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sábado, 21 de outubro de 2023

Karl Marx: por que ele está morto e não podemos enterrá-lo?

 A obra de Karl Marx, que percorre mais de quatro décadas, reflete não apenas a evolução do pensamento de um indivíduo, mas também o amadurecimento de uma concepção do mundo em sua análise do capitalismo. A diferenciação entre o "Marx Jovem" e o "Marx Velho" não é meramente cronológica, mas aponta para uma transição na profundidade, na complexidade e na acuidade de suas análises.

O Marx Jovem, especialmente nas obras dos anos 1840, tem uma abordagem mais filosófica e humanista. Ele é frequentemente associado à ideia da alienação do homem em relação ao seu próprio trabalho e à busca por uma sociedade mais justa e equitativa. No entanto, embora seus escritos dessa época sejam cruciais para entender as raízes de seu pensamento, é no Marx Velho que encontramos uma análise sistemática e detalhada do capitalismo.

O "Das Kapital", escrito pelo Marx Velho, é tido como sua obra-prima e é aqui que ele disseca o funcionamento do capitalismo com uma precisão quase científica. Sua análise sobre a mais-valia, a acumulação de capital e o processo de reprodução do capitalismo é profunda e complexa. Em vez de apenas identificar os problemas inerentes ao sistema, como faz no início de sua carreira, Marx descreve meticulosamente como eles operam e se perpetuam.

Além disso, a obra do Marx Velho tem uma relevância especial para a compreensão do capitalismo de seu tempo por três razões principais:

Entendimento da Dinâmica do Capital: Através de sua abordagem da mais-valia, Marx demonstra como a exploração é inerente ao sistema capitalista. Ao entender essa dinâmica, é possível identificar as contradições e vulnerabilidades do sistema, permitindo a previsão de crises e a formulação de alternativas.

Identificação da Concentração de Capital: Marx aponta para a tendência inerente ao capitalismo de concentração de riqueza e poder nas mãos de poucos. Esta observação é especialmente relevante hoje, quando observamos desigualdades extremas em muitas sociedades ao redor do mundo.

Reconhecimento das Contradições Internas: A obra madura de Marx descreve as contradições inerentes ao capitalismo, que levam a crises periódicas. Estas crises, conforme analisadas por Marx, não são anomalias, mas sim características do sistema.

Para a percepção do capitalismo contemporâneo, abordar o Marx Velho é essencial para entender a natureza intrínseca do sistema. Seu olhar penetrante sobre o funcionamento do capitalismo oferece lições valiosas, não apenas para críticos do sistema, mas também para aqueles que buscam compreendê-lo profundamente e, talvez, reformá-lo.

Portanto, a literatura original de Karl Marx, especialmente a de sua fase madura, oferece uma análise perspicaz e detalhada do capitalismo. A profundidade de seu pensamento e a relevância de suas observações fazem com que, mesmo após sua morte, a obra de Marx continue a ser uma ferramenta essencial para a compreensão do mundo em que vivemos.

sábado, 23 de maio de 2015

O Mercado e teoria do Direito: "Por um punhado de dólares"


A intenção deste artigo de opinião é discutir como as regras de mercado têm exercido uma influência negativa na interpretação (a priori, limitada) dos fundamentos do Direito. Trabalharemos com a noção de que o Mercado é uma instância de Poder e que, visando a acumulação ilimitada de riquezas, possui regras de funcionamento sistêmico próprias. Ainda, como premissa, admitimos que algumas dessas regras podem ser convertidas em regras jurídicas, com o objetivo de garantir o equilíbrio das relações econômicas. Mas também aceitamos como válido o fato de que esse âmbito economicista muitas vezes exige o falseamento e a modificação de regras pertencentes a outras instâncias, como as referentes à Polítca e à Moral - numa relação intersistêmica pertinente ao variado campo da Ética, do qual também faz parte o Direito.



De início, fazemos uma breve nota sobre os riscos inerentes à utilização de um método experimental de análise. Procederemos à investigação desse tema por meio da utilização de uma linguagem figurativa, oriunda da cultura: o ditado popular. Isso porque, numa de suas palestras, o sociólogo Slavoj Žižek indica não existir nada mais intelectualmente desinteressante do que um ditado popular, pois tal recurso seria a coroação do pensamento acrítico, fundamentado numa aceitação dogmática da realidade cultural. Entretanto, por vezes, esse artifício linguístico nos indica algo para além do óbvio, visto conceder uma margem interpretativo-analítica sobre a qual se pode construir uma crítica que compreenda quais os discursos subjacentes e ocultos numa forma de se pensar.

Assim, utilizaremos uma metáfora como recurso cognitivo essencial para a compreensão de um dos valores internos do Mercado, qual seja, a ganância. Procedemos de tal maneira porque essa diretriz valorativa tem servido de justificação para os adeptos de diversos doutrinadores acadêmicos que examinam esse sistema: os economistas. Nada contra os economistas! Pelo contrário. Seus conselhos e prognósticos resolvem uma grande parte de nossos problemas (mas não todos). Assim, para demonstrar esse valor (ganância), vendido como um elemento axiológico da natureza humana, utilizaremos como instrumento uma obra cinematográfica: "Por um punhado de dólares".

Dessa forma, fazemos referência ao filme de faroeste italiano (spaghetti western), cujo título original é "A Fistful of Dollars" (1964), dirigido por Sergio Leoni e interpretado pelo ator norte-americano Clint Eastwood. A película, em si, não tem nada de muito interessante, se não fosse por um detalhe: ela revela um aspecto interessante sobre o Poder. Essa faceta manifestada é a facilidade com a qual um oportunista se aproveita de um contexto social conflituoso para auferir vantagens, diante de tal clivagem / divisão política. Representa, assim, um adágio popular: "a ocasião faz o ladrão". Essa seria uma denúncia do que ocorre entre o Mercado e a Política.

No bang bang italiano, o pistoleiro caçador de recompensas (Eastwood) encontra-se no interior do México, numa cidade dividida e sitiada por duas famílias rivais: os Rojos e os Baxters. A população encontra-se acuada por causa da violência perpetrada pelos integrantes dessas facções criminosas. O pistoleiro (no papel de anti-herói), utiliza o conflito entre dois grupos para pôr em prática seu plano de apropriar-se de um carregamento de ouro anteriormente roubado do governo mexicano e que se encontra na posse de um deles. Durante o planejamento e execução desse objetivo, nosso anti-herói proporciona uma espécie de libertação ao povo oprimido do vilarejo, acabando por matar cada um dos criminosos que aterrorizam a cidade e trazendo de volta o "equilíbrio natural" para o pequeno povoado mexicano. Ao final, monta em seu cavalo e segue seu rumo à próxima aldeota.

Então, você deve estar se perguntando: e o ouro? E o que diabos isso tem a ver com Política?

Se você tiver assistido o filme, percebe que o ouro desaparece da trama, tornando-se elemento narrativo inexistente. Isso se deve ao fato de que essa figura é apenas uma representação simbólica de algo muito mais precioso. O "ouro" que o forasteiro desejava roubar era nada mais nada menos que a identidade política daquele agrupamento humano. Nosso anti-herói apropria-se indiretamente do próprio povo, assumindo um dúplice papel: de verdugo-libertário, um símbolo, um ícone de uma nova instância de Poder.

O cowboy é, por assim dizer, a representação máxima dessa modernidade industrial, da especialização e do pragmatismo político, cuja promessa maior é a desconstituição das "tradições selvagens", sendo ele o mensageiro de uma promessa de libertação, mas que possui uma imoralidade própria, resultante de suas contradições internas/subjetivas: violência, avareza, ganância e pragmatismo. É representante impiedoso e misericordioso dessa modernidade. Ele exprime-se por meio de uma lógica de dominação de Mercado, e sua diretriz operacional é uma razão instrumental utilitarista que trabalha com dados matemáticos, econométricos, com precisões e probabilidades.

Voltando ao nosso ditado, "a ocasião faz o ladrão" apresenta um significado explícito e objetivo, que se converte na prática de uma conduta ilícita contextualizada: o furto ou roubo de algo que pertence a outrem, que os juristas traduzem pela locução "subtração de coisa móvel alheia"). Esse delito seria praticado diante de facilidades que uma determinada situação proporciona, visto que, em tese, as pessoas têm um comportamento ético adequado (decorrente de uma natureza?), até que surja um fator externo qualquer que as leve a cometer tal infração e quebrar o pacto social. Porém, se estendermos o significado da frase, poderíamos encontrar um fator interno e absolutamente subjetivo (talvez, natural?): diante de certas condições, o seu "ladrão interior" aflora e tem total legitimidade para se comportar de maneira anti-social. Haveria uma justificação implícita para o cometimento de ilícitos: a frase pressupõe que podemos cometer algum tipo de ilicitude, pois haveria algum tipo de perdão ou compreensão social, perante o contexto no qual nos inserimos e por força dos fatos que nos levaram a cometer um delito.

Como temos argumentado, esse imaginário possui uma lógica interna própria, qual seja, a hierarquização de princípios (valores humanos) por meio de critérios de utilidade, de acordo com uma relação racional entre valores e interesses. Como todo sistema, como se pode supor diante de um pensamento estruturalista, esses valores convivem harmonicamente, sem aniquilarem-se uns aos outros, mantendo as funções para as quais o sistema é criado. Porém, ao lado desses elementos objetivos, existe um critério subjetivo, muito importante na estratégia de funcionamento sistêmico: o individualismo. Esse é o sistema que guia o protagonista do Far West (faroeste).

Com efeito, para que essa estrutura (Mercado) se mantenha intacta, é necessário uma desarticulação do coletivismo, da noção de grupo e práticas culturais, por meio do fortalecimento exacerbado do indivíduo e sua ampla e irrestrita liberdade de escolha e ação. Assim como o pistoleiro, o indivíduo defensor dessas forças de mercado é esse ladrão que, diante dos diferentes contextos, opta por controlar ou liberar seus instintos, sendo uma espécie de criatura acima das leis e dos costumes, rizomático, transitório e desinteressado, que cativa nossos corações com sua forma desapegada e cínica de observar e interagir com o mundo. Ele é que é livre sem ser igual e, por revelar-se superior a nós, nos leva nossos problemas, exigindo em troca apenas nosso "ouro". É, para dizer o menos, um alienado: distancia-se dos demais, torna-se alheio ou indiferente aos outros. Ele é o "homem sem nome".

Esse vilão-benfeitor é, naturalmente esquizofrênico, por carecer de um fio condutor da normalidade social, haja vista que suas diretrizes são matemáticas, puramente lógicas e instrumentais. Mesmo revelando uma contradição no seu âmago, não é dialético per si, dependendo de intervenções constantes e suficientemente fortes para aquietá-lo, domá-lo. Essas intervenções, como externas, encontram-se sedimentadas na resistência social/coletiva que lhe impõe certos limites, freios e contra-pesos - porque nenhuma forma de Poder poderá ser absoluta numa Sociedade. E é por meio do Direito que se organizam essas normas que garantem e limitam a liberdade.

É diante dessas afirmações alegóricas que é possível explicar de que forma o imaginário social deposita sua confiança nas regras de convivência que compõem o Direito. As normas jurídicas, dispostas harmonicamente dentro de um sistema que lhes é particular, organizadas em outra estrutura, desempenham uma função geral e mais abrangente, consoante possuem outras finalidades, outros valores e uma topologia que lhes são próprias.

Os vértices jurídicos acumulam experiências cognitivas, pois têm o condão de preservar certas percepções orientadas pela necessidade de uma convivência comum, libertária, igualitária, solidária e dialogada. Embora tenham sido utilizados para acumular os mais torpes objetivos ao longo da História, sua atual operacionalização tem por escopo a defesa da humanidade (entendida como uma categoria mais ampla que a própria sociedade). Como todo instrumento social, ao contrário de outros instrumentos, sua operacionalização se faz mediante a avaliação entre normas justas e injustas, o que não sucede com as normas mercadológicas, que só podem ser avaliadas como úteis ou inúteis, adequadas ou inadequadas.

O controle que as normas jurídicas exercem sobre as normas de mercado reside ou brota da legitimidade que sobre elas é depositada. Essa legitimidade pode lhes revelar um exame interpretativo consentâneo ao sentimento de Justiça construído socialmente, ultrapassando as limitações de natureza quantitativa proporcionadas pela eficácia e pela validade -- embora sobre essas últimas exerça uma enorme influência. As normas do Direito são construídas pela cultura, pelas percepções identitárias, pelos sentimentos individuais e coletivos de pertença, e pelo necessário equilíbrio que a convivência exige da espécie humana: a harmonia entre interesses individuais e coletivos.

Esta é, ao fim e ao cabo, a importância (e o desafio) da constantemente renovada teoria do Direito: preservar a humanidade de suas próprias contradições. Ela proporciona a persistente readaptação dos preceitos normativos às necessidades sociais de convivência, ajudando o indivíduo a ser (viver) e a estar (conviver). Colabora na produção e aplicação de um conjunto de regras positivadas - postas para serem conhecidas e interpretadas pelo público -, informando o jurista a encontrar os meios adequados para a implementação de um arsenal teleológico.

É a teoria jurídica que orienta o investigador à compreensão de que não adianta "fazer a Justiça, mesmo que o mundo pereça". Porque o Direito é realidade social, devendo o jurista optar por decisões que preservem o meio social mesmo que, para isso, sejam exigidos sacrifícios da própria Sociedade. Na lista desses sacrifícios, por vezes, encontra-se o conflito entre o ter e o ser, ou entre o ser e o estar.

Se nada mais importar, a não ser os números, então tornam-se desprezíveis as normas, quer as jurídicas, quer as mercadológicas. Vê-se, pois, que o "nosso mundo" não é feito por números, nem somente por atos de pura Justiça. O mundo é composto de humanos, mas não só.

sexta-feira, 8 de agosto de 2014

O mérito numa sociedade desigual e de privilégios

Um dos temas mais polêmicos na teoria política diz respeito à meritocracia. De acordo com essa teoria, a investidura no poder deve dar-se quase que exclusivamente em razão do mérito do candidato. Porém, embora a meritocracia tenha sido um fator determinante no preenchimento de cargos públicos na Antiguidade, nas sociedades contemporâneas ela diz respeito diretamente ao sucesso na competição pela sobrevivência.




Antes de mais nada, convém ressaltar que os gregos - autores dessa perspectiva - pressupunham três critérios que integrariam a avaliação do mérito do cidadão num regime democrático: isagoria (a igualdade política entre os indivíduos do corpo civil), a isotimia (o livre acesso aos cargos públicos aos cidadãos) e a isonomia (a igualdade de todos perante a lei da pólis). Ainda, convém esclarecer que esse modelo helênico, puramente formal, tinha por alicerce uma sociedade fundamentalmente desigual e injusta: as mulheres e os filhos não eram cidadãos, ocupando, junto com o escravos, o patrimônio econômico do cidadão grego, ou seja, o locus social dessas pessoas era a puramente privado, sujeito às regras do justo e injusto de uma justiça privada ou não-pública, nos dizeres de Aristóteles (na obra "Política"). Isso para não descrever certos aspectos dessa cidadania, que admitia a venda de pessoas na qualidade de "escravo", como foi o caso de Platão, cidadão e filósofo ateniense que serviu nessa condição, num navio mercante, por vários anos. Com isso, pode-se afirmar que tal paradigma sócio-político de meritocracia era, inequivocamente, formal.

Dando prosseguimento a essa modesta investigação, pergunta-se: como essa estrutura foi absorvida pelas culturas ocidentais, e que marca (trauma) ela provoca nas formas de acesso ao poder (sócio-econômico)? Igualmente: quais seriam as consequências práticas desse tipo de perspectiva diante da obscena desigualdade entre os sujeitos que compõe um modelo jurídico-formal de Estado Democrático de Direito? E, finalmente: que perspectiva se abre diante dos contornos de uma democracia plural, inclusiva e participativa?

Em que pese os milênios de transformações sociais e culturais pelas quais passaram as civilizações ocidentais, que se abeberaram na filosofia grega para contemplar o modelo de Estado de Direito, a organização dessa Modernidade optou por uma abordagem puramente formal de configuração das estruturas de poder. Essa perspectiva está alinhavada numa transição paradigmática que faz parte das transformações registradas pela História (principalmente da Idade Média coletivista, para a Modernidade individualista), que culminou na prevalência dos interesses privados do homo oeconomicus, com uma mudança focal sobre a vida social, isto é, uma mudança de viés na concepção da organização da vida individual e coletiva: o cerne das preocupações do indivíduo passou da esfera pública para a privada. A promessa de um "futuro melhor" por meio do progresso foi o estopim e armadilha na qual se jogaram os países europeus, alimentados por ideologias e modelos sociais os mais variados - mas todos comprometidos com alguma tentativa ou proposta de equilíbrio entre os interesses individuais e nacionais: houve uma transmutação de conceitos: da coletividade para a nacionalidade, como bem ilustra os adeptos da Escola Histórica e das doutrinas jurídico-políticas que se utilizaram da filosofia hegeliana.

Entretanto, ao contrário do que indicava o fatalismo da abordagem histórica, os progressos tecnológicos de que se desfruta atualmente (revolução aeroespacial, telemática e informática, biotecnologia, energia termonuclear etc.) também modificaram aquela configuração sócio-política do Estado nacional: a globalização reduziu distâncias, eliminou fronteiras geográficas, tornando o mundo, paulatinamente, numa aldeia global, sem, contudo, resolver os problemas do passado. A miséria e os diversos tipos de desigualdade e exclusão social, ao contrário do esperado, se intensificaram. Isso porque essa globalização sedimentou-se sobre ruínas de uma disputa da Modernidade (entre os argumentos da economia de mercado e da economia planificada), que resultou com a vitória da perspectiva formal liberal, que assumiu os contornos de uma neoliberalismo: neo (novo) porque adequado a um mundo de plena liberdade conferida ao mercado financeiro e às grandes indústrias transnacionais; neo porque abandonou o indivíduo à própria sorte, por concentrar-se e validar apenas o direito à propriedade, e relegar ao plano meramente abstrato os direitos da personalidade (ao desenvolvimento das capacidades plenas do indivíduo).

Neste momento, torna-se necessário avaliar o argumento que discute a contemporaneidade - também designada de "pós-modernidade", que nada mais indica além da prevalência de um modo de vida pautado nas "sociedades mais desenvolvidas" (Lyotard) do complexo político de cariz eurocêntrico. O atual modelo de organização social tem na esfera econômico-financeira o seu alicerce primordial. Para ter "sucesso", os indivíduos devem zelar pela otimização dos recursos sociais e, dentre eles, tempo e dinheiro compõe a "chave para o sucesso" na organização dessa vida social. Assim, garantir os interesses pessoais e individuais é uma máxima válida e inquestionável, se o cidadão almejar uma sobrevivência plena e abundante em bens materiais e segurança financeira, numa sociedade de consumo em massa. Mas, em que pese todo o aparato das correntes do pensamento crítico, além da falta de oportunidade que continua a assolar as populações dos países da periferia da antiga divisão Norte-Sul globais, hoje, esse sistema global reproduz a miséria e os diversos tipos de desigualdade no centro desse sistema (Norte) - sendo a atual crise econômica europeia o melhor exemplo a ilustrar esse fato: inundados por imigrantes, sem perspetiva de empregabilidade (diante do fenômeno da deslocalização de empresas), com uma pirâmide social absolutamente invertida (envelhecimento populacional) e vivenciando políticas de austeridade, os europeus estão endividados, desempregados e desgovernados.

A competição global por acesso aos bens e aos recursos naturais, de um lado, só proporciona o referido progresso (prometido na Modernidade) àqueles dotados de privilégios que, porventura, consigam administrar e dispor de tempo e dinheiro (que já possuem) à formação que propicie o desenvolvimento de competências técnicas adequadas. De outro lado, os excluídos do processo não tem acesso a essas ferramentas, tendo que ocupar a margem industrial excluída pelos processos tecnológicos, recebendo apenas uma remuneração que só garante a sua reprodução biológica e o sustento de suas necessidades elementares. O que se constata é que houve um aumento (globalizado) do fosso que separa ricos e pobres.

Em que pese esse ser um cenário generalizado, ainda persistem algumas ilhas de resistência a esse panorama desalentador. Sobreviveu, em alguns países, uma linha de proteção social aos desamparados e, associada a ela, uma linha argumentativa de um modelo não-formal (mas nem por isso menos jurídico-político) de correção daquelas distorções formais do (neo)liberalismo. Seria uma linha por estabelecer um espaço limítrofe entre a humanidade e o mercado, entre o ser e o ter: as políticas públicas do Estado de Bem-estar Social e Democrático de Direito, sustentada por uma outra linha, também limítrofe, de reforma social, da social-democracia. Social-democracia essa que reconhece os direitos do indivíduo, consagrados pelo liberalismo político e jurídico, mas que também zela pelos direitos da sociedade; que dá a noção de que o indivíduo, antes de ter, é e está, e nessa condição de estar, convive. A união entre esse modelo estatal e o outro jurídico-político está vivo no texto constitucional de países como o Brasil, França, Itália, Alemanha e Portugal, dentre outros. Porém, as avaliações sobre a efetividade e a sobrevivência dessas linhas são desoladoras, porque, embora elas existam, a leitura e interpretação que se procedem sobre elas ainda é majoritariamente formal.

Significa dizer que, embora existam modelos jurídicos que assegurem a transposição dessas dificuldades e mazelas sociais, é necessário uma abordagem circunstancial e não-formal dessas garantias. Tome-se o caso de um problema global: corrupção. A abordagem formal da corrupção submete-a à formulações procedimentais e processuais que são incompatíveis ferramentas de solução do problema. Por que? Porque a impunidade relativa a ela é não-formal: não se trata de um problema sistêmico, mas extra-sistêmico; não é jurídico, é político, e está ligado à omissão (relativamente aos mecanismos da democracia participativa, de controle, fiscalização e cobrança dos atos de governo). Outro problema: formação educacional. Também esse seria um problema a exigir uma solução não-formal: de que adianta proporcionar o ingresso de discentes de classes sociais desprovidas às universidades (públicas e privadas), se não há livros, alimentação e transportes públicos e gratuitos aos estudantes? Em outras palavras: você consegue estudar com fome?

Portanto, as questões relativas ao mérito devem ser avaliadas diante da seguinte problemática: quem tem mais mérito? Aquele que goza de benefícios, facilidades, apoio e suporte financeiros, ou aquele que, mesmo diante de privações, falta de oportunidades e carestia consegue seu lugar ao Sol? Como se determina o mérito num modelo competitivo, desigual, formal e excludente?

quarta-feira, 12 de março de 2014

A Democracia por um fio: coisas não queremos saber

O projeto democrático brasileiro vem, aos "trancos e barrancos", sofrendo diversos reveses nos últimos anos. Se é certo que depois da Constituição de 1988 pode-se falar de um ressurgimento da participação popular, é também correto admitir que ainda há muito a se democratizar no Brasil. Como um dos desafios, surgem as diversas e, por vezes, conflitantes perspectivas políticas e concepções ideológicas, calcadas nas tradições e leituras (ontologicamente construídas) que o legislador constituinte originário soube tão bem colmatar no texto constitucional - sob a rubrica do pluralismo político.

De fato, pode-se afirmar que, hoje, o Brasil possui um ordenamento jurídico que adota a liberdade de consciência política - encontrando respaldo na melhor doutrina do liberalismo político. Sob o imperativo categórico da tolerância, defende-se a ideia do lema "que vença a melhor ideia". O sistema federal, bicameral, compõe-se da Câmara dos Deputados e do Senado Federal que, juntos, desempenham a função maior da Democracia brasileira: o Congresso Nacional. Ali, todas as garantias para a desenvoltura dos debates estão assegurados: desde as garantias e direitos fundamentais, tais como a liberdade de expressão e consciência, até as garantias e direitos políticos, como a liberdade de filiação partidária e as imunidades parlamentares, há todo um aparato jurídico-político que conflui diretamente para o exercício de uma parcela de nossa Democracia - a representativa. Além disso, o País possui mecanismos de participação decisória direta, que ultrapassa as limitações do sufrágio universal e secreto, responsável pela escolha daqueles políticos: ferramentas como orçamento participativo, fiscalização e controle de contas dos poderes executivos (municipais, estaduais, distritais e federal), e outros, como a proposta de lei de iniciativa popular, referendo e plebiscito são todas ferramentas jurídicas à disposição do povo brasileiro, para o exercício de uma das mais preciosas conquistas sociais - a soberania popular.

Esse conceito de soberania popular, que adquirimos da tradição europeia, não é um conceito unívoco. Ao contrário, ele indica que há um certo tipo de soberania, qual seja, aquele no qual o poder deriva diretamente da vontade do povo. O conceito de povo, também, também não é unívoco - embora a preguiça e o senso comum tentem sempre distorcer o seu significado, para não falar das insidiosas práticas do intelecto desonesto, que deturpa o real sentido e alcance da palavra. Povo, no sentido constitucional, é a classe de pessoas que habita este País e que, sendo sujeitos de direito como todos os outros membros da população (estrangeiros, turistas e apátridas), possuem a capacidade ou a expectativa de direito de votar e serem votados. Seguramente, junto da melhor doutrina, referenciada aqui em Paulo Bonavides, no seu livro "Ciência Política", o elemento povo apresenta uma faceta jurídica (sujeito de direito) e outra política (poder, um dia, votar e ser votado).

Como se vê, até este ponto, Direito, Poder e Política são três elementos que estão em constante contato. Isso porque a Política é um meio, no qual o Poder se expressa e, como resultado, surge o Direito. Mas essa interação não pára nesta primeira síntese; assim como ocorre em todo processo dialético, esse resultado (o Direito) dá ensejo a novas conformações da Política, pois a dinâmica social é uma constante e, nela (na dinâmica social) ocorrem novas manifestações de Poder. A Sociedade promove constantemente uma reformulação dessa dialética, reconstruindo posições, com novas interações entre atores políticos que, negociando seus interesses e defendendo suas convicções e ideologias, fornecem novas configurações ao Direito.

A Democracia é, então, um jogo político que se desenvolve sobre o pano da liberdade política. E quanto mais saudável é uma Sociedade, mais claras são as intenções e os atos praticados pelos representantes políticos escolhidos pelo sufrágio, e mais acessíveis aos olhos do povo são os atos desses governantes e legisladores. Então, qual seria a dificuldade da Democracia à brasileira? Por que ela é uma Democracia de baixa intensidade - para utilizar uma expressão do professor sociólogo Boaventura de Sousa Santos?

1) Educação

Seria muito pertinente elaborar uma defesa da Educação que fizesse apologias emotivas ao valor dos professores, à necessidade de preparar as crianças para um futuro melhor e ... enfim, apelar ao bom senso do leitor. Mas o caminho a ser trilhado aqui é outro: o do cumprimento da Lei - coisa que nem a população, nem os governantes parecem gostar.

A Constituição Federal estabeleceu um conjunto enorme de artigos voltados ao desenvolvimento de uma Educação inclusiva, que fosse capaz de realizar os objetivos fundamentais da República, consubstanciados no art. 3º, que também concretizasse a dignidade da pessoa humana do art. 1º e, por fim, pudesse lançar as bases de realização de uma justiça social - conforme preleciona o preâmbulo constitucional. Ainda, colocou-a como um direito fundamental, pois ela integra o art. 6º, no capítulo dos Direitos Sociais, que pertence ao Título II da Carta Constitucional - que cuida dos direitos e garantias fundamentais (esse é o nome do Título, para aqueles que não sabem ou não "entendem" que a Educação e os direitos dos trabalhadores, por exemplo, são direitos fundamentais). Sobremaneira, desponta o clarividente art. 205, estabelecendo o que se pode entender como um rol taxativo e hierárquico dos objetivos da Educação: "(...) direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade"; a finalidade desse direito é (1) o pleno desenvolvimento da pessoa, (2) seu preparo para o exercício da cidadania e (3) sua qualificação para o trabalho.

Em que pese a valorização do trabalho como única forma de construção de riquezas, veja-se que a primeira diretiva teleológica é "o pleno desenvolvimento da pessoa", quer dizer, o desenvolvimento das aptidões que tornem o indivíduo uma pessoa feliz, realizada, consciente de todo o seu potencial. O segundo objetivo é "seu preparo para o exercício da cidadania". Nesse segundo ponto se descortina o principal entrave ao desenvolvimento de uma Educação democratizada: não havendo educação de qualidade para o trabalho, que torne a absoluta maioria da população apta à competitividade do mercado de trabalho da Era da Informática, o que se poderia dizer de uma Educação para o exercício da cidadania? 

A maior queixa e a grande parte das críticas que se fazem ao sistema eleitoral brasileiro é exatamente focada nas escolhas dos representantes políticos: embora existam restrições acerca da vida pregressa dos candidatos e as proibições de candidaturas daqueles condenados por crimes e delitos de variada ordem, as reclamações de uma parcela que se diz "esclarecida" clama pela proibição do voto dos analfabetos - proposta que faz lembrar o voto censitário, que já vigorou nestas terras.

2) Desigualdade social

Há redundância na junção das expressões "situação social no Brasil" e "desigualdade social". Desde a exploração-colonização, passando pela independência política e adentrando a fase republicana, a acumulação e concentração de riquezas e as mazelas da maioria esmagadora da população sempre andaram pari passu com a História Nacional.
Para não falar dos tempos em que havia mão-de-obra escrava e que essa situação era reconhecida pelo Direito positivado, e para não comentar sobre a escravidão que ainda se reproduz nos rincões deste vasto território, a situação das cidades e do campo evidenciam o que há muito se escreve e se descreve acerca da condição humana nas terras tupiniquins: vive-se a insustentabilidade de um modelo de produção que ainda não foi capaz de solucionar o problema da exclusão social. Se a educação de qualidade só existe na rede privada de ensino; se essa rede privada de ensino encontra-se fora dos padrões e possibilidades de consumo da maioria esmagadora do povo; se aquela educação pública, ofertada pelo Estado não serve minimamente à qualificação de trabalhadores; se essa escola pública é um depósito de jovens, que não oferece uma perspectiva emancipatória e, ainda por cima, os sujeita ao convívio das mais diversas formas de violência - da prostituição às drogas -, com raríssimas exceções... Então a conclusão a que se pode chegar é que o cenário de miséria e despreparo intelectual de crianças e jovens da maioria dos cidadãos é absolutamente incapaz de apaziguar o que se pode chamar de "jogo da ilegalidade".

3) Jogo da ilegalidade

Existe uma vasta literatura sobre os jogos psicológicos, que tanto se dão em nível individual, quanto coletivo. Uma das obras mais conhecidas nesse território é aquela da lavra de Eric Berne, intitulada "Games People Play", e é diante das estratégias dos diversos atores sociais que se instituiu no Brasil o "jogo da ilegalidade".

Essa interessante dinâmica começa no nascimento daquele indivíduo pobre e miserável, que recebe a alcunha de "favelado": quando ele nasce, se tiver a sorte de nascer num Hospital, pode até ter alguma chance mais segura de sobrevivência, mas geralmente vem ao mundo sem os menores cuidados; ao contrário do que ocorre com uma parcela minoritária da Sociedade brasileira, esse sujeito na maioria dos casos não é registrado (a certidão de nascimento no Brasil é paga, mesmo pelos hipossuficientes; embora a lei lhes garanta tal direito, os cartórios cobram os emolumentos dos pobres e miseráveis). Para o Direito, sua existência é uma situação de fato, visto que o formalismo jurídico que aqui ainda reina carece de uma comprovação que ele não pode fornecer. Além disso, com alguma sorte (se não for abandonado por uma mãe faminta e desesperada), a casa na qual habita não pode ser chamada de propriedade: ele não possui um dos direitos mais elementares, que é o direito de possuir um local onde se abrigue e no qual, sendo cidadão, estabeleça de forma segura a sua residência, seu domicílio.

Inclusive, diga-se de passagem que, esse seu direito de 1ª dimensão, um direito civil, de possuir algo como seu, é tolhido exatamente pela força do direito de quem possui a propriedade do terreno no qual seu barraco está construído. E é exatamente nesse momento, no da definição de "o quê é de quem" que começa uma das partidas mais cruéis do jogo da ilegalidade: esse sujeito, desprovido, despreparado e desapropriado tem que enfrentar aquela minoria citada anteriormente, que possui todas as condições materiais para competir e vencer a luta da sobrevivência numa das maiores potências econômicas do planeta (sim, a sexta economia do mundo). Uma potência econômica que ainda tem na terra e no solo os seus bens mais preciosos, extremamente custosos e cada vez mais escassos, visto estarem concentrados nas mãos daqueles que ou conseguiram o que têm através da herança (e nada conhecem do trabalho), ou obtiveram através da luta competitiva do sistema de produção vigente (porque estão aptos a concorrer), ou porque usurparam os bens através da malícia e violência (porque o roubo, a sedução e a corrupção também são meios à acumulação), ou porque tiveram sorte (no jogo, ou no "amor"...).

Nesse quesito, há também o Estado - essa pessoa jurídica de Direito Público controlada por políticos, funcionários e agentes públicos, numa das repúblicas mais corruptas do mundo. Esse ator agoniza de todas as formas: em primeiro lugar porque, obviamente, encontra-se a serviço de toda sorte de gente e do conflito de interesses dos políticos; em segundo lugar porque tem ainda que combater toda sorte de doenças sociais, como o crime organizado, a tensão constante da real politique praticada por outros Estados e assim por diante - inimigos internos e extermos; e em terceiro e último lugar, porque ele é operacionalizado por meio de regras burocráticas que o impedem de cumprir sua missão de forma efetiva e eficiente, o que dá lugar ao desperdício e desvio de recursos, quer por má-fé, quer por inaptidão de seus servidores e funcionários.
Some-se a isso o jeitinho brasileiro... E toda forma de legalidade e legitimidade não passará de mero discurso retórico ou, como se diz na linguagem politicamente-irrelevante das redes sociais, "blá, blá, blá"- coisa para inglês ver.

4) A violência e o abuso de autoridade

Não é à toa que o Brasil é um dos países mais violentos do mundo: todas as dificuldades na formação cultural e intelectual de seu povo - conforme narrado acima -, associada ao despreparo e desonestidade, agravada pela ilegalidade e temperada com a falta de oportunidades cria um sentimento de ineficiência e ineficácia dos institutos jurídicos e das instituições aqui referidas.
É curioso observar que até as opções de leitura filosóficas da parcela do povo que se prepara para preencher os cargos e funções públicas (os futuros burocratas, bacharéis em Direito), direcionam-se a autores cujo trabalho e especulações giram em torno da violência, do uso da força, da brutalidade e da concentração de autoridade. Quais outros, senão Hobbes e Maquiavel, a alimentar toda sorte de devaneio na mente dos incautos leitores, que desejam adquirir o conjunto de conhecimentos que tornam a razão instrumental apta à solucionar suas crises existenciais?

Embora exista aqui uma deferência ao autor inglês Thomas Hobbes, pela sua contribuição na formação do pensamento iluminista - e nos desdobramentos que essa escola trouxe ao pensamento e cultura ocidentais -, é necessário esclarecer alguns aspectos de sua teoria sócio-política, tendo em vista ser um autor estudado de maneira recorrente pelos estudantes de Direito - na seara da Ciência Política e Teoria do Estado. Ao lado desse nome, com a mesma ferocidade e vontade de poder, surge o autor Nicolau Machiavel, um dos nomes mais conhecidos pelos curiosos e investigadores que se debruçam sobre o palco da Política, numa tentativa de compreender seus lados e, sobremaneira, aquele mais obscuro - o autoritarismo. O primeiro chega a falar numa criatura monstruosa, avassaladora, invencível (o Estado), e a necessidade de ele concentrar todo o Poder (social), para determinar o futuro desse ser tão miserável, que é o humano. O segundo coloca à população, aos súditos, apenas duas opções: o amor ou o medo; a coerção como forma de dominação de todos, sob a ameaça de uma deusa da justiça que não tem nenhuma balança, nem venda, mas só a espada...
Diante de tudo isso, e do que mais ficou faltando falar, pergunta-se: qual será o futuro da nossa Democracia?

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Em homenagem à professora Jacqueline Alves Soares, coordenadora do Escritório de Direitos Humanos do Centro Universitário Christus, a quem devo vários minutos extra-laborais, por uma importante discussão.

quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

Hollywood e suas apostas na distopia

Um dos filmes mais curiosos lançados este ano (2013) foi "Elysium": drama de ficção científica, no qual a população mundial é controlada por um sistema político gerenciado por poderosas corporações. Esse gênero de ficção científica já é bem conhecido das audiências: inevitavelmente, o sistema de produção vigente (capitalista) leva a Sociedade (baseada num modelo cultural anglo-saxão) a uma necessária privatização total do Estado, num contexto de brutal escalada de violência e degeneração moral. Assim, há o protagonismo de cidadãos e cidadãs comuns (blue collars), antagonizados pela frieza de empresários e empresárias bem sucedidos (white collars).


Essa tensão discursiva, que tem por polos os "colarinhos azuis" como uma espécie de homo sacer, e os "colarinhos brancos" representando os bem sucedidos homo economicus, é uma tentativa de ambientação da platéia num contexto futurístico (campo imaginário), partindo da realidade atual (campo real). Esse futuro seria o resultado fatalístico da competição individualista, responsável pela destruição dos valores coletivos. Esses valores (campo simbólico), por sua vez, seriam os alicerces de um sistema, pertencentes aos regimes democráticos obliterados pelo consumismo e pelas leis exatas, inumanas e matemáticas dos mercados.

Seguindo no mesmo tom de "Elysium", existem diversas películas, dentre as quais merecem destaque: Alien (1979, 1986, 1997); "Exterminador do Futuro" (1984, 1991, 2003, 2009); "Robocop" (1987, 1990, 1993); "O quinto elemento" (1997);  "The Matrix" (1999, 2003.1, 2003.2); além da famigerada saga de Milla Jovovich em Resident Evil (2002, 2004, 2007, 2010, 2012); e o recente filme de Ridley Scott, "Prometheus" (2012). Porém, há uma ironia: todos esses filmes pertencem a grandes corporações, que investem nesse tipo de gênero (Sony Pictures, 20th Century Fox, TriStar etc). 

O que chama a atenção em "Elysium" é o fato de que há uma irrefutável clivagem entre ricos e pobres, numa sociedade futurística com tecnologia suficiente para criar novos mundos - ou estações espaciais habitáveis, como é o caso -, curar doenças e prolongar a vida da população indefinidamente, e construir meios de transporte ultra rápidos e eficientes. Mas, qual o cenário apresentado no filme? A população rica habita a estação espacial, gozando de todos esses benefícios, permanecendo aquartelada e protegida de qualquer tipode contato com a classe pobre. A maioria esmagadora da população mundial vive na miséria, sendo tratada brutalmente por policiais-robots, desprovida de todos os direitos, numa espécie de Estado Global falido. 

O filme é ácido: não há saúde, nem direitos aos trabalhadores. As pessoas da Terra vivem nos escombros do que outrora foram grandes e suntuosas cidades, cercadas pela poluição (melhor dizer, absoluta devastação ambiental) e sem instituições intermediadoras dos conflitos sociais. Ainda, apresenta o crime organizado como uma alternativa à ausência estatal e à brutalidade corporativa, como se ele fosse um ensaio popular diante de uma carência sócio-institucional. Porém, antes de querer arrumar suas malas e ir morar em Elysium, vale referir que os burocratas-corporativos, quer dizer, o corpo político responsável pela administração dessa grande Empresa Global, utilizam-se de forças militares convencionais (robots) e não-convencionais (mercenários), fazendo uso de golpe de Estado, abuso de autoridade e, enfim, tudo o quanto for possível para a manutenção do status quo e de seu enriquecimento imoderado e luxurioso.

Com certeza, pode-se afirmar que "Elysium" é uma dura crítica ao capitalismo financeiro e corporativista, concretizado nos últimos anos por políticas neoliberais. Todavia e ao contrário do que se possa imaginar, a crítica levantada pelo autor da obra é, antes, a favor de um conservadorismo e de um retorno às benesses de um sistema produtivo que tinha amparo e respaldo no individualismo iluminista e liberal de um Estado garantista. Sem querer antecipar o final da estória (spoiler alert!), a "revolução" impetrada pelos heróis não estabelece a eliminação das classes hierarquicamente superiores, nem a divisão de todos os bens sociais do trabalho. O desfecho da trama tão simplesmente se resume numa restituição: são devolvidos à população mundial aqueles direitos fundamentais que foram usurpados pelo grande capital transnacional e corrupto. Nada de revolução, nem propriamente uma reforma. Apenas restituição.

Como se poderia antever, seria bastante contraditório para a Sony Pictures ou qualquer outra grande corporação defender um posicionamento revolucionário (no correto significado do termo). Nesse gênero cinematográfico, a proposta é sempre conservadora, numa tentativa de redenção por meio da manutenção de um sistema de produção "livre" (no campo simbólico), mesmo que esse sistema não seja livre (no campo real).

É dizer: o grande alívio da platéia é constatar que os heróis e heroínas estão sempre à procura de remeter sua realidade futurística ao passado no qual se encontra a platéia, e isso, por si, seria libertário, exatamente porque redime a platéia de qualquer responsabilidade por esse futuro que está por se concretizar a qualquer instante. Mas libertário, sem ser emancipatório, exatamente porque somente os campos do real e do simbólico seriam transformados, haja vista a inexistência de uma promessa utópica (imaginário), que pusesse um fim definitivo à violência, à acumulação desproporcional e à desigualdade generalizada. Libertária porque se limita apenas à restituição das regras de um jogo competitivo, atávico e matemático, presente inclusive na personalidade dualística dos atores sociais - todos submetidos à lógica da violência, da ganância e da lei do mais forte.

Dessa forma, conclui-se que essa aposta de Hollywood em filmes que projetam cenários nos quais as sociedades vêem-se em um estado de calamidade generalizado (distopia) é, na realidade, uma ferramenta de controle muito bem organizada. Ela proporciona o ganho simbólico de redenção, na figura do herói (homo sacer) que se sacrifica em prol da continuidade do real (desta realidade), vingando-se dos anti-heróis (homo economicus). E isso só se torna possível diante da natureza dicotômica - profana e sagrada - desses heróis imaginários, cúmplices dos espectadores.

segunda-feira, 28 de outubro de 2013

A "Fortaleza apavorada" e o "apocalipse zumbi"


Existe uma grande aproximação narrativa entre o seriado televisivo "The Walking Dead" e o sentimento de insegurança que se instalou no espírito urbano de uma parte da população de Fortaleza (Ceará / Brasil). Sendo possível fazer uma metáfora entre o programa televisivo e a intitulada "Fortaleza Apavorada", talvez seja também possível demonstrar que há uma lógica inerente às novas formas de dissociação entre as diversas realidades urbanas, a partir da perspectiva da exclusão social. Assim, ficariam mais expostas as linhas divisórias -- abissais -- que dividem a cidade, de forma caricata em relação às outras capitais brasileiras. Dessa foma, estar apavorado é fugir dos nossos "zumbis sociais".


Primeiramente, vamos situar a narrativa do "apocalipse zumbi", presente na obra cinematográfica citada. Trata-se de um gênero que ganhou popularidade nos países anglo-saxões por meio da obra do europeu George A. Romero - "The Night of the Living Dead" (1968) -, no qual a humanidade é destruída por uma calamidade qualquer (vírus, bactéria, radiação etc), que transforma os seres humanos em zumbis comedores de carne humana. Sem entrar no enredo propriamente dito -- até mesmo porque há diversos filmes com a mesma narrativa, com pequenas variações --, o que importa observar é a forma como a população que consegue sobreviver à praga global entrincheira-se, de forma a evitar o contágio, visto que qualquer mordida de um contaminado e a morte transforma o sobrevivente num morto-vivo.

Nesse contexto, os "normais" são aqueles que conseguem evitar o contato e, evidentemente, a contaminação com os "anormais"; isso significa que, para continuar vivo, o grupo de humanos rivaliza necessariamente por acesso aos recursos econômicos (água, comida, remédios etc) nos espaços sociais onde há uma infestação de "comedores de gente". E como fazer para evitar ser transmudado num zumbi? Armas! Armas e muita violência, posto que essas pessoas, no seriado, vivem num estado de anormalidade, no qual todas as instituições estatais e sociais foram destruídas -- imperando a máxima de "cada um por si" e do "salve-se quem puder", diante da qual a eliminação dos fracos e contaminados é quase mandatória, para garantir a continuidade da vida e do acesso aos recursos que a garantem. 

Nenhuma outra narrativa parece tão apropriada quanto aquela, para se delinear a segunda narrativa deste texto, qual seja, da "Fortaleza apavorada". Esta, por sua vez, reside no sentimento de "abandono", que deriva da insegurança pública que transpôs os limites da periferia pobre e invadiu o centro financeiro da capital alencarina. A violência -- tanto a institucionalizada, quanto a não-institucionalizada --, que era uma realidade das comunidades carentes (favelas) que circundam o centro urbano propriamente dito, agora converte-se numa regra geral, diante da impossibilidade de se concertar os problemas inerentes à pobreza e correlata incapacidade de se controlar a criminalidade somente com o recurso à polícia.

Em outras palavras, isso significa que, enquanto a violência física (agressões, mortes, assassinatos, roubos, estupros etc) faziam parte do cotidiano apenas das pessoas submetidas à violência econômica (pobreza, marginalização etc), a camada beneficiada pelo gozo dos direitos e das facilidades do mercado levava sua vida de consumo com um certo receio: a de que esse consumo poderia ser eventualmente suprimido. Isso porque a cidadania, nos tempos que correm, resume-se à cidadania econômica de consumo; quanto mais consumo, mais cidadania, maior é a inserção social e, consequentemente, mais "normal". Significa, também, que toda e qualquer forma de comportamento que danifique ou se rebele contra a autoridade da lei do mercado -- que define essas linhas urbanas (abissais) -- precisa ser combatida com a violência física apropriada e institucionalizada, com a proporcionalidade do delito cometido (como se pudesse ser submetida à análise economêtrica, como uma grandeza de ordem econômica, e não social).

Diante disso, é necessário reconhecer duas posições nessa comparação: (a) a da maioria numérica desprovida dos recursos financeiros e do espaço urbano central, do qual só podem aspirar a utilização caso estejam a realizar serviços e a produzir bens que não irão consumir; (b) a da minoria numérica, sobrevivente às calamidades da pobreza. No primeiro espaço, há o domínio das drogas, da banalidade da violência, da violência doméstica e urbana como condições inerentes à vida. No segundo espaço, prevalece a competição pelo acesso aos bens e aos serviços e a submissão à lex mercatoria (uma lei acima do próprio Estado, supranacional) -- sendo esta última elevada à categoria de dogma (realidade inquestionável).

Diante disso, quais as soluções apresentadas pela "Fortaleza Apavorada"?

A primeira delas vem da confiança (ainda que simbólica) nas instituições sociais consubstanciadas no aparato estatal. Nesse ponto, a reivindicação é por melhoria do aparelhamento, remuneração e do efetivo das forças policiais (recrutadas, também, dentre os cidadãos com menor poder aquisitivo) -- efetivo humano que, por razão das contingências sócio-econômicas, vê-se obrigado a entrar numa mini-guerra civil com os "anormais" que se inserem no crime. Essa ótica vê no Estado um instrumento coativo legitimado apenas a manter o status quo, visto existir uma ordem normativa superior (lex mercatoria) que é a única infalível e perfeitamente apta a regular a vida social; pertence à leitura weberiana de Estado, que predomina até hoje nos bancos das faculdades de Direito.

A segunda solução é o clamor pelo direito de resposta imediato à violência oriunda da "anormalidade": a violência privada e não institucionalizada, assente na ideia de autonomia e autotutela. Essa perspectiva, ao contrário da primeira, é uma espécie de distopia; distopia não no sentido de "apego à realidade", mas de negação da utopia, pela defesa da sociedade do horror -- um aspecto da sociedade do espetáculo de que nos falava a categoria de Baudrillard. Os adeptos dessa via imaginam um cenário no qual são protagonistas da defesa de seus próprios interesses, por meio de seus próprios recursos -- armas, segurança privada, organizações para-militares e congêneres --, e fazem uso desse discurso porque possuem os meios materiais (armas, carros blindados e dinheiro, enfim), capazes de substituir as instituições sociais e os mecanismos jurídicos democraticamente eleitos para tal desiderato. Trata-se de uma representação narcisística do "eu", que substitui o grande "Outro" (sociedade), por não ver nele a possibilidade de realização de seus interesses.

A terceira e última via, e que menos reverbera nos canais tradicionais de comunicação social, é a que exige a concretude de políticas públicas que ultrapassem a linha desenvolvimentista (ou neodesenvolvimentista) e que realizem o objetivo constitucional (política e utopicamente) positivado, de redução das desigualdades sociais, por meio da não-discriminação e da efetivação dos direitos sociais mínimos (educação, saúde e condições de trabalho digno). Isso porque a "normalidade" não dispõe nem dos recursos, nem da vontade política para realizá-la, haja vista a necessária reorganização de toda a malha de relações sócio-institucionais, que implicaria numa reconfiguração política da República -- única medida capaz de corrigir as discrepâncias entre o ser e o dever ser.

E quais as similaridades entre as duas narrativas, quais sejam, a dos mortos-vivos e a dos fortalezenses apavorados?

A primeira similaridade ocorre na noção de uma necessária separação entre as duas realidades, que só pode ser garantida por meio de uma linha urbana (abissal), que continue a cumprir o seu papel de separar a "normalidade" (do consumo e da opulência) da "anormalidade" (da violências física e da sócio-econômica); separação essa que garanta uma não contaminação entre os providos de recursos materiais e os desprovidos desses mesmos recursos. Isso porque é necessário que se deixe de fazer e que se deixe passar, quer dizer, que se adote uma nova atitude política que ultrapasse a da continuidade da produção e do consumo; é preciso gerar uma "descontinuidade" nessas relações sociais dominantes. Reconhecer isso significa dar reconhecimento ao confronto entre duas urbanidades: (i) uma comum à periferia, da fome e da ausência de dignidade, e (ii) outra à "centralidade", onde se concentra o dinheiro, da plenitude dos bens e das facilidades do mercado de consumo e da opulência.

A segunda similaridade é aquela hegemonicamente traduzida através do recurso à violência institucionalizada e não institucionalizada; ela recorre ao uso da força, das armas, do aparato coativo e coercitivo, como único instrumento capaz de manter afastada a contaminação que ameaça o cotidiano do consumo e da ostentação que somente o mercado (e suas leis internas) é capaz de proporcionar. Nesse sentido, a normalidade é a sujeição a essas normas e a capacidade de usufruto desse "campo do real", na medida em que haja uma adequação entre o que se faz e o que se pode consumir, ou entre os meios e recursos, de um lado, e a medida proporcional e desigual na obtenção dos bens, serviços e acesso aos espaços urbanos, de outro lado.

A terceira similaridade vem pela destruição discurso da terceira via, que seria a reestruturação da sociedade, por meio de regras humanitárias e solidárias que simplesmente não são mais aplicáveis, ante o horror generalizado pela tomada dos espaços sociais pelos "anormais". Essa é a mais cruel de todas as similaridades, pois reconhece que houve (ou que há) um discurso jurídico-político de inserção social, mas que lhe nega qualquer eficácia. A cidadania isonômica é uma promessa que não pode ser cumprida, uma das duas razões: (1) para que ele se cumpra, é necessário suspender as benesses do mercado, sacrificando o consumo e reestruturando a divisão social da riqueza; (2) não vale a pena defendê-lo, pois as pessoas que se beneficiariam dele -- os "anormais" -- não estariam aptos a gozar da "normalidade", por já estarem inaptos ao convívio com os normais (não há cura para a infestação apocalíptica dos zumbi). Diante dessas duas razões (hipotéticas), de uma forma ou de outra, a periferia teria que ser "centralizada", e isso seria o fim do espetáculo proporcionado entre os objetos do consumo e as desigualdades (diferença na concentração do poder social) que eles proporcionam. A única promessa viável é a cidadania econômica, centrada no consumo daqueles que "já possuem".

Antes de se concluir, deve-se reconhecer que o desastre escatológico (apocalíptico) sempre indicou aos humanos que a normalidade diante do horror só se realiza com apelo ao carpe diem -- prática social necessária à continuidade dos modelos de organização social. O "deixai fazer, deixai passar" também é um modelo ideológico subjacente à continuidade, pois se propõe a demonstrar a necessidade de uma conduta permissiva que conduza a um fim (no sentido escatológico) -- representa o "destino final": a síntese que põe termo ao sofrimento e à existência humana, diante de uma lei superior, inquestionável e fatal, sendo, por si, uma estratégia fatal. 

Portanto, o "anormal" é resistir à essa resolução, resistir à morte, à corrupção da carne e do sangue. Insistir em ser -- é essa a estratégia do morto-vivo --  é um comportamento que revoluciona, que se opõe à evolução natural, às "fatalidades" e à morte. Ser um morto-vivo (undead)  reorganiza, traz de volta à vida o que é podre, o que está em decomposição, alterando as dinâmicas do espaço-tempo humano: a insegurança reside no fato de que os "anormais" clamam os espaços (e os bens) materiais dos "não infectados", mesmo que para isso tenham que matá-los. Enquanto isso, os "normais" tem que eliminar os mortos-vivos, ou continuar aquartelados e enclausurados nos condomínios e nas fortalezas... e a urbe segue seu rumo.


sexta-feira, 9 de agosto de 2013

Egoísmo e Individualismo: dois conceitos independentes.

Para algumas pessoas, a vida em Sociedade é um desafio duplo, pois lhes são cobradas não só o respeito às normas estabelecidas para a convivência mas, também, sacrifícios pessoais para a manutenção da teia social. Não existe outra forma de se colocar esse problema: na vida em coletividade, o egoísmo é uma patologia social, que afeta o equilíbrio e a organização sociais, prejudicando a formação das relações intersubjetivas duradouras e fragilizando as tentativas de comprometimento entre os indivíduos em prol de interesses comuns.

Entretanto, antes de avançar com essa discussão, é preciso relembrar um dado importante: egoísmo e individualismo são dois termos distintos, sendo necessário se estabelecer uma distinção preliminar, para que se possa avançar, no sentido de combater os discursos pró-egoísmo que têm se multiplicado na última década - deflagrados por um incremento da atual fase da sociedade de espetáculo, na qual a auto-indulgência e a procura pelo prazer têm desconstituído de valor o discurso humanista. 


O individualismo tem uma acepção especial nas Ciências Sociais: representa o renascer do homem frente à Sociedade, por meio da noção de que ele é um centro do qual emana dignidade. Esse conceito remonta ao Renascimento (aqui entendido como o ressurgimento da vida urbana no continente europeu), e se reafirma no Iluminismo (uma corrente filosófica contemporânea do surgimento do Estado de Direito e do pensamento liberal, que se opunham ao absolutismo), fazendo com que o indivíduo possa se opor ao coletivismo. Quer dizer, o individualismo surge como uma resposta dada ao aniquilamento do indivíduo perante à Sociedade. Defender esse pensamento, portanto, significa reconhecer o indivíduo como um núcleo moral inserido na coletividade. Em outras palavras, é entender que, embora havendo um organismo maior, que tolhe uma parte da liberdade individual, restará para o sujeito um espaço de liberdade tal que, respeitado, fará com que as potencialidades inerentes à pessoa humana possam florescer. Nesse sentido, o individualismo não nega a existência da coletividade mas, antes, reforça o comprometimento do indivíduo com a preservação das liberdades e garantias individuais, a par das coletivas.

Ao contrário, o egoísmo ou o "culto ao Ego" é uma patologia de natureza psicológica presente nos seres humanos, podendo causar sérios danos aos sujeitos envolvidos em relações sociais nas quais incidam esse comportamento. Durante o processo de aprendizado, da infância à fase adulta, o indivíduo vai superando a fantasia de que é o centro do mundo: dos primeiros passos, na socialização da Escola, ao trabalho, cada qual entende o seu papel nos diversos contextos da vida. Considerando que o egoísmo coloca os interesses do individuo em primeiro lugar e acima dos interesses de todos os outros membros do grupo, é correto dizer que para que haja engajamento social, é preciso haver egoísmo de baixíssima intensidade - a garantia de que a pessoa possa garantir os seus objetivos e projetos de vida e sua sobrevivência, por exemplo. Isso porque o egoísmo pode levar ao egocentrismo, no qual o indivíduo torna-se incapaz de estabelecer vínculos de empatia sem que, para tanto, haja uma compensação pessoal. Isto é,  para o egoísta, as relações somente se tornam possíveis diante de uma retribuição qualquer. Uma das patologias mais graves do egocentrismo é a psicopatia: o doente torna-se absolutamente incapaz de incorporar qualquer compromisso moral com qualquer membro da Sociedade.

Nesse passo, convém dizer que vive-se um tempo em que o egoísmo suplantou o individualismo: as relações intersubjetivas nos grandes centros urbanos e, principalmente, nos países "emergentes" (no passado, eram chamados de subdesenvolvidos), estabelecem-se  por meio das ferramentas tecnológicas que retiraram do contato humano um fator sensível: a sinestesia. Assim, cada vez mais infantilizadas pela diversão das tecnologias digitais, assiste-se à disseminação do egocentrismo em massa, que se multiplica à cliques de mause (mouse) e em "curtidas" nas redes sociais. 

Mas fica a pergunta: se todos fazem, que mal tem? Ou, frustrando uma película que andou em cartaz nos cinemas, "pagando bem, que mal tem"? O mal reside no fato de que, para que haja vida (e aqui tanto faz ser considerada como vida social ou vida natural) é preciso engajamento em atividades e projetos de interesse coletivo. Alguém pode argumentar: "tudo bem, tirando-se o egocêntrico, pode-se ser egoísta e cooperar em atividades de interesse comum". Esse argumento é parcialmente correto: falta incorporar nele a idéia de sacrifício ou akrasia - uma força exterior que faz o indivíduo agir contra seu melhor julgamento ou em desfavor de seus próprios interesses.

Pode-se fornecer, como exemplo, o soldado que se joga sobre uma granada, para salvar seus camaradas. Outra forma não menos heroica, o jovem estudante que protesta contra o corte de árvores numa reserva florestal, para preservar a natureza, sacrificando seu tempo e sua segurança. Ainda, a mãe que deixa de comer para alimentar seu bebê, e por aí vai. A História faz registro das atitudes individuais que, em sacrifício próprio, salvaram as vidas de centenas e, em alguns casos, milhares de pessoas. Na era digital, o apelo à diversão exerce uma influência negativa direta sobre o engajamento de pessoas em atividades coeltivas e sinestésicas, quer dizer, em atividades sociais nas quais ocorra a sinestesia.

Portanto, o saudável equilíbrio social precisa de uma dose de individualismo e uma outra de coletivismo. Embora essa questão venha sendo discutida a pelo menos dois séculos, sem que tenha havido qualquer experiência social perfeita, é plenamente possível equilibrar a equação indivíduo-Sociedade. A solução, longe de ser jurídica, econômica ou propriamente "científica" é, acima de tudo, sensorial: apela ao âmago do ser, aos sentimentos e, enfim, à empatia.


Dedico este texto aos meus amigos: Amélia R. Soares, Henrique B. Frota, Andréia Costa Castelo Branco Sales, Erika Menezes e Juliana Freitas Ferreira. Obrigado pelo bom exemplo.

terça-feira, 25 de junho de 2013

Genealogia dos Direitos Humanos: um axioma e sete teses - por Costas Douzinas (*)

Abaixo, fazemos a citação da obra de Costas Douzinas, que apresenta 07 (sete) teses acerca da composição teórica dos Direitos humanos.

"O Axioma dos Direitos Humanos - O fim dos direitos humanos é resistir à dominação e opressão, pública e privada. Perde-se essa finalidade quando se tornar a ideologia política ou idolatria do capitalismo neo-liberal ou a versão contemporânea da missão civilizatória.



"Tese 1 - A idéia de "humanidade" não tem nenhum significado fixo e não pode atuar como fonte de moral ou de regras jurídicas. Historicamente, a idéia tem sido usada para classificar pessoas como totalmente humanas, menos humanas e desumanas.

"Tese 2 - Poder e moralidade, império e cosmopolitismo, soberania e direitos, lei e desejo não são inimigos fatais. Ao invés disso, a ordem estrutural de cada época e sociedade são um amálgama histórico específico entre formas de poder e moralidade.

"Tese 3 - A Ordem Pós-1989 combina um sistema econômico que gera uma enorme desigualdade e opressão estruturais, com uma ideologia jurídico-política que promete dignidade e eqüidade. Essa imensa instabilidde contribui para a sua extinção.

"Tese 4 - Universalismo e comunitarismo mais que opostos, são dois tipos de humanismo dependentes um do outro. Eles são confrontados pela ontologia singular da eqüidade.

"Tese 5 - Nas sociedades capitalistas avançadas, os direitos humanos despolitizam a política.

"Tese 6 - Nas sociedades capitalistas avançadas, os direitos humanos tornam-se estratégias para a publicização e legalização do (instável) desejo individual.

"Tese 7 - Para um cosmopolismo do devir (ou a idéia de comunismo)".

 (*) Tradução livre.

Costas Douzinas é professor de Direito, na Birkbeck University. É colunista habitual do Guardian, onde escreve sobre a Grécia. É igualmente conhecido pelo seu trabalho nas áreas dos direitos humanos, da estética, da teoria jurídica pós-moderna e da filosofia política. Entre as suas obras incluem-se "The End of Human Rights" (Hart, 2000) e "Human Rights and Empire" (Routledge-Cavendish, 2007). http://criticallegalthinking.com/author/costasdouzinas/

Agradecimentos à Thiago Mota, que disponibilizou o texto em inglês:

The Human Rights Axiom - The end of human rights is to resist public and private domination and oppression. They lose that end when they become the political ideology or idolatry of neo-liberal capitalism or the contemporary version of the civilizing mission.

Thesis 1 - The idea of ‘humanity’ has no fixed meaning and cannot act as the source of moral or legal rules. Historically, the idea has been used to classify people into the fully human, the lesser human, and the inhuman.

Thesis 2 - Power and morality, empire and cosmopolitanism, sovereignty and rights, law and desire are not fatal enemies. Instead, a historically specific amalgam of power and morality forms the structuring order of each epoch and society.

Thesis 3 - The post-1989 order combines an economic system that generates huge structural inequalities and oppression with a juridico-political ideology promising dignity and equality. This major instability is contributing to its demise.

Thesis 4 - Universalism and communitarianism rather than being opponents are two types of humanism dependent on each other. They are confronted by the ontology of singular equality.

Thesis 5 - In advanced capitalist societies, human rights de-politicize politics.

Thesis 6 - In advanced capitalist societies, human rights become strategies for the publicization and legalization of (insatiable) individual desire.

Thesis 7 - For a cosmopolitanism to come (or the idea of communism).

segunda-feira, 24 de junho de 2013

Considerações sobre a mobilização das massas no Brasil - por Newton Albuquerque

Os eventos de mobilização de massas no Brasil estão a nos cobrar uma reflexão mais exaustiva, fugindo dos impressionismos e das abordagens unilaterais. A Academia - não a dos músculos brandidos pelos policiais e agentes provocadores - precisa se deter nas expressões contraditórias que se aninham no bojo das manifestações de massa que tem ocorrido.


De um lado percebe-se nitidamente um esgotamento da representação, pelo menos em sua feição liberal clássica, engolfada pela torrente do Capital e dos processos de financiamento eleitoral que tudo constrange e uniformiza. Os partidos, quase sem exceção, incluindo aqui o PT, genuflexa perante as construtoras, as grandes empresas, os banqueiros, as imobiliárias, etc, buscando a grana para o azeitamento das campanhas, cada vez mais "profissionalizadas", cabendo aos militantes um papel mirrado, de tarefeiros acríticos á soldo de estruturas institucionais de candidatos, Vinculação subalterna que adultera os programas de esquerda, rebaixa seus horizontes de ação ao nível da "administração do cotidiano", onde o que prepondera é a racionalidade dos "ganhos parciais", da "melhoria de vida" encerradas na narrativa triunfante do capitalismo global. Pior preso a uma visão legitimadora do consumismo e do ideal medíocre, esquálido do ponto de vista cultural e estético de se tornar "classe média". Daí o esgarçamento, cada vez maior, entre as expectativas dos recém integrados a sociedade e a frágil elaboração civilizatória de alternativas para além da brutalidade da sociedade de mercado. A juventude em especial, apesar da dispersão atomizadora, das apreensões de mundo fundadas no desejo individualista, sente-se esmagada, pressionada em sua existência pelas retortas da uniformidade e do controle asfixiante de um capitalismo devorador do "tempo livre" e da expressão autêntica da personalidade. Tendências mórbidas que não são contrarrestadas por nenhum partido ou movimento tradicional, dada a assimilação pragmática dos mesmos à ordem, ou seja porque a "tribalização moral" de suas reivindicações não cabem em lógicas propriamente institucionais como são os partidos. Nesse sentido, a especificidade da categoria juventude nos lança desafios, requer criatividade para repensar dimensões utópicas que a motivem. "O amor que teme pronunciar o nome" praticado pelas burocracias de determinados setores de esquerda, traveja o desenvolvimento do socialismo, de sua dimensão libertária, da revisitação dos fundamentos ético-políticos do comum. Isso explica um dos fatores da mobilização, mas parece-me que há outros motivos, razões que o explicam que também não podem ser desconsiderados.

Um outro aspecto, a meu ver, tem a ver com a "desilusão" trazida pelos megaeventos urbanos em que se veiculou a crença de que investimentos vultosos catapultariam as cidades, sua gente ao "Primeiro Mundo", produzindo melhorias generosas na qualificação do espaço urbano, na ampliação dos serviços, das ruas, dos transportes, etc. A compreensão que isto não correria gerou um furor cívico na sociedade, particularmente junto àqueles mais suscetíveis a ideologia do 'urbanismo de exceção", dos adeptos da supremacia dos milagres da técnica, das virtudes intrínsecas da modernidade, notadamente em relação a nossa classe média. Tal descompasso trouxe à tona a inviabilidade do plano modernizador, da perpetuidade de nossas mazelas endêmicas que vão desde a insegurança, passando pela precariedade das malhas viárias, dos sonhos "civilizadores" de nos tornarmos uma espécie de Barcelona tropical.

Creio que outro aspecto está relacionado a dinâmica mobilizante de um conservadorismo protofascista que dialoga com as ondas longas do autoritarismo nativo em que o hipermoralismo é apenas a ponta do iceberg do sentimento de repulsa de setores médios, pequeno-burgueses, a "insignificância" de sua função política, social e cultural, após o desplugar das classes trabalhadores de sua direção mais direta. Segmentos da vaga "classe média" que não aceitam ter perdido o protagonismo de sua influência sobre as eleições, nem de figurar como o alvo preferencial das estratégias do país, inclusive no âmbito cultural. A ênfase nos governos Lula/Dilma no "pobreletariado" - como menciona André Singer em seu "Sentidos do Lulismo"- ao mesmo tempo que favorecia o incremento dos ganhos e lucros do empresariado, trouxe a classe média um sentimento de abandono, de secundarização social. Agora seus jovens ao envergar a simbologia do nacional buscam resgatar sua importância, secretando sua revolta, exprimindo seus códigos normativos e valores centrados na exemplaridade da moralidade privada como modelo para a política.

Não tenho a pretensão de apreender toda a realidade, sempre mais complexa e diferenciada, nem pretendo ocupar o lugar dos "cientistas políticos" mais versados no assunto, mas apenas de contribuir para o debate em meio a tantos desencontros, tateios e perplexidades. O fato é que precisamos nos debruçar sobre esses eventos para melhor compreendê-los, disputar sua hegemonia atualmente conservadora, e ajudar a que se dirijam mais à esquerda. Como mais à esquerda precisam ser deslocados o PT e os órgão de representação dos trabalhadores e do povo. O Brasil precisa retomar o veio das mobilizações sociais contra o Capital, recolocar no centro o debate sobre estratégia socialista, aprofundar a democracia.

Newton de Menezes Albuquerque possui graduação em Direito pela Universidade Federal do Ceará (1993), mestrado em Direito (Direito e Desenvolvimento) pela Universidade Federal do Ceará (1999) e doutorado em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (2001). Atualmente é Professor Adjunto da Universidade de Fortaleza, professor adjunto da Universidade Federal do Ceará e membro do Conselho Curador da Fundação Perseu Abramo. Atua principalmente em Teoria do Estado Direito Internacional e desenvolve pesquisas com os seguintes temas: sociedade internacional e soberania; Estado nacional e democracia no Brasil e direitos fundamentais.

quarta-feira, 19 de junho de 2013

O "Gigante acorda": acordou para o que?

Nas últimas duas semanas, temos assistido a um fenômeno bastante interessante no Brasil: insurgências em diversas capitais brasileiras, que colocaram o povo na rua, contra os interesses dos governos de Estados e municípios. Houve também repercussão nacional, quando a Presidente da República, senhora Dilma Rousseff foi vaiada no jogo de abertura da Copa das Confederações. Some-se a isso a manifestação inaugural, na cidade de São Paulo, que desencadeou o processo, exatamente no centro da força econômico-financeira do País.

Mas existe um movimento político organizado? Onde foram organizadas essas manifestações? As informações passadas pelas empresas de comunicação privadas estão sendo manipuladas contra os manifestantes?

A primeira informação relevante acerca das manifestações é que a maioria é composta por donas de casa, trabalhadores da iniciativa privada, funcionários públicos, desempregados, estudantes e professores universitários. É uma massa disforme, não organizada de pessoas que, movidas por vários interesses, convergiram para formar uma multidão de indignados com os mesmos desafios de sempre: inflação, desemprego, corrupção, ineficiência do Estado diante das políticas públicas relativas à saúde, transportes, educação, infraestrutura dentre várias outras.


Um fator também relevante na mobilização popular é óbvia: o fato de o Brasil estar em foco, diante da realização da Copa das Confederações, orquestrada pela FIFA. No País do futebol, alguém reportou, seria natural que os brasileiros aproveitassem o momento para protestar. E protestam, inclusive, diante de diversas exigências relativas a deveres impostos ao governo brasileiro, relativos à segurança e direitos sobre produtos e serviços prestados aos espectadores nos estádios, e assim por diante. Diante dos olhos de milhões de brasileiros, viu-se o governo federal e dos Estados-membros dobrarem-se diante das exigências de tal organismo internacional, além, obviamente, dos elevados gastos públicos com a construção de estádios de futebol e outras obras - todas atrasadas, super-faturadas e, como se declara à boca miúda, objetos de fraudes com desvio de verbas.

Essa multidão organizou-se nas mídias sociais digitais, notadamente, no Facebook e Twitter. A versatilidade dessas mídias, que podem ser acessadas da maioria dos dispositivos de comunicação móvel (telefones celulares, tablets e afins) favoreceu a organização e a disseminação de diretrizes aos manifestantes. Os encontros têm sido marcados em páginas, onde o manifestante consegue não apenas as informações sobre as passeatas, como também arregimenta a participação de colegas e familiares, aos eventos programados em locais públicos.

O interessante desse suporte digital é que, por comportar conteúdo audiovisual, ele tem servido, também, como veículo de comunicação social, demonstrando a truculência com que as autoridades públicas têm tratado os manifestantes. Não é incomum, sendo correto afirmar que abundam fotos e vídeos sobre ataques de ambos os lados - e a violência surge, aqui, como um tema também a ser discutido.

De fato, tanto os governos, quanto os insurgentes alegam que há violência: os manifestantes são acusados de depredar o patrimônio público, além de causar transtorno ao trânsito e aos demais membros da população; os governantes são acusados de usar a força policial para amedrontar e agredir a população. Importante, contudo, é ressaltar o seguinte: estas manifestações são compostas por uma "panaceia" de indivíduos (uma variedade de opiniões e matizes culturais capaz de curar todos os nossos "males" sociais); dentre esses indivíduos, existem aqueles que apelam à violência, e que tem sido até controlados por outros manifestantes. O que é importa é afirmar: a violência e a depredação do patrimônio público e privado não têm sido os objetivos nem a tônica do movimento - a despeito do que temos assistido nas empresas de comunicação televisiva; o movimento tem natureza pacífica.



Quanto aos que se indignam diante disso tudo, um recado breve: esse é um fenômeno social interessante, inovador e que pode ser útil para o aprofundamento da democracia brasileira. Jorge Hélio, meu antigo professor de Direito Constitucional e, atualmente, conselheiro do Conselho Nacional de Justiça, fez a seguinte provocação: "Que tipo de democracia queremos? Uma democracia de manifestações pacíficas? Ou de demonstrações violentas?". Esse questionamento deve ser encarado da seguinte forma: ambas são formas qualificadas de democracia; compete ao povo escolher qual das duas prefere. E a quase-totalidade dos insurgentes escolheram manifestar-se pacificamente.

No meio disso, está a mídia tradicional, sendo acusada de selecionar as informações que são repassadas ao grande público, tendenciosamente favorecendo os interesses dos industriais e governantes. Nesse aspecto, várias são as opiniões e estudos que podem ser chamadas a explicar essa tendência da mídia tradicional, mas prefiro apelar para a seguinte: na composição da mensagem que é passada ao público, além de outros fatores, imperam tanto o sensacionalismo que movimenta os índices de audiência, quanto a óbvia falta de uma percepção sistêmica do problema. Também é cediço que sempre se opta por este ou aquele padrão editorial, que beneficie este ou aquele interesse, mas conjecturar sobre isso é abrir a discussão para um viés que, neste texto, não é a principal "linha editorial" - e o que demandaria um esforço enorme, já realizado em outros documentos lançados neste blog.



Escolhemos a subsidiariedade: aqueles que estão em contato direto com o conflito têm melhores condições de resolvê-lo e maior legitimidade para falar sobre ele. Não pode haver uma dúvida sequer: este é um movimento político, de uma sociedade civil desorganizada. Não está sendo dirigido, até o presente momento, por nenhum partido político, mas é um movimento político. Embora o significado desse termo tenha se perdido nos últimos anos, ele é também ideológico: efêmero e desprovido de essência. Como tudo o que vem se produzindo no campo do social, não há solidez de princípios, nem um foco exclusivo de atuação. Chega a congregar setores político-partidários que, tradicionalmente, são antagônicos, mas tem por mérito a re-utilização e re-significação do espaço público. É uma forma de (des)organização política: informal, autóctone e soberana.

Entretanto, é muito conveniente ressaltar o seguinte: esse movimento ainda é, e provavelmente ainda será durante muito tempo, observado com muita desconfiança pela sociedade brasileira. Não temos a tradição de nos rebelar, porque nossa capacidade política se resume à participação no processo eleitoral, que tem uma periodicidade num interstício de 02 anos. Fomos acostumados a um distanciamento das questões políticas; um ditado popular estabelece que "futebol, religião e política não se discute". Esse dizer popular revela que essas três paixões encontram-se num mesmo nível, e ajudam a compor o imaginário sentimento de pertença da população, unificada culturalmente em torno de alguns "símbolos nacionais": samba, futebol, carnaval e obediência.

Isso significa, também, que espera-se dessa insurgência um comportamento compatível com o estado de torpor que uma sociedade economicamente emergente precisa, para que possa continuar a haver o consumo de bens. É notório e, de uma certa forma, escandaloso que o sistema econômico precise limitar as manifestações populares a níveis ponderados de manifestação democrática; em recente entrevista, o Secretário-Geral da FIFA chegou a afirmar que uma Copa do Mundo organizada num país autoritário, como a Rússia, seria menos problemático do que uma organizada na Alemanha ou no Brasil, onde há democracia. Essa afirmação reconhece a complexidade das demandas sociais, consideradas atentatórias à segurança do consumo dos produto-serviço oferecidos pela FIFA; tal perspectiva teme que a visibilidade do evento seja catalizador de novos protestos e revolta populares. Mas isso também pode ocorrer numa paralização de uma categoria qualquer que, durante um dia semana, no horário comercial, bloqueie uma avenida e impeça outros trabalhadores de trafegar rumo ao trabalho, ou impedir que os consumidores se dirijam aos shopping centers (me ocorreu a origem estrangeira do termo, neste instante...). Segurança para o consumo, segurança para o lucro.

O espaço público, agora, se desloca para um outro lugar. Esse lugar é digital, virtual, mas é tão real como a extinta praça pública. Ele é composto por bits e bytes, e ainda não está completamente regulado, porque é caótico na sua composição, dinâmico na sua entropia e negentropia, e sistêmico na sua operacionalização. Todas essas caracterísitcas tornam bastante difícil um controle sobre as informações que são ali difundidas. Se é certo que um serviço possa ser bloqueado e até mesmo fechado, é também correto que outros sítios agregadores surjam, com velocidade superior à da burocracia estatal. Se as pessoas estão confinadas em seus apartamentos e casas, com cercas elétricas e sistemas privados de segurança; se a praça pública é o espaço da droga e do crime, o cidadão encontrou um novo local para as suas demandas e organização política, e tem partido desse não-lugar de volta às ruas, à praça pública. Liberdade de locomoção, liberdade de expressão e manifestação do pensamento.

As empresas privadas e públicas de comunicação social continuam a ter uma maior inserção, no que pertine ao alcance de zonas rurais e nas camadas sociais sem acesso à Internet (ou que ainda utilizam-na precariamente, como fonte de informação). O que impõe aos insurgentes o desafio de transpor os limites sócio-econômicos naturalmente associados à tecnologia de informação, e de levar as informações sobre o que está ocorrendo ao resto da população.

Por fim, compete-nos avaliar duas coisas: (1) está havendo um conflito jurídico-político, no Brasil e (2) nossa democracia está amadurecendo. Nós que clamamos uma nova hermenêutica, efetuada sobre uma Constituição aberta (para utilizar a expressão de Peter Häberle), e que desejamos nos inscrever como membros de uma comunidade internacional civilizada, precisamos considerar se vamos sacrificar nossa liberdade em prol da segurança; se vamos aquietar nossas indignações e assegurar nossos interesses de mercado (sim, fazemos parte dele, pois somos produtores-consumidores de bens e serviços, e não nos resta mais nenhuma gota de hipocrisia para esconder isso). Temos que decidir, ainda, se vamos continuar vivendo numa Democracia não-democrática. Esse é o legado que temos a deixar, para a próxima geração.

Fotos e vídeos recolhidos na manifestação ocorrida hoje, na cidade de Fortaleza, registrando a violência policial patrocinada pelo Governo do Estado do Ceará.