sexta-feira, 20 de outubro de 2023

Preceitos Fundamentais na Constituição Brasileira de 1988

 Preceitos Fundamentais na Constituição Brasileira de 1988 e sua Repercussão na Ordem Jurídica e Sociedade

 A Constituição Federal de 1988, que molda o sistema jurídico brasileiro, é profunda em significado e amplitude, trazendo em seu bojo os preceitos fundamentais que garantem a coesão, a justiça e o direcionamento da nação. Estes preceitos são pedras angulares, servindo como normas e princípios que orientam e iluminam todo o ordenamento jurídico, refletindo diretamente na vida dos cidadãos e na organização do Estado.

  • Exemplos e Aplicações no Cotidiano:

 Dignidade da Pessoa Humana: Um dos maiores pilares do ordenamento, é aplicado em diversas situações, como na proibição de tratamento degradante nas prisões, na proteção contra discriminação e na garantia de um mínimo existencial a todos os cidadãos.

 Separação dos Poderes: Concretizado diariamente na atuação independente, porém harmônica, dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, garante um equilíbrio institucional e impede abusos de autoridade.

 Soberania: Manifesta-se nas relações internacionais do Brasil, na defesa do território e nos atos que asseguram a independência nacional.

 Cidadania: Está presente no exercício do voto, na participação política e nas diversas formas de manifestação e associação.

 Valores Sociais do Trabalho: Refletidos nas leis trabalhistas que garantem direitos como férias, 13º salário e proteção contra demissão arbitrária.

 

  • Interpretação do Ordenamento e Proteção de Direitos:

 Os preceitos fundamentais operam como verdadeiras bússolas para a interpretação jurídica. Eles orientam não apenas o legislador na criação de normas, mas também o magistrado na hora de aplicar a lei, garantindo que os direitos fundamentais sejam sempre protegidos e promovidos.

 

  • Manutenção do Estado Democrático de Direito:

 Sem os preceitos fundamentais, o Estado Democrático de Direito estaria em constante ameaça. Eles asseguram as liberdades fundamentais, impedem o surgimento de regimes autoritários e garantem a participação popular no processo político.

 

  • Influência no Regime Político e Limitações ao Poder:

 Os preceitos fundamentais estabelecem os limites dentro dos quais o poder pode ser exercido, garantindo a pluralidade política, a alternância de poder e a transparência na gestão pública.

 

  • Repercussão em Diversas Áreas do Direito Constitucional:

 Ambiental: O princípio do meio ambiente ecologicamente equilibrado, garantido como direito fundamental, orienta políticas públicas e ações privadas, assegurando um desenvolvimento sustentável.

 Econômico: Os preceitos fundamentais direcionam a economia para atender ao bem-estar social, por meio, por exemplo, da função social da propriedade e da busca pela redução das desigualdades regionais e sociais.

 Social: A educação, saúde e assistência social são direitos de todos, e os preceitos fundamentais asseguram sua universalidade, integralidade e equidade.

 Cultural: A promoção e proteção da cultura brasileira, a preservação do patrimônio histórico e artístico e o estímulo à produção cultural são refletidos e garantidos pelos preceitos fundamentais.

 À guisa de conclusão, pode-se afirmar seguramente que os preceitos fundamentais são o DNA da Constituição e, consequentemente, da sociedade brasileira. Eles permeiam todas as áreas do direito, influenciando ações, decisões e políticas, e garantindo um Brasil mais justo, igualitário e democrático.

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Princípios e ética constitucional dos preceitos fundamentais: na gestão de recursos florestais, promoção da igualdade de acesso ao lazer, preservação de ecossistemas marinhos, direito à liberdade religiosa, proteção de ecossistemas aquáticos, promoção da igualdade de acesso à participação política, respeito às tradições culturais locais, ética na tecnologia da informação, responsabilidade na gestão de recursos minerais, promoção da igualdade de acesso à justiça ambiental, preservação de sítios paleontológicos, promoção da igualdade de acesso à tecnologia de comunicação, respeito aos direitos dos animais, ética na publicidade, responsabilidade na gestão de recursos pesqueiros, promoção da igualdade de acesso ao transporte, preservação de áreas protegidas, promoção da igualdade de acesso a oportunidades educacionais, respeito à pluralidade religiosa, ética na arquitetura, responsabilidade na gestão de recursos minerais, promoção da igualdade de acesso à educação ambiental, preservação de locais de valor arqueológico, promoção da igualdade de acesso à tecnologia assistida, respeito aos direitos das comunidades LGBTQ+, ética na pesquisa científica, responsabilidade na gestão de recursos naturais, promoção da igualdade de acesso à justiça social, preservação de tradições culturais indígenas, promoção da igualdade de acesso à tecnologia médica, respeito às crenças espirituais locais, ética na inteligência artificial, responsabilidade na gestão de recursos hídricos, promoção da igualdade de acesso à tecnologia de informação, preservação de espécies ameaçadas, promoção da igualdade de acesso à educação inclusiva, respeito às tradições religiosas, ética nos negócios, responsabilidade na gestão de recursos marinhos, promoção da igualdade de acesso à cultura, preservação de sítios culturais, promoção da igualdade de acesso à tecnologia educacional, respeito às crenças espirituais indígenas, ética na pesquisa médica, responsabilidade na produção de energia, promoção da igualdade de acesso a oportunidades de trabalho, preservação de ecossistemas marinhos, promoção da igualdade de acesso a oportunidades educacionais, respeito à diversidade cultural, ética na engenharia, responsabilidade na gestão de recursos florestais, promoção da igualdade de acesso à justiça ambiental, preservação de áreas protegidas, promoção da igualdade de acesso à tecnologia de comunicação, respeito aos direitos dos animais, ética na publicidade, responsabilidade na gestão de recursos pesqueiros, promoção da igualdade de acesso ao transporte, preservação de áreas de conservação, promoção da igualdade de acesso a oportunidades de lazer, respeito à pluralidade religiosa, ética na arquitetura, responsabilidade na gestão de recursos minerais, promoção da igualdade de acesso à educação ambiental, preservação de locais de valor paleontológico, promoção da igualdade de acesso à tecnologia assistida, respeito às comunidades LGBTQ+ , ética na pesquisa científica, responsabilidade na gestão de recursos naturais, promoção da igualdade de acesso à justiça social, preservação de tradições culturais indígenas, promoção da igualdade de acesso à tecnologia médica, respeito às crenças espirituais locais, ética na inteligência artificial, responsabilidade na gestão de recursos hídricos, promoção da igualdade de acesso à tecnologia de informação, preservação de espécies ameaçadas, promoção da igualdade de acesso à educação inclusiva, respeito às tradições religiosas.

quinta-feira, 28 de setembro de 2023

EQUILÍBRIO DE PODER NA DEFESA DOS DIREITOS HUMANOS

O panorama das relações internacionais é definido por uma constante interação entre "soft power" e "hard power". Enquanto o "soft power" foca na atração e persuasão, o "hard power" refere-se ao uso da força ou coerção para obter o que se deseja de outros estados. Esta dualidade é especialmente relevante quando consideramos as relações multilaterais mediadas pela diplomacia e pelo direito internacional público.

Hard Power

No âmbito do direito internacional, o hard power manifesta-se frequentemente através de sanções, ameaças militares e, em casos extremos, intervenções. A capacidade de um Estado em mobilizar e usar recursos militares ou econômicos para influenciar outros países é um reflexo direto deste poder. Um exemplo pode ser a imposição de sanções econômicas pela ONU a países que violam resoluções ou normas internacionais.

Porém, o uso excessivo ou mal orientado do hard power pode gerar resistência e animosidade. Por exemplo, intervenções militares unilaterais sem um claro mandato internacional podem ser vistas como invasões ou imperialismos, desacreditando a imagem do Estado interventor no cenário mundial.

Soft Power em contraposição

Ao contrário do hard power, o soft power não busca impor, mas convencer e atrair. No contexto da diplomacia, a capacidade de um país em construir coalizões, promover diálogos e fomentar entendimentos baseia-se largamente em seu soft power. Instituições como a UNESCO, por exemplo, promovem valores e normas culturais e educacionais que são abraçados voluntariamente por outros países devido ao seu apelo e não por imposição.

O direito internacional público, com suas convenções e tratados, muitas vezes reflete essa interação entre soft e hard power. Por exemplo, enquanto a Carta da ONU prevê mecanismos de coerção em caso de violações (hard power), ela também promove a resolução pacífica de disputas e cooperação internacional (soft power).

Relações Multilaterais

Nestas relações, a diplomacia e o direito internacional público atuam como mediadores, buscando equilibrar interesses divergentes. A eficácia da diplomacia muitas vezes reside na habilidade de um país em usar seu soft power para construir consensos e promover cooperação. Em fóruns multilaterais, como a ONU, países que são vistos como líderes não apenas por sua capacidade econômica ou militar, mas por seus valores, cultura e contribuições para o bem comum, exercem influência desproporcional.

Joseph Nye, ao introduzir o conceito de "soft power" no panorama das relações internacionais, revolucionou a forma como entendemos a dinâmica do poder entre os Estados. Para compreender a transição ideológica que ele propõe, é vital examinar seus fundamentos e a lógica subjacente à sua teoria.

"Soft power" é um termo que foi cunhado pelo acadêmico Joseph Nye em 1990 e refere-se à capacidade de um país de influenciar outros atores internacionais não por meio da coerção (como no uso de força militar ou sanções econômicas), mas através da atração e persuasão. É um tipo de poder que se manifesta através de aspectos culturais, valores ideológicos e políticas externas que são vistas como legítimas ou atraentes para outros.

No contexto jurídico, o soft power pode ser visto na disseminação de sistemas legais ou princípios normativos que são adotados por outros países devido à sua percepção de legitimidade ou eficácia, e não por imposição. Por exemplo, após a Segunda Guerra Mundial, muitos princípios do direito internacional dos direitos humanos foram amplamente adotados, em parte, devido à influência do soft power dos países ocidentais que os promoviam.

Nas relações internacionais, exemplos de soft power podem incluir a exportação da cultura pop, como a onda Hallyu da Coreia do Sul, que se refere à crescente popularidade global da música, filmes e dramas coreanos. Quando as pessoas em todo o mundo passam a admirar e consumir produtos culturais de um país, isso pode levar a uma visão mais positiva desse país, aumentando sua influência global.

O soft power representa a capacidade de influenciar através da atração, em contraste com o "hard power", que se baseia em meios coercitivos. Em um mundo globalizado, onde as relações públicas e a imagem de um país têm um papel crucial nas relações internacionais, o soft power torna-se uma ferramenta essencial para a diplomacia e a estratégia global.

1. Contextualização Histórica: Nye desenvolveu sua teoria em um momento de transição global. A Guerra Fria estava terminando, e a dinâmica bipolar de poder entre os Estados Unidos e a União Soviética estava desaparecendo. Era um período em que a globalização e a interconexão entre os Estados estavam crescendo rapidamente.

2. Definição de Poder: Para Nye, poder é a capacidade de influenciar os outros para obter os resultados desejados. Tradicionalmente, esse poder era visto em termos de recursos tangíveis, como força militar ou riqueza econômica ("hard power"). No entanto, Nye argumentou que a capacidade de um país de atrair e cooptar, através de sua cultura, valores políticos e políticas externas, é igualmente crucial.

3. Limitações do Hard Power: Nye observou que o uso exclusivo da força ou coerção frequentemente traz resultados contraproducentes. Além de ser caro, pode gerar ressentimento e resistência, diminuindo a influência de um país no longo prazo.

4. Atração e Persuasão: No cerne da teoria do soft power está a ideia de que é mais eficaz atrair e persuadir do que coagir. Isso não significa que o hard power seja irrelevante, mas que deve ser equilibrado com estratégias que promovam a atração.

5. A Importância da Credibilidade: Um dos principais elementos do soft power é a credibilidade. Para que um país exerça influência, suas ações internas e externas devem estar alinhadas. A hipocrisia ou a contradição entre o que um país promove e o que pratica pode erodir seu soft power.

6. Evolução das Relações Internacionais: Nye partiu da ideia de que, em um mundo cada vez mais interligado, as relações bilaterais tradicionais estão dando lugar a redes complexas de interação. Nessas redes, o soft power desempenha um papel crucial, facilitando a cooperação e a coordenação.

Como se pode denotar, Joseph Nye identificou uma mudança nas relações internacionais, onde a força bruta estava se tornando menos eficaz e, muitas vezes, contraproducente. Ele argumentou que, em um mundo interconectado, a capacidade de atrair e persuadir é mais benéfica e eficaz para as relações multilaterais. Ao fazer isso, Nye não só redefiniu a compreensão do poder nas relações internacionais, mas também destacou a necessidade de estratégias de diplomacia mais sofisticadas e integradas.

Em conclusão, enquanto o hard power continua relevante e, em certas circunstâncias, necessário, o soft power é cada vez mais reconhecido como fundamental em um mundo interconectado. A capacidade de influenciar através da atração e persuasão, e não apenas pela coerção, é crucial para a construção de um mundo mais cooperativo e pacífico. A interação entre soft e hard power, mediada pela diplomacia e pelo direito internacional público, define em grande parte a dinâmica das relações multilaterais contemporâneas.

BIBLIOGRAFIA:

Nye, Joseph S. "Soft Power: The Means to Success in World Politics." PublicAffairs, 2004.

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Ikenberry, G. John and Kupchan, Charles A. "Liberal Leviathan: The Origins, Crisis, and Transformation of the American System." Princeton University Press, 2011.Transformation of the American System." Princeton University Press, 2011.

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segunda-feira, 18 de setembro de 2023

Seria possível defender o conceito “ubi societas ubi jus, ibi jus ubi societas” no contexto do Nazismo e do Fascismo italiano?

 INTRODUÇÃO

Defender o brocado "ubi societas ubi jus, ibi jus ubi societas" no contexto do Fascismo ou do nazismo é uma tarefa complexa e delicada, porque ambos os regimes violaram princípios fundamentais de justiça, direitos humanos e ética. Nestes casos, as leis ("lex") eram usadas para legitimar atrocidades, tornando difícil argumentar que onde há sociedade, há "jus" (direito) no sentido de uma justiça universal ou princípios éticos.

O que esses regimes demonstram é que a presença de um sistema legal formal ("lex") não necessariamente implica a existência de "jus" no sentido de justiça ou moralidade. Aqui, "lex" e "jus" divergem dramaticamente. O direito, neste contexto, foi manipulado para servir a fins injustos, mostrando que a lei escrita pode ser uma ferramenta de opressão e injustiça, em vez de um mecanismo para a realização de princípios justos.

Essa desconexão entre "lex" e "jus" em regimes como o Fascismo e o nazismo ilustra a importância de manter uma crítica ativa e um escrutínio ético sobre as leis e os sistemas legais. Serve também como um lembrete severo de que a presença de leis e de um sistema legal não é, por si só, suficiente para garantir uma sociedade justa ou ética.

Portanto, enquanto o brocado pode geralmente sugerir que o direito e a sociedade são coexistentes e mutuamente influentes, ele não garante que essa coexistência seja sempre justa ou ética. Isso nos mostra a importância de estar sempre atentos à relação entre "lex" e "jus", e à necessidade de esforços constantes para alinhar os dois em direção à justiça e à equidade.

DESENVOLVIMENTO

H. L. A. Hart, um dos juristas mais influentes do século XX, abordou a relação entre "lei" e "direito" em sua obra seminal "O Conceito de Direito" ("The Concept of Law"). Hart argumenta a favor de um "positivismo jurídico", que separa o que a lei é do que a lei deveria ser. Ele introduz a ideia de que um sistema legal é composto por "regras primárias" e "regras secundárias". As regras primárias são aquelas que governam o comportamento diretamente (como proibições e mandatos), enquanto as regras secundárias são aquelas que governam como as regras primárias são criadas, modificadas ou aplicadas.

Um dos pontos-chave de Hart é o conceito de "regra de reconhecimento", uma regra secundária que estabelece os critérios pelos quais outras regras são reconhecidas como parte do sistema legal. Isso se assemelha à ideia de "lex" em que é uma estrutura formal e reconhecida.

Ao mesmo tempo, Hart reconhece que o sistema legal não é um sistema fechado e que muitas vezes há "casos difíceis" onde as regras existentes não fornecem respostas claras. Nestes casos, ele permite algum grau de interpretação judicial, que pode levar em consideração princípios de justiça e moralidade. Isso faz uma ponte com a noção de "jus", o direito como um conjunto mais amplo de princípios éticos e sociais.

Entretanto, Hart mantém uma certa distância entre "lei" e "moral", argumentando que, embora a moral possa influenciar a lei, elas são domínios distintos. Ele critica tanto o "jusnaturalismo", que vê a lei como intrinsecamente ligada à moral, quanto o "positivismo jurídico estrito", que tenta separar completamente a lei da moral.

Dessa forma, Hart oferece uma abordagem mais matizada para entender a relação entre "lex" (a lei como um conjunto de regras reconhecidas) e "jus" (o direito como um conceito mais amplo que pode incluir noções de justiça e moralidade), mantendo-os como domínios inter-relacionados, mas distintos.

Por sua vez, Ronald Dworkin, um jurista e filósofo americano, oferece uma abordagem substancialmente diferente da de H.L.A. Hart sobre a natureza do direito. Dworkin é conhecido por sua crítica ao positivismo jurídico, argumentando que a lei não é apenas um conjunto de regras, mas também incorpora princípios morais e éticos.

Um dos conceitos centrais de Dworkin é a ideia de que os juízes não apenas aplicam a lei, mas também a "interpretam" à luz de princípios morais e éticos. Em sua obra mais conhecida, "Levando os Direitos a Sério" ("Taking Rights Seriously"), ele introduz a ideia de que os direitos individuais são um componente central do direito e devem ser levados em consideração mesmo quando entram em conflito com a vontade da maioria.

Dworkin também introduz o conceito de "integridade do direito". Ele argumenta que o direito deve ser visto como um conjunto coerente de princípios que buscam fazer justiça em casos individuais. Para ele, a lei ("lex") e a justiça ou os princípios morais ("jus") estão intrinsecamente ligados, e um não pode ser entendido adequadamente sem o outro.

Ele critica o que vê como uma abordagem "regrista" de Hart e outros positivistas, que, em sua visão, reduzem o direito a um conjunto de regras sem considerar os princípios subjacentes. Para Dworkin, esses princípios são parte inseparável do sistema legal e devem ser usados para resolver "casos difíceis" onde as regras existentes são ambíguas ou incompletas.

Assim, enquanto Hart oferece uma estrutura mais formalista e separada para entender "lex" e "jus", Dworkin argumenta que os dois são profundamente interconectados e que o direito deve ser entendido como uma mistura de regras e princípios orientados pela meta de justiça social e individual.

OS ARGUMENTOS DE KELSEN

Hans Kelsen, um dos mais importantes teóricos do direito do século XX, é talvez mais conhecido por sua "Teoria Pura do Direito", na qual ele defende uma visão estritamente positivista e formalista da lei. No entanto, em sua obra "O que é Justiça?", Kelsen explora a relação entre direito e justiça de uma maneira um tanto diferente, embora ainda mantenha sua perspectiva positivista.

Kelsen argumenta que a justiça é um ideal, não uma realidade empírica, e que sua definição pode variar de acordo com diferentes culturas e períodos históricos. Para ele, o conceito de justiça é relativo e não pode ser definido de maneira absoluta. Isso pode ser visto como uma forma de abordar a ideia do "justo subjetivo", embora ele não use esse termo.

No entanto, Kelsen mantém que, enquanto o conteúdo específico da justiça pode ser relativo, o próprio conceito de justiça implica uma forma de igualdade. Isto é, qualquer sistema que se pretenda justo deve tratar casos iguais de forma igual e casos desiguais de forma desigual, de acordo com suas desigualdades. Isso poderia ser visto como um critério para o "justo objetivo".

Desta feita, embora Kelsen mantenha sua perspectiva positivista, que separa o "é" do "deve ser", ele também reconhece que o direito frequentemente busca realizar ideais de justiça, mesmo que esses ideais sejam culturalmente e historicamente contingentes. No entanto, ele é cético quanto à possibilidade de definir a justiça de forma absoluta, vendo-a mais como um ideal regulador do que como uma realidade concreta.

CONCLUSÃO

No contexto das deliberações sobre a intrínseca relação entre "lex" (lei) e "jus" (direito), as teorias de Kelsen, Dworkin e Hart oferecem prismas distintos e complementares para interpretar a dinâmica entre o legal e o justo. Kelsen, por exemplo, se situa no domínio do positivismo jurídico puro, abordando a lei predominantemente de uma perspectiva normativa, onde a justiça permanece relativizada a contextos culturais e históricos específicos, enfatizando uma separação clara entre a moral e o direito. Ele vê o conceito de justiça como um ideal regulatório, que embora intrinsecamente ligado à igualdade, é essencialmente indecifrável por sua natureza relativa e mutável. Aqui, embora a “lex” seja central, o “jus” surge como um ideal potencialmente inatingível e essencialmente subjetivo, acentuando uma distinção clara entre os domínios da lei e da justiça moral.

Por outro lado, Dworkin oferece uma resposta mais integrada ao problema da justiça no direito, onde a lei é não apenas um conjunto de regras, mas também incorpora princípios morais, desafiando assim a rigidez do positivismo jurídico. Dworkin propõe uma interpretação construtiva da lei, na qual a justiça se entrelaça inerentemente com a lei através de princípios morais que guiam a tomada de decisões judiciais, especialmente em “casos difíceis”. Aqui, o “jus” não está separado da “lex” mas, ao contrário, é incorporado na complexa malha do sistema legal. Este enfoque favorece um “justo objetivo”, onde há uma busca persistente pela harmonia entre as leis vigentes e a integridade moral, promovendo um equilíbrio entre normas estabelecidas e princípios éticos subjacentes.

Hart, se posicionando de maneira um tanto intermediária, oferece uma teoria que reconhece a necessidade de regras primárias e secundárias, permitindo algum grau de interpretação moral nas bordas do sistema legal, ainda que mantenha uma ênfase na estrutura formal da lei. Ele contempla a existência de "casos difíceis" onde a moral pode se tornar um fator determinante na aplicação da lei, criando assim um espaço para o “jus” em sua teoria. Esse reconhecimento apresenta uma abertura para uma possível convergência entre “lex” e “jus”, promovendo uma visão mais dinâmica da lei. Ao fazer isso, Hart delineia uma abordagem matizada, ressaltando a inter-relação entre o legal e o moral, e destacando a necessidade de uma análise crítica e moral do sistema legal.

Em conjunto, essas teorias destacam a complexa e multifacetada relação entre “lex” e “jus”. Enquanto Kelsen defende uma distinção clara entre lei e moral, e Dworkin busca uma maior integração entre os dois, Hart oferece uma visão intermediária que permite a interação da lei com princípios morais e éticos, ainda que dentro de uma estrutura mais formalista. O debate entre esses teóricos, portanto, oferece uma rica tapeçaria de perspectivas que pode servir como um guia para explorar a eterna questão da justiça no domínio do direito.

BIBLIOGRAFIA RECOMENDADA

Dworkin, R. (2017). Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1977).

____________. (1999). O império do direito: uma nova teoria da lei. São Paulo: Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1986).

Hart, H. L. A. (2017). O conceito de direito. São Paulo: Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1961).

Kelsen, H. (2015). O que é justiça? São Paulo:  Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1957).

____________. (2009). Teoria pura do direito. São Paulo: Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1934).

Rawls, J. (2002). Uma teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1971).

Nagel, T. (1989). "O que acontece quando a igualdade de oportunidades é levada a sério?" In: Dworkin, R. (Org.), Justiça e igualdade. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra.

Nietzsche, F. (2008). Para além do bem e do mal: prelúdio a uma filosofia do futuro. Rio de Janeiro: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1886).

Fuller, L. L. (1981). O caso dos exploradores de cavernas. São Paulo: Leud. (Trabalho original publicado em 1949).

Raz, J. (2009). The Authority of Law: Essays on Law and Morality. Oxford: Oxford University Press. (Trabalho original publicado em 1979).

sábado, 15 de julho de 2023

Veritas Absoluta Divergente: um diálogo improvável entre Cícero e Marco Aurélio

Cicero: Salve, Marco Aurelio! Verum semper inquiris? Aestimo tuam sagacitatem, amice meus.

Marco Aurelio: Salve, Cicerone! Utique, semper veritatem quaero. Est fundamentum honestatis et sapientiae. Quomodo tu autem concepis veritatem?

Cicero: Veritatem absoluto sensu non existere puto, amice. Ego credo veritatem esse quiddam subiectivum, quod varie a nobis percipi potest. Quot homines, tot sententiae.

Marco Aurelio: Mi Cicero, veritas absolute certa esse debet. Existit una et aeterna veritas, quae sapientiam omnibus offerre debet. Nonne a Deo emanat?

Cicero: Certum est, amice, nos homines inquisitores sumus. Sed quomodo certo possumus asserere veritatem aeternam esse? Nostri sensus fallaces sunt, et errores in cognitione facimus. Num decepti erramus?

Marco Aurelio: Utique, errorem effugere difficile est. Sed hoc non negat veritatem esse. Veritas in nobis inest, atque per rationem et iudicium a veritate abeuntem judicare possumus.

Cicero: Verum dicis, Marco Aurelio. Ratio nobis donata est ut veritatem inquiramus. Sed utrum unam veritatem invenire possumus, quae omnes comprehendat?

Marco Aurelio: Non nego veritatem esse multiformem, sed sunt principia universalia, quae omnes veritates continere possunt. Deus et natura sunt fontes veritatis. Ego ad haec principia me converto.

Cicero: Ego quoque rationem sequor, amice, sed mea philosophia fert me ad e pluribus veritatibus accedendum. Ratione ad investigandum et disserendum utimur, ut proximam veritatem quam maxime adaequemus.

Marco Aurelio: Sed cur non contendas veritatem absolute acquirere? Si multi errores committuntur, nonne ad perfectionem tendere debemus?

Cicero: Sicut ego animo scio, perfectionem ultimam, veritatem absolutam, nullus hominum assequi potest. Sed per iudicium rationis et virtutem, ad proximam veritatem appropinquare possumus. In hoc spes est, amice.

Marco Aurelio: Verum dicis, Cicero. Nos debemus humiliter veritatem inquirere et errores nostros corrigere. Veritas nos dirigere debet, et in eadem perseverare. Ergo, in proxima veritate nobis coniungamus.

Cicero: Optime dicis, Marco Aurelio. Veritas nobis lucem dat et viam demonstrat. In proxima veritate et iustitia maneamus, amice meus, ut meliores esse possimus.

Marco Aurelio: Eo consentio, Cicero. Per veritatem et virtutem, beatitudinem consequemur. Vale, amice meus, in proxima veritate persevera.

Cicero: Vale, Marco Aurelio. Semper veritatem quaeramus et in proxima veritate persistamus. Nobiscum sit sapientia et virtus.

quinta-feira, 18 de junho de 2015

Amor em tempos de intolerância: a luta entre os credos no Brasil

No último domingo (14/06/2015), uma menina de 11 anos de idade foi apedrejada na cabeça por um grupo de sectários religiosos, quando saía de um culto afro-brasileiro (Candomblé), na cidade do Rio de Janeiro. Essa tragédia levanta sérios questionamentos sobre a atual conjuntura política brasileira. Afinal, a mensagem cristã não é de compreensão, perdão e fraternidade? Para onde foi o significado da lição "deixai vir a mim as crianças"? E, contrariando o senso comum (que estipula que religião não se discute), não seria necessário colocar as formas de expressão religiosa em debate?

(Fonte da foto: O Globo)
Observando o ocorrido com essa menor de idade, pode-se afirmar que foi abandonado o discurso religioso que prega o amor e a comunhão, e revelado o discurso de ódio que a prática a segregação e justifica todas as formas de violência. Convinha saber, entrementes, se esses dois discursos e práticas têm o mesmo lugar-comum. Isso porque partiu-se do conhecido e chegou-se ao impensável: foi feita uma aplicação prática das normas religiosas, da prescrição normativa à sanção, do regulamento à aplicação do castigo. Considere o seguinte: não bastassem as agressões verbais de natureza escatológica - sobre a condenação eterna da alma da garota que, por representar o "diabo", iria arder no fogo eterno, na presença do próprio "Lúcifer" -, perpetrou-se a violação de sua integridade física, comprometendo a segurança de pessoa juridicamente incapaz.

Você pode acompanhar o caso em vários jornais, ou numa pesquisa genérica na internet, ou indo direto às matérias jornalísticas da Folha de São Paulo, do G1 - Globo, do Estadão, ou do Correio Braziliense. O que você vai encontrar são diversos relatos sobre o caso da pré-adolescente, mas não deveria entendê-lo como um caso isolado: embora tenha ganhado notoriedade, diante das especificidades já evidentes, ele é apenas mais um entre muitos, sejam os noticiados, ou os não reportados, sobre a violência contra a cultura afro-descendente no Brasil.

O que é importante salientar, neste e em todos os fatos, é o recrudescimento da violência física contra os adeptos de religiões minoritárias. Como é óbvio, não se tratam de minorias numéricas, mas de grupos que são minorias no acesso ao Poder, e que não encontram o reconhecimento estatal necessário para a livre expressão de suas formas de crença, ainda mais quando o Congresso Nacional tem sido palco de manifestações religiosas (de rezas e orações cristãs). Esses acontecimentos só vêm reforçar o sectarismo e contrariar manifesta determinação legal contida no inciso I do art. 19 da Constituição republicana:
Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
I - estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público.
Assim, é preciso reconhecer que existe uma clara separação entre a esfera política (assuntos de Estado) e a esfera íntima (assuntos estritamente particulares). Não há nada de novo na questão do ódio contra a livre expressão de credo em terras tupiniquins, tendo em vista que a religião é um dos derivativos do poder social e está diretamente associada às questões de identidade e sentimento de pertença sociais. Então, quanto mais uma determinada religião (ou culto) estiver próxima ao poder, mais ela poderá ser um fator de exclusão e mais poderá ser responsável pelo surgimento de minorias. Tudo isso faz lembrar um passado remoto, quando a religião oficial destas terras era a "Catholica Apostolica Romana" (art. 5, Constituição Política do Império do Brazil). Nesse tema de liberdade religiosa, havia tumulto e preconceito contra as primeiras igrejas protestantes que tentavam se instalar nos domínios imperiais de D. Pedro I.

No Estado Democrático de Direito brasileiro, a liberdade de consciência e de crença está assegurada na Constituição Federal (art. 5º, inc. VI), sendo um direito oponível ao Estado e aos demais cidadãos, nos termos da eficácia vertical e horizontal que esse direito fundamental produz, respectivamente. Seguindo a diretriz constitucional que determina a laicidade do Estado (art. 5º, VIII c/c art. 19), é importante salientar que os assuntos religiosos são privados, quanto à oposição que se faz ao Estado como entidade responsável pelo domínio público. Isso não quer dizer que a Sociedade civil não possa expressar sua fé nas ruas - qualquer estudante de Direito com dois dedos de testa sabe disso. 

(Foto: Folha de São Paulo)

Você é a favor disso? Se for, tem que compreender que, numa democracia constitucional de uma sociedade aberta (art. 1º, inc. V), as relações sociopolíticas devem estar embasadas na reciprocidade e no acesso às mesmas oportunidades políticas. Por essa lógica, sendo o Congresso Nacional a casa do povo, é preciso (re)lembrar que povo engloba todo o corpo de cidadãos da República, independentemente de credo ou convicção política ou filosófica. O que enseja o direito de manifestação de Candomblé, Umbanda, Espiritismo e outros cultos, seitas e credos na Câmara dos Deputados - quiça até satânicas, quem o saberá?! Ainda, já imaginou se essa reciprocidade autorizasse o apedrejamento dos membros da sua congregação? Pense nisso. Muito embora a maioria numérica da população brasileira seja teísta, também há que se contemplar o ceticismo ateu que põe em causa todas as religiões - ou essa não seria, também ela, um posicionamento recepcionado pela República?

Portanto, é importante identificar as margens de manobra nos discursos que falam de amor e que são utilizados para praticar o ódio. Essa ressignificação do amor deturpa, ao mesmo tempo, as noções de tolerância e aceitação, impulsionando os membros de uma sociedade "livre, justa e solidária" a abandonar seus laços de fraternidade política, rumo à segregação. O único ponto positivo nessas práticas é uma Revelação (mundana): os intolerantes saíram do armário. Aos esclarecidos, cabe combatê-los.

sexta-feira, 12 de junho de 2015

A Lua, o Lar e a Cidade: ensaio sobre os espaços humanos

As noites de junho em Fortaleza podem ser bem românticas. O calor da cidade é abrandado pela brisa leve, que corre desde a praia rumo ao interior. Isso, por si só, já é grande vantagem, numa região que só tem dois tipos de clima: quente e muito quente. O céu, quase sempre limpo, ostenta a lua dos namorados e das serenatas solitárias, enquanto a urbanidade descansa da vida caótica do trânsito e do trabalho extenuante da "corrida de ratos".


Numa dessas noites aluadas, a conversa com a amiga, filósofa e analista política Sandra Helena de Souza fluía no compasso da contemplação do belo, no bairro Papicu, quando fui capturado por uma epifania: estamos mesmo vivendo em pequenas tocas, como roedores. Essa súbita e chocante constatação estava envolta no contexto do descanso e do silêncio proporcionados pelo prenúncio da madrugada e da percepção visual da paisagem local, cuja brutalidade dos prédios circundantes era quebrada pela pracinha mal cuidada e desprovida de verde, que nada mais era que uma promessa de tranquilidade abandonada pela municipalidade.

Esse meio ambiente (social e natural) e suas artificialidades nos põe a pensar sobre nós mesmos, sobre a nossa condição cidadã, notadamente no que se refere ao lar, à moradia e à municipalidade. É aterradora a percepção de que reproduzimos um modelo de uso e ocupação do solo que, além de desordenado, tem nos colocado em pequenas unidades habitacionais desprovidas do conforto presumido pela lógica da modernização e crescimento econômico. Se essa já era uma realidade para a camada miserável da população que ou mora nos agrupamentos humanos do Estado paralelo - favelas -, ou daquela que habita os rincões do Brasil - na caatinga, no sertão, no cerrado -, hoje, esse cenário faz parte da realidade de todo o agrupamento social urbano, independente da posição socioeconômica dos trabalhadores. Essa é a lei econômica que só encontra duas exceções, presentes quer na liberdade absoluta do homem que possui todo o mundo para si - na figura metafórica do mendigo ou do louco, que é o proprietário absoluto da cidade e do lixo que ela produz -, quer na liberdade regulada do homem que possui o poder de controle sobre a distribuição da riqueza produzida - na descrição denotativa da realidade racional do sistema produtivo -, ambas relacionadas à condição de homem fundamental do nosso liberalismo selvagem.  

A moradia - invadida (favela) ou comprada (bairro) - é apenas o reflexo material da nossa cultural dissociação do meio ambiente natural. O curioso é notar que a contrapartida para o trabalho honesto (que deveria ser decente para todos, mas não é, bem o sabemos!) é o comprometimento com um sistema econômico que nos impulsiona para o trabalho subordinado (e cada vez mais subalterno), cuja única recompensa é uma vida de trabalho até a morte (work until you drop dead) e cujo o único alívio para o endividamento que nos consome a vida economicamente ativa é o sono intranquilo em nossas pequenas unidades habitacionais. Esse descanso hermeticamente contido possui uma dicotomia intrínseca: do lado da favela, a insegurança absoluta, gerada pela pestilência decorrente da falta de saneamento do esgoto ao céu aberto e da falta de água tratada, do assassinato de crianças e jovens das minorias étnicas; do lado do bairro, a insegurança relativa, guardada pelas cercas elétricas e vigiada pelas câmeras de segurança, e o medo e o preconceito constante em relação à pobreza (enquanto categoria discursiva: tanto do ser, como do não-ter). Mas não há enganos: quando o rico vive circundado pela miséria, ele é apenas um miserável de sorte (e a sorte não dura para sempre!).

Devíamos viver na praça, como fazem os felinos: esse espaço em que a Lua ainda é de todos e todas, onde a brisa desalinha todos os cabelos, e no qual a amplitude da cidade adquire um novo significado. A praça é democrática: é tanto dos solitários, quanto dos enamorados; por meio da fuga da toca, torna-se o lugar onde os roedores tornam-se gatos pardos, em busca do seu locus na urbe, numa relação de co-dependência humana que deriva de nossa condição social ou capacidade de socialidade. Se a vida é em cubículos, é preciso se construir e preservar espaços comuns para se poder pensar fora da caixa. Somente na praça é que se pode falar a língua dos gatos. Miau.

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Para Sandra.

sábado, 23 de maio de 2015

O Mercado e teoria do Direito: "Por um punhado de dólares"


A intenção deste artigo de opinião é discutir como as regras de mercado têm exercido uma influência negativa na interpretação (a priori, limitada) dos fundamentos do Direito. Trabalharemos com a noção de que o Mercado é uma instância de Poder e que, visando a acumulação ilimitada de riquezas, possui regras de funcionamento sistêmico próprias. Ainda, como premissa, admitimos que algumas dessas regras podem ser convertidas em regras jurídicas, com o objetivo de garantir o equilíbrio das relações econômicas. Mas também aceitamos como válido o fato de que esse âmbito economicista muitas vezes exige o falseamento e a modificação de regras pertencentes a outras instâncias, como as referentes à Polítca e à Moral - numa relação intersistêmica pertinente ao variado campo da Ética, do qual também faz parte o Direito.



De início, fazemos uma breve nota sobre os riscos inerentes à utilização de um método experimental de análise. Procederemos à investigação desse tema por meio da utilização de uma linguagem figurativa, oriunda da cultura: o ditado popular. Isso porque, numa de suas palestras, o sociólogo Slavoj Žižek indica não existir nada mais intelectualmente desinteressante do que um ditado popular, pois tal recurso seria a coroação do pensamento acrítico, fundamentado numa aceitação dogmática da realidade cultural. Entretanto, por vezes, esse artifício linguístico nos indica algo para além do óbvio, visto conceder uma margem interpretativo-analítica sobre a qual se pode construir uma crítica que compreenda quais os discursos subjacentes e ocultos numa forma de se pensar.

Assim, utilizaremos uma metáfora como recurso cognitivo essencial para a compreensão de um dos valores internos do Mercado, qual seja, a ganância. Procedemos de tal maneira porque essa diretriz valorativa tem servido de justificação para os adeptos de diversos doutrinadores acadêmicos que examinam esse sistema: os economistas. Nada contra os economistas! Pelo contrário. Seus conselhos e prognósticos resolvem uma grande parte de nossos problemas (mas não todos). Assim, para demonstrar esse valor (ganância), vendido como um elemento axiológico da natureza humana, utilizaremos como instrumento uma obra cinematográfica: "Por um punhado de dólares".

Dessa forma, fazemos referência ao filme de faroeste italiano (spaghetti western), cujo título original é "A Fistful of Dollars" (1964), dirigido por Sergio Leoni e interpretado pelo ator norte-americano Clint Eastwood. A película, em si, não tem nada de muito interessante, se não fosse por um detalhe: ela revela um aspecto interessante sobre o Poder. Essa faceta manifestada é a facilidade com a qual um oportunista se aproveita de um contexto social conflituoso para auferir vantagens, diante de tal clivagem / divisão política. Representa, assim, um adágio popular: "a ocasião faz o ladrão". Essa seria uma denúncia do que ocorre entre o Mercado e a Política.

No bang bang italiano, o pistoleiro caçador de recompensas (Eastwood) encontra-se no interior do México, numa cidade dividida e sitiada por duas famílias rivais: os Rojos e os Baxters. A população encontra-se acuada por causa da violência perpetrada pelos integrantes dessas facções criminosas. O pistoleiro (no papel de anti-herói), utiliza o conflito entre dois grupos para pôr em prática seu plano de apropriar-se de um carregamento de ouro anteriormente roubado do governo mexicano e que se encontra na posse de um deles. Durante o planejamento e execução desse objetivo, nosso anti-herói proporciona uma espécie de libertação ao povo oprimido do vilarejo, acabando por matar cada um dos criminosos que aterrorizam a cidade e trazendo de volta o "equilíbrio natural" para o pequeno povoado mexicano. Ao final, monta em seu cavalo e segue seu rumo à próxima aldeota.

Então, você deve estar se perguntando: e o ouro? E o que diabos isso tem a ver com Política?

Se você tiver assistido o filme, percebe que o ouro desaparece da trama, tornando-se elemento narrativo inexistente. Isso se deve ao fato de que essa figura é apenas uma representação simbólica de algo muito mais precioso. O "ouro" que o forasteiro desejava roubar era nada mais nada menos que a identidade política daquele agrupamento humano. Nosso anti-herói apropria-se indiretamente do próprio povo, assumindo um dúplice papel: de verdugo-libertário, um símbolo, um ícone de uma nova instância de Poder.

O cowboy é, por assim dizer, a representação máxima dessa modernidade industrial, da especialização e do pragmatismo político, cuja promessa maior é a desconstituição das "tradições selvagens", sendo ele o mensageiro de uma promessa de libertação, mas que possui uma imoralidade própria, resultante de suas contradições internas/subjetivas: violência, avareza, ganância e pragmatismo. É representante impiedoso e misericordioso dessa modernidade. Ele exprime-se por meio de uma lógica de dominação de Mercado, e sua diretriz operacional é uma razão instrumental utilitarista que trabalha com dados matemáticos, econométricos, com precisões e probabilidades.

Voltando ao nosso ditado, "a ocasião faz o ladrão" apresenta um significado explícito e objetivo, que se converte na prática de uma conduta ilícita contextualizada: o furto ou roubo de algo que pertence a outrem, que os juristas traduzem pela locução "subtração de coisa móvel alheia"). Esse delito seria praticado diante de facilidades que uma determinada situação proporciona, visto que, em tese, as pessoas têm um comportamento ético adequado (decorrente de uma natureza?), até que surja um fator externo qualquer que as leve a cometer tal infração e quebrar o pacto social. Porém, se estendermos o significado da frase, poderíamos encontrar um fator interno e absolutamente subjetivo (talvez, natural?): diante de certas condições, o seu "ladrão interior" aflora e tem total legitimidade para se comportar de maneira anti-social. Haveria uma justificação implícita para o cometimento de ilícitos: a frase pressupõe que podemos cometer algum tipo de ilicitude, pois haveria algum tipo de perdão ou compreensão social, perante o contexto no qual nos inserimos e por força dos fatos que nos levaram a cometer um delito.

Como temos argumentado, esse imaginário possui uma lógica interna própria, qual seja, a hierarquização de princípios (valores humanos) por meio de critérios de utilidade, de acordo com uma relação racional entre valores e interesses. Como todo sistema, como se pode supor diante de um pensamento estruturalista, esses valores convivem harmonicamente, sem aniquilarem-se uns aos outros, mantendo as funções para as quais o sistema é criado. Porém, ao lado desses elementos objetivos, existe um critério subjetivo, muito importante na estratégia de funcionamento sistêmico: o individualismo. Esse é o sistema que guia o protagonista do Far West (faroeste).

Com efeito, para que essa estrutura (Mercado) se mantenha intacta, é necessário uma desarticulação do coletivismo, da noção de grupo e práticas culturais, por meio do fortalecimento exacerbado do indivíduo e sua ampla e irrestrita liberdade de escolha e ação. Assim como o pistoleiro, o indivíduo defensor dessas forças de mercado é esse ladrão que, diante dos diferentes contextos, opta por controlar ou liberar seus instintos, sendo uma espécie de criatura acima das leis e dos costumes, rizomático, transitório e desinteressado, que cativa nossos corações com sua forma desapegada e cínica de observar e interagir com o mundo. Ele é que é livre sem ser igual e, por revelar-se superior a nós, nos leva nossos problemas, exigindo em troca apenas nosso "ouro". É, para dizer o menos, um alienado: distancia-se dos demais, torna-se alheio ou indiferente aos outros. Ele é o "homem sem nome".

Esse vilão-benfeitor é, naturalmente esquizofrênico, por carecer de um fio condutor da normalidade social, haja vista que suas diretrizes são matemáticas, puramente lógicas e instrumentais. Mesmo revelando uma contradição no seu âmago, não é dialético per si, dependendo de intervenções constantes e suficientemente fortes para aquietá-lo, domá-lo. Essas intervenções, como externas, encontram-se sedimentadas na resistência social/coletiva que lhe impõe certos limites, freios e contra-pesos - porque nenhuma forma de Poder poderá ser absoluta numa Sociedade. E é por meio do Direito que se organizam essas normas que garantem e limitam a liberdade.

É diante dessas afirmações alegóricas que é possível explicar de que forma o imaginário social deposita sua confiança nas regras de convivência que compõem o Direito. As normas jurídicas, dispostas harmonicamente dentro de um sistema que lhes é particular, organizadas em outra estrutura, desempenham uma função geral e mais abrangente, consoante possuem outras finalidades, outros valores e uma topologia que lhes são próprias.

Os vértices jurídicos acumulam experiências cognitivas, pois têm o condão de preservar certas percepções orientadas pela necessidade de uma convivência comum, libertária, igualitária, solidária e dialogada. Embora tenham sido utilizados para acumular os mais torpes objetivos ao longo da História, sua atual operacionalização tem por escopo a defesa da humanidade (entendida como uma categoria mais ampla que a própria sociedade). Como todo instrumento social, ao contrário de outros instrumentos, sua operacionalização se faz mediante a avaliação entre normas justas e injustas, o que não sucede com as normas mercadológicas, que só podem ser avaliadas como úteis ou inúteis, adequadas ou inadequadas.

O controle que as normas jurídicas exercem sobre as normas de mercado reside ou brota da legitimidade que sobre elas é depositada. Essa legitimidade pode lhes revelar um exame interpretativo consentâneo ao sentimento de Justiça construído socialmente, ultrapassando as limitações de natureza quantitativa proporcionadas pela eficácia e pela validade -- embora sobre essas últimas exerça uma enorme influência. As normas do Direito são construídas pela cultura, pelas percepções identitárias, pelos sentimentos individuais e coletivos de pertença, e pelo necessário equilíbrio que a convivência exige da espécie humana: a harmonia entre interesses individuais e coletivos.

Esta é, ao fim e ao cabo, a importância (e o desafio) da constantemente renovada teoria do Direito: preservar a humanidade de suas próprias contradições. Ela proporciona a persistente readaptação dos preceitos normativos às necessidades sociais de convivência, ajudando o indivíduo a ser (viver) e a estar (conviver). Colabora na produção e aplicação de um conjunto de regras positivadas - postas para serem conhecidas e interpretadas pelo público -, informando o jurista a encontrar os meios adequados para a implementação de um arsenal teleológico.

É a teoria jurídica que orienta o investigador à compreensão de que não adianta "fazer a Justiça, mesmo que o mundo pereça". Porque o Direito é realidade social, devendo o jurista optar por decisões que preservem o meio social mesmo que, para isso, sejam exigidos sacrifícios da própria Sociedade. Na lista desses sacrifícios, por vezes, encontra-se o conflito entre o ter e o ser, ou entre o ser e o estar.

Se nada mais importar, a não ser os números, então tornam-se desprezíveis as normas, quer as jurídicas, quer as mercadológicas. Vê-se, pois, que o "nosso mundo" não é feito por números, nem somente por atos de pura Justiça. O mundo é composto de humanos, mas não só.