dos principais pilares argumentativos a defesa da democracia e da liberdade de expressão. Além disso, as crises sociais européias e a necessidade de proteger aquele espaço territorial contra o avanço do então-chamado "comunismo" fizeram com que se construisse um modelo de proteção social (de bem estar social), que fosse capaz de justificar a continuidade do modelo de produção capitalista.

Neste ponto, quem estuda / estudou Direito Constitucional já "matou a charada". A Guerra Fria teve uma influência tremenda sobre a "nova" Constituição brasileira, visto que, além de trazer de volta a retórica democrática, trouxe também o fim da censura, uma maior intervenção do Estado na Economia (pela via do bem estar social), e assim por diante. Essas mudanças, que equilibraram a livre iniciativa com os valores sociais do trabalho (art. 1º, inciso IV da CF/88). O resultado disso é um equilíbrio entre o liberalismo e o socialismo: um país capitalista que investe e protege o bem estar social; os reflexos disso encontram-se esparsos na Constituição, mas podem ser encontrados em algumas áreas bastante específicas, como no capítulo II do Título II e na Ordem Econômica Constitucional, a partir do art. 170.

Mas o que tem a ver Social-democracia com Socialismo? Esta pergunta é mais complicada de ser respondida, pelo que é necessário apelar à boa-fé do leitor: tudo. Ela foi uma proposta de equilíbrio, e como tal, tentou congregar a propriedade privada dos meios de produção, de um lado, com a melhoria das condições de prestação do trabalho e da qualidade de vida dos trabalhadores, de outro. Qualquer dúvida, é só fazer uma comparação entre o "decálogo" (os dez itens da 2ª parte) do "Manifesto do Partido Comunista" de Karl Marx, de 1948 e o art. 5º e 6º da Constituição Federal; os pontos em comum seriam: desapropriação da propriedade latifundiária improdutiva (função da propriedade privada), imposto progressivo (sobre as grandes fortunas, sobre a propriedade urbana desabitada ou não-ocupada), políticas de fomento e assistência estatal para o desenvolvimento social, luta contra a discriminação entre trabalhadores rurais e urbanos, educação pública e gratuita às crianças e a proibição do trabalho infantil.

Sem dúvida, existe grande influência da perspectiva socialista na social-democracia. Embora esse perspectiva política tenha representado pouco mais que uma espécie de propaganda (no sentido preciso da palavra), foi um alento à população brasileira, no sentido de apresentar uma alternativa ao capitalismo selvagem que perdurou até o fim da ditadura militar 1964-1986.

Entretanto, ultrapassado o antagonismo existente entre norte-americanos e soviéticos, com o fim do muro de Berlim e a queda do modelo stalinista, a social-democracia vem se convertendo em neoliberalismo, não só em seu nascedouro europeu, mas na foz latino-americana, nomeadamente, no Brasil. A crise política identitária, que se traduz na ausência quer de uma direita, quer de uma esquerda bem definidas, é o reflexo do desmonte do Estado de bem estar social, pelo desaparecimento ou desnecessidade de uma social-democracia.

Portanto, o que se observa é o desaparecimento paulatino da retórica socialista, em substituição ao vazio argumentativo de um Estado regulador e não-interventor. Essa nova fase não é confusa, é de transição, e aos "pensadores novos" (os jovens, estudantes), compete redescobrir um caminho alternativo, socializante, integrador, justo e solidário, capaz de vencer os desafios da nova ordem mundial. É preciso reinventar o socialismo, desta feita, "à brasileira".

sábado, 14 de março de 2009

Reunião do G20 em Londres: o Sul global e as novas relações internacionais

Com o avanço do processo de globalização do sistema mundo de produção capitalista, deslocam-se as linhas abissais de apropriação/violência e regulação/emancipação. Essa é uma metáfora de Boaventura de Sousa Santos para explicar como estão se desenvolvendo as novas e algumas vezes perigosas dinâmicas neste início do século. A contínua expansão dos centros urbanos e o novo processo de destruição da cultura não-urbana (agrícola e de subsistência) vai alterando o panorama cultural, econômico e, como não poderia deixar de ser, a configuração do sistema de concertação internacional.

Nesse âmbito, é preciso reconhecer um duplo efeito: enquanto a desenvolvimento ou "progresso industrial" vai alcançando a periferia e semi-periferia do sistema mundo, a apropriação e violência começa a se reproduzir no núcleo duro do sistema. Esse câmbio não tem apenas uma natureza puramente econômica, embora possa-se afirmar que uma das principais forças a mover essa roda seja exatamente a deslocação da produção para o Sul. Mas o fato que nos interessa aqui é observar que houve uma mudança no discurso ou retórico-discursiva quanto ao papel dos países mais pobres dentro desse sistema.


Hoje e principalmente depois da nova crise econômica que se iniciou nos EUA no ano passado, os países do Norte declaram abertamente a necessidade de uma aliança com outros mercados e blocos econômicos, gerados principalmente pelos mercados e blocos econômicos asiáticos e latino americanos - que enfraqueceu a hegemonia Zona Euro e Norte-americana. É evidente que essa nova influência já havia provocado turbulências globais, como são exemplos a crise econômica que se iniciou na Argentina no fim dos anos 1990s, no México e Rússia no início dos anos 2000 e assim por diante. Ainda, depois da entrada da China na OMC, o hino em torno de um "livre mercado" e do fim das barreiras protecionistas colocaram em cheque não apenas os modelos de proteção do Norte, como interligaram e estabeleceram um equilíbrio na distribuição de riquezas ao redor do globo. Pena que essa distribuição de riquezas se deu apenas ao nível do Produto Interno Bruto, sem maiores efeitos na distribuição per capita real mas, pelo contrário, quer considerando os países do chamado "B.R.I.C.", quer os "Tigres Asiáticos", não é possível se dizer que se tenha construído um modelo de proteção social como o do Estado Providência europeu (que operou entre os anos 1950-1980).

Entretanto, mesmo diante dos dissabores trazidos pela contínua acumulação de riquezas (em nível interno), convém dizer que essa distribuição de riquezas ou recursos financeiros deu um novo fôlego aos países do Sul, principalmente ao nível das negociações internacionais sobre o comércio mundial. Tendo em vista que esses mercados menos desenvolvidos continuam a importar a tecnologia produzida no Norte e a exportar raw materials (agroindustriais e minerais) para esses mesmos mercados, o trade off é positivo do ponto de vista político, devido à maior independência em diversas áreas, principalmente na dos gastos sociais. Com maior poder de barganha, torna-se possível discutir melhores e menores tarifas sobre os produtos, garantindo muitas vezes uma valorização (positiva) na cotação dos principais produtos das balanças comerciais desses países.

Tanto isso se comprova, quanto se expressa na atual reunião do G20 em Londres, neste fim de semana. O Primeiro Ministro britânico Gordon Brown foi claro em seu pronunciamento esta manhão, quando afirmou que é preciso uma cooperação global para a regulamentação do mercado mundial - menos livre, portanto - e que é preciso haver um plano mundial de investimentos estatais nesta mesma antes livre e desregulamentada Economia Global.

Portanto, a luta agora é para que o novo modelo de regulação não sirva apenas para garantir privilégios aos antigos protagonistas do comércio mundial (o eixo anglo-saxão e a Eurozona). Os novos atores nesse cenário - os antigos figurantes - precisam tomar partido dessa nova configuração política e abandonar as antigas práticas subservientes do início do período pós-colonial. O momento agora é o de uma Nova Nova Ordem Mundial, menos neoliberal, mais intervencionista e mais emancipadora. O problema será o modelo de desenvolvimento desejado...

sábado, 7 de fevereiro de 2009

Trabalho com dignidade: commodity escassa

Um dos problemas mais sensíveis da humanidade é o da relação de trabalho. Seja porque o trabalho é necessário à manutenção da vida - a luta pela vida -, seja porque persiste a idéia de que alguns poucos tem o direito de sobreviver às custas de muitos -- dinâmica exploradores e explorados --, as teorias e os conceitos sociais acerca do mundo laboral são dos mais complexos e controversos que existem nas "ciências" sociais humanas.

De fato, um dos problemas mais profundos em torno dessas questões de categorias e contextos é também o mais difícil de encontrar resolução: a questão ideológica. Por isso, diversos autores de correntes diversas (Zyzek, Habbermas, Boaventura, Giddens, Castells, para citar alguns) levantam a problemática da ideologia na construção das "ciências" sociais e humanas, porque é exatamente nesse campo de batalha que as práticas sociais são justificadas e, também, são coroadas estas ou aquelas formas de regulamentação social. Para completar essa panóplia, estão duas ferramentas elementares: o caráter auto-biográfico dessas ditas "ciências" e o não menos importante aspecto auto-referencial. Esse círculo vicioso encerra em suas fronteiras toda forma de apelo popular e democrático que se encontra além das fronteiras anti-democráticas da Academia (ou das universidades, como queiram).


Por isso, o conceito de trabalho digno permanece vazio de conteúdo axiológico: o vácuo conceitual é incapaz de oferecer qualquer solução valorativa que esteja de fora da dinâmica auto-referencial e auto-biográfica. Talvez seja por isso que um dos apelos mais dramáticos à proteção dos direitos humanos do trabalho seja a questão da cultura laboral. Mas até nesse âmbito encontra-se uma questão incontornável: a exploração entre classes sociais também é um dado histórico-cultural, e a dinámica inter-classes também surge como um fator determinante e náo apenas como construto social, no qual se justificam uma série de direitos (protetores de privilégios) sobre os bens de produção de riquezas, que amparam a continuidade dessas relações sociais, tais como o direito à herança, às situações de oligopólios e cartéis, para não citar o elementar e quase sagrado direito à propriedade privada dos meios de produção.

Nesse contexto de uma constante apropriação e privatização de todos os espaços aonde ocorre a vida (e a vida social), o trabalho humano se afirma cada vez mais como uma mercadoria. O exemplo mais vivo disso são os contratos de terceirização de mão-de-obra e os deslocamentos, quando os trabalhadores de uma empresa são cedidos e trabalham subordinados à administradores de empresas que mantém contratos de serviços com os reais empregadores da mão-de-obra. Outro exemplo das distorções que ocorrem na prestação do trabalho e que afetam a segurança dos trabalhadores são os chamados trabalhadores autônomos falseados, quer dizer, pessoas que estão sujeitas às características que determinam uma relação laboral, mas que executam suas atividades ao desamparo das normas jurídicas aplicáveis ao caso.

Contudo, observe-se que estamos a discutir as situações exuberantes, isto é, os mercados de trabalho aonde não são tolerados os casos de escravidão e servidão. Mesmo que essas distorções existam, os ordenamentos jurídicos desses mercados ainda conseguem punir e tornar clandestino e pouco rentável a sua existência, pela criminalização dos grupos que reduzem pessoas humanas à condição desumana da subserviência absoluta.

Entretanto, uma das preocupações mais sérias - mas que ainda não obteve nenhuma resposta à altura de sua complexidade - é saber o que acontecerá com os direitos sociais diante da globalização do sistema mundo de produção capitalista? Essa pergunta não é simples ferramenta retórica. Ela demonstra que os mercados de trabalho mais regulamentados têm seus níveis de competitividade econômica abalados pelo deslocamento da produção aos países com menor proteção social e, consequentemente, menores custos produtivos. Se esses mercados são standards (paradigmas) de proteção social, é possível e lógico de se supor que haverá uma corrida pela desregulamentação dos direitos sociais tantos nos países ricos, quanto nos países pobres (já possuidores de menores níveis de proteção social).

Todavia, essa corrida pela desregulamentação arruinará o direito dos trabalhadores, mas é uma WIN-WIN situation para os grandes capitalistas, principalmente para as multinacionais. Isso porque a deslocalização de empresas e da produção são praticas da indústria. Em outras palavras, o que quer que requeira um aumento de competitividade, em última análise, ganha o capital (pela manutenção e aumento do lucro) e perde o trabalhador (porque diminui seu poder de compra e sua capacidade de reprodução e sobrevivência). Ainda, não é prudente esquecer que os trabalhadores investem na especialização e no aprimoramento de novas formas de produção, visto que cada vez mais os investimentos em aprendizado e inovação partem da classe trabalhadora -- vez que o Estado não é mais garantidor da educação de nível superior.

Portanto, é possível concluir que estamos diante de um movimento pela (neo)liberalização dos direitos sociais. A curto prazo, essa corrida garantirá o consumo interno e a circulação de riquezas. Mas a médio e longo prazo, em toda situação de crise de sobre-produção e de especulação financeira, as populações não terão o suporte de seguridade estatal a garantir a manutenção mínima da dignidade material que antes era proporcionada pelas contrapartidas assistenciais do Estado (pagas com recursos tributários e fiscais). Foi por isso que algumas economias emergentes, como o Brasil, adotaram sistemas previdenciários e de assistência social com receitas diversas e, do ponto de vista da seguridade social, estipularam a contribuição patronal como suplementar à do trabalhador, na manutenção de fundos e caixas de apoio ao trabalhador desempregado e aposentado.

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Todos os países sofrem com a recessão. Enquanto isso, em Mônaco e Andorra...

terça-feira, 2 de dezembro de 2008

Estatizações de bancos à vista, na Inglaterra

O Primeiro Ministro britânico Gordon Brown deu um duro recado aos bancos ingleses que receberam investimentos públicos na crise financeira: se não repassarem esses investimentos na forma de créditos à população e ajudarem a movimentar a economia, poderão ser estatizados.

A notícia é tão "bizarra" que ainda não consegui digerir a idéia, desde o dia 25/11/2008 até hoje, 02/12/2008. Gostaria de saber o que o leitor pensa disso.

Sobre esse assunto, pode enviar-me um email (clique aqui) ou deixar seus comentários no blog (clique aqui).

segunda-feira, 24 de novembro de 2008

Flexibilidade no trabalho e as necessárias contra-partidas

As teses que defendem a necessidade de flexibilidade dos contratos de trabalho são cínicas. Seu cinismo não está centrado na insegurança a que subtem os trabalhadores, mas ao seu alcance limitado aos trabalhadores que alferem baixos e médios salários, sem atingir outros setores do mercado de trabalhos, nomeadamente, executivos, diretores e outros cargos de alto escalão.

Com efeito, as medidas de flexibilização dos contratos de trabalho visam promover uma maior facilidade na contratação e no despedimento de trabalhadores. Essa espécie de heresia aos direitos humanos consagrados na Declaração Universal dos Direitos Humanos (arts. 22 e ss.) é, antes de mais, uma consequência do discurso emergencial no qual se baseiam as decisões políticos nesse período pós-político. Assim, os argumentos jurídico-econômicos apresentam-se como infalíveis e aéticos, de forma a garantir a maximização de recursos e melhores resultados econômicos, que garantam a sustentabilidade da Economia.

Entretanto, as medidas de flexibilização são direcionadas apenas às partes mais fraca da cadeia de produção. Isso se dá por uma razão simples: já que o sistema privilegia ou atribui bons méritos aos profissionais com "melhor formação" (via de regra, formação acadêmica), os trabalhadores que só dispõe de sua força-de-trabalho devem continuar em situação de insegurança jurídica constante, visto que os únicos insubstituíveis são aqueles com melhores aptidões laborais. Ora, esse tipo de "meritocracia" tende apenas a agravar situações de desigualdade social, porque privilegia as classes mais abastadas, isto é, garante a continuidade dos modelos de "mérito hereditário", quer dizer, um mérito vinculado à capacidade econômica de enviar a prole às melhores escolas.

Num sistema de produção que tem a competição como um de seus pilares, para que as regras do jogo sejam minimamente justas, é preciso garantir: 1) acesso gratuito, amplo e irrestrito aos mesmos níveis de Educação, com o consequente fim de instituições de ensino privadas; 2) gratuidade total do ensino, nela inclusa o acesso à livros e material de apoio; 3) nivelação salarial para todos os tipos de cargo, independente do tipo de trabalho, para que o "mérito" seja remunerado em consonância com a dedicação pelo trabalho, e não apenas à aptidão para o exercício do trabalho; 4) em nível da OMC, um tratado internacional que estabeleça a proibição de comércio com países que não garantam a mínima proteção social aos trabalhadores, que empreguem trabalho escravo ou semi-escravo, que tolerem o trabalho infantil e que não possuam sistemas de proteção ao desemprego e assistência social mínimos; 5) uma moratória sobre a dívida interna e externa dos países em desenvolvimento e sub-desenvolvidos, para que possam estruturar suas economias de forma a elevar seus padrões de bem-estar social, garantindo justiça social em nível global; 6) a implementação do imposto TOBIN (ou outra solução similar), que incida sobre as operações financeiras de curto e médio prazo, dando total isenção fiscal aos investimentos financeiros com prazos de recapitalização de 20 anos ou mais.

Essas são medidas para se acabar com privilégios. Se os trabalhadores têm que abrir mão de seus direitos, em função dos imperativos econômicos, os empresários devem perder seus privilégios, para que se estabeleça um modelo mais justo de normatização econômica. Se tem que haver flexibilidade de normas sociais, deve haver também a flexibilização de normas anti-sociais, nomeadamente daquelas que protegem as grandes fortunas e os grandes monopólios.

quinta-feira, 20 de novembro de 2008

União sagrada para a vigarice sagrada - por Éric Toussaint*

(Este artigo encontra-se em http://resistir.info/)

"O salvamento dos bancos e dos seguros privados realizado em setembro-outubro de 2008 constitui uma escolha política forte que não tinha nada de inelutável e que compromete o futuro em vários níveis decisivos.

"Em primeiro lugar, o custo da operação fica inteiramente a cargo dos poderes públicos, o que implicará um aumento muito importante da dívida pública[1]. A crise capitalista atual, que durará ao menos vários anos, até mesmo uma dezena de anos[2], vai implicar uma redução das receitas do Estado enquanto aumentarão os seus encargos ligados ao reembolso da dívida. Em consequência, as pressões para reduzir as despesas sociais vão ser muito fortes.

"Os governos da América do Norte e da Europa substituíram um andaime balouçante de dívidas privadas por uma montagem esmagadora de dívidas públicas. Segundo o banco Barclays, os governos europeus da zona euro em 2009 vão emitir novos títulos de dívida pública num montante que deveria atingir 925 bilhões de euros [3] . É uma soma colossal, sem contar as novas emissões de títulos do Tesouro pelos Estados Unidos, Grã-Bretanha, Japão, Canadá, etc. Entretanto, até recentemente, havia um consenso desses mesmos governos no sentido de reduzir a dívida pública. Os partidos da direita, do centro e da esquerda tradicional apoiaram todos a política de salvamento favorável aos grandes acionistas sob o pretexto falacioso de que não havia outras soluções para proteger a poupança da população e o funcionamento do sistema de crédito.

"Esta união sagrada significa a transferência da fatura à maioria da população, que será convidada a pagar as travessuras dos capitalistas sob diferentes formas: redução dos serviços que o Estado fornece à população, perdas de emprego, baixa do poder de compra, aumento das contribuições dos pacientes para os cuidados de saúde, dos pais para a educação dos filhos, redução dos investimentos públicos... e um aumento dos impostos indiretos.

"Como são financiadas atualmente as operações de salvamento que estão em curso na América do Norte e na Europa? O Estado contribui com dinheiro fresco para bancos e seguradoras à beira da falência, seja sob a forma de recapitalização seja sob a forma de compra dos ativos tóxicos das empresas referidas. O que fazem os bancos e as seguradoras com esse dinheiro fresco? Essencialmente, eles compram ativos seguros para substituir ativos tóxicos no seu balanço. Quais são os ativos mais seguros neste momento? Os títulos da dívida pública emitidos pelos Estados dos países mais industrializados (títulos do Tesouro dos EUA, da Alemanha, da França, da Bélgica...).

"A fivela está afivelada: o Estado dá dinheiro às instituições financeiras privadas (Fortis, Dexia, ING, bancos franceses, britânicos, norte-americanos...). Para fazer isso, os Estados emitem títulos do Tesouro público que são subscritos por esses mesmos bancos e seguradoras, que são mantidos no setor privado (pois o Estado não pediu que o capital que ele concede lhe dê o direito de tomar as decisões, nem mesmo de participar nas votações) e que fazem novos lucros emprestando o dinheiro fresco que acabam de receber dos Estados[4],a esses mesmos Estados, exigindo naturalmente um juro máximo...

"Essa enorme vigarice em curso beneficia-se da lei do silêncio. A omerta está em vigor entre os principais protagonistas: governos, banqueiros ladrões, seguradoras rufiãs. Os grandes media evitam cuidadosamente analisar até o fim o mecanismo de financiamento das operações de salvamento. Eles demoram-se nos pormenores: a árvore que esconde a floresta. Exemplo: a grande questão que se coloca na Bélgica a propósito do financiamento da recapitalização do Fortis, que fica sob o controle do BNP Paribas, é a seguinte: quanto valerá a acção do Fortis em 2012 quando o Estado que se tornou comprador poderá revendê-la? Naturalmente, ninguém pode responder seriamente a essa questão, mas isso não impede a imprensa de a ela consagrar páginas inteiras. Isto permite desviar a atenção. A filosofia e o mecanismo da operação de salvamento não são analisadas. Será preciso esperar que, graças à operação conjugada dos media alternativos, das organizações de cidadãos, das delegações sindicais e dos partidos políticos da esquerda radical[5], essa grande vigarice venha a ser compreendida por uma parte crescente da população e denunciada. Isso não será fácil, uma vez que o alarido é considerável.

"À medida em que a crise se agravar nascerá um profundo mal-estar que se transformará em desafio político em relação aos governos que realizaram esse tipo de operação. Se o jogo político prosseguir sem grande perturbação, os governos de direita hoje no poder serão substituídos por governos de centro-esquerda que prosseguirão uma política social-liberal. Da mesma forma, os atuais governos sociais-liberais serão substituídos por governos de direita. Cada um por sua vez, eles criticarão a gestão dos seus antecessores afirmando que esvaziaram os cofres do Estado[6] e que não há margem de manobra para concessões às reivindicações sociais.

"Não há nada de inelutável em político. Um outro cenário é inteiramente possível. Primeiro, é preciso afirmar que se pode perfeitamente salvar a poupança dos cidadãos e o sistema de crédito de uma outra maneira. Pode-se assegurar a proteção da poupança da população graças à colocação sob estatuto público das empresas de crédito e de seguros à beira da falência. Por outras palavras, trata-se de as estatizar ou de as nacionalizar. Isso significa que o Estado que se torna proprietário garante a responsabilidade da sua gestão. A fim de evitar que o custo desta operação recaia sobre a esmagadora maioria da população que não tem nenhuma responsabilidade na crise, os poderes públicos devem fazer pagar aqueles que estão na origem desta. Basta recuperar o custo do salvamento das empresas afetadas tomando um montante igual do patrimônio dos grandes acionistas e dos administradores. Evidentemente, isso implica levar em conta o conjunto desses patrimônios e não apenas a parte saída das sociedades financeiras em falência.

"O Estado deve igualmente iniciar processos legais contra os acionistas e os administradores responsáveis pelo desastre financeiro, a fim de obter ao mesmo tempo reparações financeiras (que vão para além do custo imediato do salvamento) e condenações a penas de prisão se a culpabilidade for demonstrada. É preciso também tomar um imposto de crise sobre o grande capital a fim de financiar um fundo de solidariedade para as vítimas da crise (nomeadamente os desempregados) e para criar emprego em setores úteis para a sociedade.

"Numerosas medidas complementares são necessárias: abertura da contabilidade das empresas com direito de vista às organizações sindicais, levantamento do segredo bancário, proibição dos paraísos fiscais a começar pela proibição às empresas de ter qualquer transação ou ativo que seja com ou num paraíso fiscal, imposto progressivo sobre as transações em divisas e sobre os produtos derivados, instauração do controle sobre os movimentos de capitais e sobre os câmbios, travagem de toda nova medida de desregulamentação/liberalização dos mercados e dos serviços públicos, retorno a serviços públicos de qualidade... O agravamento da crise remeterá à ordem do dia a questão da transferência de setores industriais e de serviços privados para o setor público, assim como a questão da execução de planos vastos para a criação de empregos.

"Tudo isso permitiria sair desta crise grave pelo alto, a saber, levando em conta o interesses das populações. Trata-se de reunir as energias para criar uma relação de forças favorável à colocação em prática das soluções radicais que têm como prioridade a justiça social."

- Notas:

"|1| Do lado dos governos e da Comissão Européia, no entanto encarregada de velar pelo respeito às normas de Maastricht, evita-se cuidadosamente o assunto. Quando os jornalistas se tornam realmente insistente, o que é muito raro, é-lhes respondido que não se tinha escolha. É preciso também precisar que vários governos realizam, tal como os bancos falidos, operações fora do balanço ou fora do orçamento a fim de dissimular o montante exato das suas obrigações em termos de dívidas publicas.

"|2| Pode-se comparar com a crise em que se debateu o Japão a partir do princípio dos anos 1990 e de que ele saiu só quando esta crise o atingiu com plena intensidade.

"|3| Segundo o Barclays, esta soma seria repartida como se segue: 238 bilhões para a Alemanha, 220 bilhões para a Itália, 175 bilhões para a França, 80 bilhões para a Espanha, 69,5 bilhões para os Países Baixos, 53 bilhões para a Grécia, 32 bilhões para a Áustria, 24 bilhões para a Bélgica, 15 bilhões para a Irlanda e 12 bilhões para Portugal.

"|4| Naturalmente, o dinheiro fresco oferecido pelo Estado não será utilizado unicamente para a compra de títulos do Tesouro, servirá igualmente para novas reestruturações bancárias assim como para o lucro direto dos bancos.

"|5| Esperemos que se possa contar igualmente com parlamentares que façam sua tarefa e com jornalistas que nos grandes media desejem realmente analisar de modo crítico a maneira como o salvamento bancário é até agora realizado.

"|6| Eles poderiam denunciar isto ou tentar agir desde já no interior das instituições parlamentares. Se não o fazem, então é evidente que sabem perfeitamente que a dívida pública vai aumentar fortemente, é que eles concordam com a orientação escolhida. De fato, eles escolheram a união sagrada que romperão com o aproximar das eleições."

(O original encontra-se em http://www.cadtm.org/spip.php?article3845)

***

* Éric Toussaint é presidente do Comitê pela Anulação da Dívida do Terceiro Mundo da Belgique (CADTM); é formado em história e doutor em ciências politicas pela Universidade de Liège (ULg) e de Paris VIII; é membro do conselho científico de Attac France, da rede científica de Attac Belgique e do conselho internacional do Forum Social Mundial; também é membro do comitê internacional da Quarta Internacional e da sua seção belga (LCR-SAP).

terça-feira, 4 de novembro de 2008

O meio ambiente da corrupção no Ceará

Os livros de História já ilustram o perfil predatório da ocupação do solo no Brasil. De Pedro Álvares Cabral ao Governo Lula, do litoral à floresta, do sertão da catinga ao pantanal, colonizadores e colonos substituem-se na atividade que tornou "viável" a ocupação do território brasileiro: a depredação dos recursos naturais. 

Nesse contexto, a história do Município de Fortaleza (CE) não é diferente. De todos os lados, surgem relatos sobre a devastação de reservas ambientais: a destruição das dunas da Praia do Futuro; a desmatação do manguezal do Rio Cocó; urbanização e poluição da Beira Mar, etc. O que se passa na Capital também ilustra o que ocorre no resto do Estado: urbanização da Lagoa do Banana; depredação de Jijoca e Jericoacoara; a destruição das reservas florestais da Serra da Ibiapaba, Ubajara, Maranguape, etc. Esta semana, a "Operação Marambaia" da Polícia Federal levou à captura de meia dezena de funcionários públicos que estariam envolvidos em esquemas imobiliários irregulares e ilegais (leia mais aqui).

A depredação ambiental enriqueceu e continua a garantir o enriquecimento ilícito de diversas pessoas que trabalham no setor imobiliário cearense. Não são poucas as histórias de pessoas que aumentaram seu patrimônio de maneira exponencial às custas da natureza, e também não é de hoje que a Sociedade cobra ações concretas e eficientes na proteção ambiental. Ao que tudo indica, a única forma viável de crescimento econômico é a utilização indiscriminada e insustentável do meio ambiente. Diretamente proporcional à destruição do meio ambiente está a ação corrupta/criminosa de represetantes e agentes públicos - daqueles que teriam a incumbência de gerir a coisa pública e, especificamente, o patrimônio ambiental.

Entretanto, pouco ou nada se falou acerca dos corruptores, isto é, dos empresários e particulares que financiaram esses esquemas e, consequentemente, obtiveram os alvarás e autorizações para construir seus empreendimentos nas zonas ecológicas protegidas. Dessa forma, ainda há trabalho por fazer. É evidente que as autoridades públicas devam ser responsabilizadas (civil, criminal e administrativamente). Mas também é preciso que a Polícia Federal amplie suas investigações, para que todas as corretoras e imobiliárias que estiveram envolvidas nesses esquemas criminosos sejam devidamente processadas e julgadas. 

Finalmente, no julgamento da culpabilidade desses atores anti-sociais, as penas aplicadas devem ser conter elevadas multas, além de outras sanções, não só para desencorajar a reicidência, mas para impedir que essas pessoas voltem a exercer a atividade econômica em questão. A pergunta é: a cultura jurídica cearense estará à altura desse desafio?

segunda-feira, 27 de outubro de 2008

Crise financeira e mídia, ou o Sol e a peneira

As explicações sobre a atual crise financeira pululam na mídia internacional. Acusações e desculpas correm por todos os lados, e culpados há muitos -- claro, dentre os que apostam no mercado financeiro. Nesse contexto, ao que tudo indica, cada grupo/empresa de comunicação social parece querer defender esta ou aquela "melhor explicação" para o fato de que eu, você ou todos nós vamos arcar com os prejuízos do esquema de enriquecimento ilícito praticado pelos grandes bancos do sistema financeiro global.

Por que a BOVESPA e outras bolsas de valores estão em queda? Porque os investidores internacionais estão exigindo a liquidez de seus títulos, porque o sistema financeiro internacional está na bancarrota. Em Agosto deste ano o FED (Banco Central dos EUA) já havia emprestado em torno de US$ 2 bilhões a quatro grandes bancos norte-americanos (Bank of America, JP Morgan Chase & Co, Citigroup e o Wachovia Corp.), e no começo deste mês de Outubro já havia anunciado um pacote de US$ 700 bilhões para salvar outros bancos do destino do Lehman Bros., ou seja, a falência.

Não há necessidade de explicações "mágicas" ou mirabolantes: o sistema ruiu. E a culpa reside nas "expectativas racionais" dos CEO's que, em busca de lucros e através de uma verdadeira "pirâmide financeira", conseguiram empréstimos financeiros e deram como garantias os passivos que tinham a receber, isto é, as dívidas sobre empréstimos de consumidores e clientes desses mesmos bancos.

Por um lado, apesar de estar pacificamente demonstrado que o colapso econômico que se propaga ao redor do mundo está intimamente ligado à captação de alto risco praticada por grandes bancos norte-americanos e ingleses (que inundaram o sistema financeiro global com garantias fictícias), a Folha de São Paulo parece querer adotar um «"jornalismo" autêntico», confundindo os efeitos com as causas -- como estabelece " o porquê disso" da reportagem que se lê aqui.

De outro lado, o que se pode perceber no conjunto dessas reportagens "bem orientadas" é que, ao que tudo indica, os governos devem mesmo intervir na saúde econômica. Só que as medidas econômicas concentram-se em garantir a rentabilidade a saúde dos bancos, na medida em que essas instituições seriam indispensáveis ao correto funcionamento do sistema econômico.
  • Minhas perguntas:
Havendo imperícia, negligência ou imprudência, não há necessidade de reparação? Qual o limite da culpa dos indivíduos que movimentaram esse "esquema"? Não haveria uma norma sequer, a regular essas atividades (a nível nacional, regional ou internacional)? Não seria possível fazer um julgamento político dessas instituições e limitar-lhes esse poder absoluto? Para que(m) trabalha o Estado afinal?
  • Minhas questões:
1) Qual é o motivo de tanta cautela midiática? Um dos motivos seria evitar o pânico entre os consumidores -- e uma inevitável e infrutífera corrida aos bancos, para retirada de aplicações, investimentos, poupanças e valores em conta corrente. Outro motivo seria tentar reverter o irreversível, na esperança de ressuscitar o já pútrido mercado de ações global. Neste item, há vasto campo para especulações - desculpe-me o trocadilho.

2) Se não há tanta cautela, contrariando o dito anteriormente, por que a linguagem utilizada na mídia é o "Economês"? Porque existe uma profunda ligação entre a linguagem e o Poder. Quem controla uma determinada linguagem acaba por exercer o controle sobre um determinado tema, e na seara econômica, os termos utilizados são "trade-off", "hedge", "sub-primes". Sim: a economia fala inglês. Some-se a isso as incompreensíveis siglas -- irreproduzíveis e inúteis neste momento.

3) Por que encobrir uma mudança na atitude política do Estado frente à Economia? Porque é preciso garantir que o nível de confiança da população mundial no sistema permaneça minimamente estável -- inclusive para que o sistema possa ser "reiniciado", para usar uma expressão da Informática. Porque o sistema tem funcionado com intervenções pontuais (ditas mínimas) do Estado durante quase 30 anos -- atuação necessária para garantir a saúde de grandes empresas e corporações multinacionais. Porque há um crescente receio e uma preocupação constante que esse "reinício" seja marcado por uma "grave" agitação social -- que altere profundamente as "regras do jogo".

Entretanto, convém advertir que mesmo que existe um sistema exo-congruente ao sistema financeiro, a gerir todo esse processo de (re)inserção do Estado na Economia: o sistema Jurídico. Pelos princípios consagrados neste campo, toda e qualquer instituição "social", quer por destinação originária, quer por contingência, está imersa sob o controle e diante do exercício da legalidade. Ainda, se os atos jurídicos devem estar conforme à legalidade, havendo ruptura da harmonia desejada (a violação do Direito), é necessário apurar a autoria da ação danosa, a extensão da culpa dos autores e os eventuais danos causados.

Portanto, digam o que quiserem, os jornais e seus repórteres -- os jornalistas estão ausentes (?). O que se torna inadmissível é não haver a responsabilização de diretores e presidentes das instituições financeiras que organizaram essa ciranda financeira, porque o resgate desse prejuízo é pago com dinheiro público.