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sexta-feira, 12 de junho de 2015

A Lua, o Lar e a Cidade: ensaio sobre os espaços humanos

As noites de junho em Fortaleza podem ser bem românticas. O calor da cidade é abrandado pela brisa leve, que corre desde a praia rumo ao interior. Isso, por si só, já é grande vantagem, numa região que só tem dois tipos de clima: quente e muito quente. O céu, quase sempre limpo, ostenta a lua dos namorados e das serenatas solitárias, enquanto a urbanidade descansa da vida caótica do trânsito e do trabalho extenuante da "corrida de ratos".


Numa dessas noites aluadas, a conversa com a amiga, filósofa e analista política Sandra Helena de Souza fluía no compasso da contemplação do belo, no bairro Papicu, quando fui capturado por uma epifania: estamos mesmo vivendo em pequenas tocas, como roedores. Essa súbita e chocante constatação estava envolta no contexto do descanso e do silêncio proporcionados pelo prenúncio da madrugada e da percepção visual da paisagem local, cuja brutalidade dos prédios circundantes era quebrada pela pracinha mal cuidada e desprovida de verde, que nada mais era que uma promessa de tranquilidade abandonada pela municipalidade.

Esse meio ambiente (social e natural) e suas artificialidades nos põe a pensar sobre nós mesmos, sobre a nossa condição cidadã, notadamente no que se refere ao lar, à moradia e à municipalidade. É aterradora a percepção de que reproduzimos um modelo de uso e ocupação do solo que, além de desordenado, tem nos colocado em pequenas unidades habitacionais desprovidas do conforto presumido pela lógica da modernização e crescimento econômico. Se essa já era uma realidade para a camada miserável da população que ou mora nos agrupamentos humanos do Estado paralelo - favelas -, ou daquela que habita os rincões do Brasil - na caatinga, no sertão, no cerrado -, hoje, esse cenário faz parte da realidade de todo o agrupamento social urbano, independente da posição socioeconômica dos trabalhadores. Essa é a lei econômica que só encontra duas exceções, presentes quer na liberdade absoluta do homem que possui todo o mundo para si - na figura metafórica do mendigo ou do louco, que é o proprietário absoluto da cidade e do lixo que ela produz -, quer na liberdade regulada do homem que possui o poder de controle sobre a distribuição da riqueza produzida - na descrição denotativa da realidade racional do sistema produtivo -, ambas relacionadas à condição de homem fundamental do nosso liberalismo selvagem.  

A moradia - invadida (favela) ou comprada (bairro) - é apenas o reflexo material da nossa cultural dissociação do meio ambiente natural. O curioso é notar que a contrapartida para o trabalho honesto (que deveria ser decente para todos, mas não é, bem o sabemos!) é o comprometimento com um sistema econômico que nos impulsiona para o trabalho subordinado (e cada vez mais subalterno), cuja única recompensa é uma vida de trabalho até a morte (work until you drop dead) e cujo o único alívio para o endividamento que nos consome a vida economicamente ativa é o sono intranquilo em nossas pequenas unidades habitacionais. Esse descanso hermeticamente contido possui uma dicotomia intrínseca: do lado da favela, a insegurança absoluta, gerada pela pestilência decorrente da falta de saneamento do esgoto ao céu aberto e da falta de água tratada, do assassinato de crianças e jovens das minorias étnicas; do lado do bairro, a insegurança relativa, guardada pelas cercas elétricas e vigiada pelas câmeras de segurança, e o medo e o preconceito constante em relação à pobreza (enquanto categoria discursiva: tanto do ser, como do não-ter). Mas não há enganos: quando o rico vive circundado pela miséria, ele é apenas um miserável de sorte (e a sorte não dura para sempre!).

Devíamos viver na praça, como fazem os felinos: esse espaço em que a Lua ainda é de todos e todas, onde a brisa desalinha todos os cabelos, e no qual a amplitude da cidade adquire um novo significado. A praça é democrática: é tanto dos solitários, quanto dos enamorados; por meio da fuga da toca, torna-se o lugar onde os roedores tornam-se gatos pardos, em busca do seu locus na urbe, numa relação de co-dependência humana que deriva de nossa condição social ou capacidade de socialidade. Se a vida é em cubículos, é preciso se construir e preservar espaços comuns para se poder pensar fora da caixa. Somente na praça é que se pode falar a língua dos gatos. Miau.

***
Para Sandra.

quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

Hollywood e suas apostas na distopia

Um dos filmes mais curiosos lançados este ano (2013) foi "Elysium": drama de ficção científica, no qual a população mundial é controlada por um sistema político gerenciado por poderosas corporações. Esse gênero de ficção científica já é bem conhecido das audiências: inevitavelmente, o sistema de produção vigente (capitalista) leva a Sociedade (baseada num modelo cultural anglo-saxão) a uma necessária privatização total do Estado, num contexto de brutal escalada de violência e degeneração moral. Assim, há o protagonismo de cidadãos e cidadãs comuns (blue collars), antagonizados pela frieza de empresários e empresárias bem sucedidos (white collars).


Essa tensão discursiva, que tem por polos os "colarinhos azuis" como uma espécie de homo sacer, e os "colarinhos brancos" representando os bem sucedidos homo economicus, é uma tentativa de ambientação da platéia num contexto futurístico (campo imaginário), partindo da realidade atual (campo real). Esse futuro seria o resultado fatalístico da competição individualista, responsável pela destruição dos valores coletivos. Esses valores (campo simbólico), por sua vez, seriam os alicerces de um sistema, pertencentes aos regimes democráticos obliterados pelo consumismo e pelas leis exatas, inumanas e matemáticas dos mercados.

Seguindo no mesmo tom de "Elysium", existem diversas películas, dentre as quais merecem destaque: Alien (1979, 1986, 1997); "Exterminador do Futuro" (1984, 1991, 2003, 2009); "Robocop" (1987, 1990, 1993); "O quinto elemento" (1997);  "The Matrix" (1999, 2003.1, 2003.2); além da famigerada saga de Milla Jovovich em Resident Evil (2002, 2004, 2007, 2010, 2012); e o recente filme de Ridley Scott, "Prometheus" (2012). Porém, há uma ironia: todos esses filmes pertencem a grandes corporações, que investem nesse tipo de gênero (Sony Pictures, 20th Century Fox, TriStar etc). 

O que chama a atenção em "Elysium" é o fato de que há uma irrefutável clivagem entre ricos e pobres, numa sociedade futurística com tecnologia suficiente para criar novos mundos - ou estações espaciais habitáveis, como é o caso -, curar doenças e prolongar a vida da população indefinidamente, e construir meios de transporte ultra rápidos e eficientes. Mas, qual o cenário apresentado no filme? A população rica habita a estação espacial, gozando de todos esses benefícios, permanecendo aquartelada e protegida de qualquer tipode contato com a classe pobre. A maioria esmagadora da população mundial vive na miséria, sendo tratada brutalmente por policiais-robots, desprovida de todos os direitos, numa espécie de Estado Global falido. 

O filme é ácido: não há saúde, nem direitos aos trabalhadores. As pessoas da Terra vivem nos escombros do que outrora foram grandes e suntuosas cidades, cercadas pela poluição (melhor dizer, absoluta devastação ambiental) e sem instituições intermediadoras dos conflitos sociais. Ainda, apresenta o crime organizado como uma alternativa à ausência estatal e à brutalidade corporativa, como se ele fosse um ensaio popular diante de uma carência sócio-institucional. Porém, antes de querer arrumar suas malas e ir morar em Elysium, vale referir que os burocratas-corporativos, quer dizer, o corpo político responsável pela administração dessa grande Empresa Global, utilizam-se de forças militares convencionais (robots) e não-convencionais (mercenários), fazendo uso de golpe de Estado, abuso de autoridade e, enfim, tudo o quanto for possível para a manutenção do status quo e de seu enriquecimento imoderado e luxurioso.

Com certeza, pode-se afirmar que "Elysium" é uma dura crítica ao capitalismo financeiro e corporativista, concretizado nos últimos anos por políticas neoliberais. Todavia e ao contrário do que se possa imaginar, a crítica levantada pelo autor da obra é, antes, a favor de um conservadorismo e de um retorno às benesses de um sistema produtivo que tinha amparo e respaldo no individualismo iluminista e liberal de um Estado garantista. Sem querer antecipar o final da estória (spoiler alert!), a "revolução" impetrada pelos heróis não estabelece a eliminação das classes hierarquicamente superiores, nem a divisão de todos os bens sociais do trabalho. O desfecho da trama tão simplesmente se resume numa restituição: são devolvidos à população mundial aqueles direitos fundamentais que foram usurpados pelo grande capital transnacional e corrupto. Nada de revolução, nem propriamente uma reforma. Apenas restituição.

Como se poderia antever, seria bastante contraditório para a Sony Pictures ou qualquer outra grande corporação defender um posicionamento revolucionário (no correto significado do termo). Nesse gênero cinematográfico, a proposta é sempre conservadora, numa tentativa de redenção por meio da manutenção de um sistema de produção "livre" (no campo simbólico), mesmo que esse sistema não seja livre (no campo real).

É dizer: o grande alívio da platéia é constatar que os heróis e heroínas estão sempre à procura de remeter sua realidade futurística ao passado no qual se encontra a platéia, e isso, por si, seria libertário, exatamente porque redime a platéia de qualquer responsabilidade por esse futuro que está por se concretizar a qualquer instante. Mas libertário, sem ser emancipatório, exatamente porque somente os campos do real e do simbólico seriam transformados, haja vista a inexistência de uma promessa utópica (imaginário), que pusesse um fim definitivo à violência, à acumulação desproporcional e à desigualdade generalizada. Libertária porque se limita apenas à restituição das regras de um jogo competitivo, atávico e matemático, presente inclusive na personalidade dualística dos atores sociais - todos submetidos à lógica da violência, da ganância e da lei do mais forte.

Dessa forma, conclui-se que essa aposta de Hollywood em filmes que projetam cenários nos quais as sociedades vêem-se em um estado de calamidade generalizado (distopia) é, na realidade, uma ferramenta de controle muito bem organizada. Ela proporciona o ganho simbólico de redenção, na figura do herói (homo sacer) que se sacrifica em prol da continuidade do real (desta realidade), vingando-se dos anti-heróis (homo economicus). E isso só se torna possível diante da natureza dicotômica - profana e sagrada - desses heróis imaginários, cúmplices dos espectadores.

sexta-feira, 9 de agosto de 2013

Egoísmo e Individualismo: dois conceitos independentes.

Para algumas pessoas, a vida em Sociedade é um desafio duplo, pois lhes são cobradas não só o respeito às normas estabelecidas para a convivência mas, também, sacrifícios pessoais para a manutenção da teia social. Não existe outra forma de se colocar esse problema: na vida em coletividade, o egoísmo é uma patologia social, que afeta o equilíbrio e a organização sociais, prejudicando a formação das relações intersubjetivas duradouras e fragilizando as tentativas de comprometimento entre os indivíduos em prol de interesses comuns.

Entretanto, antes de avançar com essa discussão, é preciso relembrar um dado importante: egoísmo e individualismo são dois termos distintos, sendo necessário se estabelecer uma distinção preliminar, para que se possa avançar, no sentido de combater os discursos pró-egoísmo que têm se multiplicado na última década - deflagrados por um incremento da atual fase da sociedade de espetáculo, na qual a auto-indulgência e a procura pelo prazer têm desconstituído de valor o discurso humanista. 


O individualismo tem uma acepção especial nas Ciências Sociais: representa o renascer do homem frente à Sociedade, por meio da noção de que ele é um centro do qual emana dignidade. Esse conceito remonta ao Renascimento (aqui entendido como o ressurgimento da vida urbana no continente europeu), e se reafirma no Iluminismo (uma corrente filosófica contemporânea do surgimento do Estado de Direito e do pensamento liberal, que se opunham ao absolutismo), fazendo com que o indivíduo possa se opor ao coletivismo. Quer dizer, o individualismo surge como uma resposta dada ao aniquilamento do indivíduo perante à Sociedade. Defender esse pensamento, portanto, significa reconhecer o indivíduo como um núcleo moral inserido na coletividade. Em outras palavras, é entender que, embora havendo um organismo maior, que tolhe uma parte da liberdade individual, restará para o sujeito um espaço de liberdade tal que, respeitado, fará com que as potencialidades inerentes à pessoa humana possam florescer. Nesse sentido, o individualismo não nega a existência da coletividade mas, antes, reforça o comprometimento do indivíduo com a preservação das liberdades e garantias individuais, a par das coletivas.

Ao contrário, o egoísmo ou o "culto ao Ego" é uma patologia de natureza psicológica presente nos seres humanos, podendo causar sérios danos aos sujeitos envolvidos em relações sociais nas quais incidam esse comportamento. Durante o processo de aprendizado, da infância à fase adulta, o indivíduo vai superando a fantasia de que é o centro do mundo: dos primeiros passos, na socialização da Escola, ao trabalho, cada qual entende o seu papel nos diversos contextos da vida. Considerando que o egoísmo coloca os interesses do individuo em primeiro lugar e acima dos interesses de todos os outros membros do grupo, é correto dizer que para que haja engajamento social, é preciso haver egoísmo de baixíssima intensidade - a garantia de que a pessoa possa garantir os seus objetivos e projetos de vida e sua sobrevivência, por exemplo. Isso porque o egoísmo pode levar ao egocentrismo, no qual o indivíduo torna-se incapaz de estabelecer vínculos de empatia sem que, para tanto, haja uma compensação pessoal. Isto é,  para o egoísta, as relações somente se tornam possíveis diante de uma retribuição qualquer. Uma das patologias mais graves do egocentrismo é a psicopatia: o doente torna-se absolutamente incapaz de incorporar qualquer compromisso moral com qualquer membro da Sociedade.

Nesse passo, convém dizer que vive-se um tempo em que o egoísmo suplantou o individualismo: as relações intersubjetivas nos grandes centros urbanos e, principalmente, nos países "emergentes" (no passado, eram chamados de subdesenvolvidos), estabelecem-se  por meio das ferramentas tecnológicas que retiraram do contato humano um fator sensível: a sinestesia. Assim, cada vez mais infantilizadas pela diversão das tecnologias digitais, assiste-se à disseminação do egocentrismo em massa, que se multiplica à cliques de mause (mouse) e em "curtidas" nas redes sociais. 

Mas fica a pergunta: se todos fazem, que mal tem? Ou, frustrando uma película que andou em cartaz nos cinemas, "pagando bem, que mal tem"? O mal reside no fato de que, para que haja vida (e aqui tanto faz ser considerada como vida social ou vida natural) é preciso engajamento em atividades e projetos de interesse coletivo. Alguém pode argumentar: "tudo bem, tirando-se o egocêntrico, pode-se ser egoísta e cooperar em atividades de interesse comum". Esse argumento é parcialmente correto: falta incorporar nele a idéia de sacrifício ou akrasia - uma força exterior que faz o indivíduo agir contra seu melhor julgamento ou em desfavor de seus próprios interesses.

Pode-se fornecer, como exemplo, o soldado que se joga sobre uma granada, para salvar seus camaradas. Outra forma não menos heroica, o jovem estudante que protesta contra o corte de árvores numa reserva florestal, para preservar a natureza, sacrificando seu tempo e sua segurança. Ainda, a mãe que deixa de comer para alimentar seu bebê, e por aí vai. A História faz registro das atitudes individuais que, em sacrifício próprio, salvaram as vidas de centenas e, em alguns casos, milhares de pessoas. Na era digital, o apelo à diversão exerce uma influência negativa direta sobre o engajamento de pessoas em atividades coeltivas e sinestésicas, quer dizer, em atividades sociais nas quais ocorra a sinestesia.

Portanto, o saudável equilíbrio social precisa de uma dose de individualismo e uma outra de coletivismo. Embora essa questão venha sendo discutida a pelo menos dois séculos, sem que tenha havido qualquer experiência social perfeita, é plenamente possível equilibrar a equação indivíduo-Sociedade. A solução, longe de ser jurídica, econômica ou propriamente "científica" é, acima de tudo, sensorial: apela ao âmago do ser, aos sentimentos e, enfim, à empatia.


Dedico este texto aos meus amigos: Amélia R. Soares, Henrique B. Frota, Andréia Costa Castelo Branco Sales, Erika Menezes e Juliana Freitas Ferreira. Obrigado pelo bom exemplo.

sábado, 12 de março de 2011

Pois que venha a onda

Nos acostumamos com a ideia de que controlamos tudo: o nosso tempo, a ordem social, o semelhante. Imaginamos que tudo o que existe está a nossa disposição: os recursos naturais, o cosmos, a vida alheia. Sempre nos ocupamos com essa obsessão do domínio sobre o real, e nos iludimos e temos espanto quando a realidade dá-nos notícia de seu curso próprio, de suas forças inerentes e inexoráveis, imponderáveis.


Vivemos a era do desperdício e do exagero. Lançamos milhões de toneladas de lixo no ar, com nossos veículos potentes e confortáveis. Poluímos os recursos hídricos com esgoto doméstico e industrial, além de consumirmos água para além de nossas necessidades vitais e básicas. Desperdiçamos comida suficiente para alimentar toda a humanidade. Consumimos o solo e o subsolo como se esses recursos fossem ilimitados. Sujamos até o espaço sideral, com lixo das nossas andanças ultraterrenas, lançando espaçonaves e detritos para além dos limites terrestres. E pensamos que todas essas atitudes e feitos estão sob nosso controle.

Ledo engano. Existem limites e um equilíbrio inerentes a nossa existência. Somos um acaso, uma fatalidade e um infortúnio no Universo que nos cerca, sendo mesmo necessário tormarmos consciência dessa situação frágil que é a nossa existência. É preciso controlar essa ânsia e essa fé no progresso, porque para além da Ciência está a nossa incapacidade de compreender todos os fatores e variáveis que condicionam a nossa sobrevivência.

Isso não quer dizer que tenhamos que fazer uma apelo ao sobrenatural. Nem que toda a técnica é desnecessária ou somente prejudicial aos seres humanos. Essas são, também, conclusões precipitadas. O que importa é saber que somos visitantes, ou uma improbabilidade que "deu certo", numa equação bem mais complicada do que a nossa "vã filosofia" pode imaginar. Ser e estar são verbos a serem ainda descobertos pela humanidade, que precisa aprender a controlar não a natureza, mas os seus impulsos e a sua impetuosidade.

Não podemos prever todos fenômenos, pois eles existem independentemente de nós. Temos que compreender que a vida existe como uma acontecimento inesperado, voltando nosso olhar para o imprevisível, ao caos que, direta ou indiretamente, condiciona as nossas vidas, preparados para o pior e dispostos a manter viva a chama da esperança. O que não significa que podemos ocupar todos os espaços disponíveis, mas apenas o que é vital, razoável e possível.

Na condição de visitantes, temos que cuidar desta nave espacial que ocupamos, porque é a nossa única morada viável. Não existe outro lugar disponível para nossa existência, nem nossa tecnologia é suficiente para a ocupação de outro lugar. Se não soubermos utilizar os recursos que estão a nossa disposição, compartilhando-os, melhor é que venham várias e todas as ondas, e nos lavem da face da Terra, como uma sujeira indesejável ou um fungo malicioso que insiste em destruir este habitáculo.

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

No limite da ação ainda está o pensar (?)

Como estabelecer critérios valorativos que indiquem como o devir das relações humanas deve se estabelecer? Eis uma pergunta que é abordada não só pelas pseudo-ciências (Direito, Sociologia, Economia etc), mas como aquelas áreas do saber humano que têm a pretensão de explicar o inexplicável e impenterável (Filosofia e Religião).

Lamento muito ter colocado a Filosofia no mesmo plano da Religião. Também sinto que fiz mal quando chamei o Direito e a Sociologia de pseudo-ciências. Mas não me importo ou me arrependo, exatamente porque penso que essas nomenclaturas servem apenas para assegurar espaços controlados de produção do saber e do saber-fazer. São formas bem estruturadas de controle social, criadas para "tornar possível" a convivência humana em Sociedade - daí porque podem facilmente serem chamadas de "ferramentas" ou "instrumentos" de controle social.

Como toda ferramenta, o objeto terá sempre a finalidade escolhida pelo sujeito. É dessa forma que um martelo tanto pode ajudar na construção, como pode ser utilizado como uma arma. Da mesma maneira, Direito, Sociologia, Filosofia, Religião, Governo, Estado (etc) são todas ferramentas à disposição do ser humano para controlar, regular, normatizar, esturutar, moralizar a Sociedade na qual se vive. Em tese (thesys = convenção), essas estruturas deveriam estabelecer regras de pacificação e realização de Justiça, conformar e confortar as pessoas, trazer segurança. Isso porque a finalidade desses "utensílios" liga-se à origem (ou princípio) para o qual cada ferramenta é criada. Entretanto, muita gente se espanta diante de uma inapetência dessas estruturas de controle social em concretizar esses desejos "ideais".

Ocorre que, não se trata de um problema teleológico ou finalístico, mas de um problema axiológico ou valorativo. A incompetência do sistema de idéias estruturados pela Filosofia e do desvio moral da Religião, ambos alienados diante da razão instrumental da Lei do Mercado, fizeram com que o Direito e a Sociologia se tornassem fontes de justificação para a a-moralidade na qual a humanidade está hoje submersa. Sem nenhum tipo de julgamento diante da bipolaridade e relatividade dos valores, a razão instrumental substituiu a razão crítica naquilo que poderia ser emancipatório à humanidade: a crítica.

Criticar, além de inútil, pode ser contra-produtivo, ineficiente e perigoso. Isso porque os processos estruturados nas atuais Sociedades da Informação Digital têm que ser executados instantaneamente, sem demoras, sem reflexão. Tudo isso torna a crítica e a reflexão entraves à "evolução" e "repetição" das Sociedades pós-industriais. A pouco, fiz menção à atual incapacidade filosófica no agir, mas gostaria de relembrar o ensinamento de Gramsci acerca do "Bom Senso": atividade dos teóricos e de todos os Humanos, no sentido de encontrar novas formas de viver e conviver. Nesse aspecto, agir com bom senso seria a nova atitude filosófica, mas um "agir" engajado, com finalidades, com objetivos claros, contra a apatia e a inércia da Sociedade da Informação Digital e do Consumo.

Dessa maneira, os pensamentos pseudo-científicos encontram-se numa encruzilhada interessante. De um lado, eles só têm utilidade se forem direcionados ao controle de riscos, à criação de novas formas eficientes de controle e, principalmente no caso da Sociologia e Economia, se servirem de anteparos (muito bem remunerados!) aos interesses dos grupos que se beneficiam diretamente da destruição do Natural (Sociedade e Natureza). De outro lado, só eles têm o condão de elevar o Homem ao estado de revolução-emancipação no fazer, no viver e no agir-decidir, pois podem ser efetivamente estruturados por uma forma de pensar, quer religiosa, quer puramente filosófica-moral, que seja capaz de entender o Homem e o Meio como algo uno; o Mundo como algo integrado e integrador.

Ademais, fico impressionado com a incapacidade da Filosofia em se insurgir diante dessas novas formas de opressão do pensar... exatamente porque a sua "atitude" tem sido a omissão (posto que sua preocupação não é o "agir", como atestam os expoentes desse saber). A Filosofia estrutura o pensar e, consequentemente, é meio "para ensinar", para estruturar o saber e o saber-fazer. Ela foi a responsável pelo pensamento sistematizado, orientado à solução de problemas cruciais à existência humana, com vistas à percepção da Realidade... Enfim, pensar, pensar, pensar, antes de agir.

Portanto, esses critérios valorativos têm que ser estruturados por meio de premissas. Sem querer estabelecer uma lista, nem muito menos esgotar o assunto, devemos estabelecer essas premissas, a partir da nossa própria existência (contemplativa, reflexiva e crítica), para que possamos pensar numa Nova Moral. Uma dessas premissas seria considerar uma só comunidade, uma unidade: uma Humanidade. A aceitação das diferenças seria outra premissa - mas a diferença na igualdade. Dito isso, a co-dependência e impossibilidade de domínio existentes entre o Meio Natural e o Meio Social. A partir daí, podem-se construir e defender (!) os valores para este Século.

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

Em defesa do meio ambiente

É muito triste ter que desviar nossa atenção às desgraças do mundo, mas penso que existem certos problemas que não podem ser ignorados. Um desses que tem chamado a atenção mundial tem sido o conjunto de alterações climáticas que ameaçam a estabilidade da vida no planeta.

Pelo fato de não haver mais predadores que de forma efetiva ameacem a vida humana, o ser humano tornou-se “senhor absoluto” da biota – embora esteja sujeito aos “acidentes” de vária ordem, como as doenças, ou coisa parecida. Vencidas as adversidades naturais com a ajuda dos aglomerados urbanos, o Homem segue multiplicando-se e colonizando cada pedaço do globo.

Entretanto, a natureza possui recursos limitados e riposta. Um dos melhores exemplos a ilustrar isso é-nos dado pelas recentes enchentes no Sudeste brasileiro. Aquilo não é uma catástrofe, senão uma consequência natural do desmatamento e ocupação predatória do solo, para não falar do aquecimento como um fenómeno planetário.

Diante desses “desafios”, queda-se inerte a Sociedade humana. A despeito de ser refratário a ideia de urgências e emergências e grande corolário do debate e da discussão perene, sou levado a crer que medidas imediatas devam ser tomadas. Isso porque, dentro de poucos anos, o desequilíbrio gerado pela ação humana pode se tornar irreversível. Todavia e talvez, seria mesmo bom remédio deixar que o ser humano destrua todos os ecossistemas. Porque, então, desapareceria da Terra um dos piores bichos que cá habitou.

As soluções são variadas: uso apropriado dos recursos energéticos, melhor aproveitamento dos solos, desenvolvimento de novos modelos de economia familiar e sustentável etc. Várias ações combinadas podem representar uma solução viável para conter o aquecimento global e a destruição da natureza. O problema, então, é político, e só poderá ser verdadeiramente resolvido quando os dirigentes dos países poluidores se comprometerem a adotar o conjunto de ações já propostas e discutidas por cientistas das mais variadas áreas do saber humano.

A vida sempre encontrará uma maneira de renascer – os dinossauros que o digam. O planeta, enquanto estrutura de sustentação dessa vida “em abstrato”, continuará a existir. Pena. Temos uma casa tão bonita...

terça-feira, 4 de novembro de 2008

O meio ambiente da corrupção no Ceará

Os livros de História já ilustram o perfil predatório da ocupação do solo no Brasil. De Pedro Álvares Cabral ao Governo Lula, do litoral à floresta, do sertão da catinga ao pantanal, colonizadores e colonos substituem-se na atividade que tornou "viável" a ocupação do território brasileiro: a depredação dos recursos naturais. 

Nesse contexto, a história do Município de Fortaleza (CE) não é diferente. De todos os lados, surgem relatos sobre a devastação de reservas ambientais: a destruição das dunas da Praia do Futuro; a desmatação do manguezal do Rio Cocó; urbanização e poluição da Beira Mar, etc. O que se passa na Capital também ilustra o que ocorre no resto do Estado: urbanização da Lagoa do Banana; depredação de Jijoca e Jericoacoara; a destruição das reservas florestais da Serra da Ibiapaba, Ubajara, Maranguape, etc. Esta semana, a "Operação Marambaia" da Polícia Federal levou à captura de meia dezena de funcionários públicos que estariam envolvidos em esquemas imobiliários irregulares e ilegais (leia mais aqui).

A depredação ambiental enriqueceu e continua a garantir o enriquecimento ilícito de diversas pessoas que trabalham no setor imobiliário cearense. Não são poucas as histórias de pessoas que aumentaram seu patrimônio de maneira exponencial às custas da natureza, e também não é de hoje que a Sociedade cobra ações concretas e eficientes na proteção ambiental. Ao que tudo indica, a única forma viável de crescimento econômico é a utilização indiscriminada e insustentável do meio ambiente. Diretamente proporcional à destruição do meio ambiente está a ação corrupta/criminosa de represetantes e agentes públicos - daqueles que teriam a incumbência de gerir a coisa pública e, especificamente, o patrimônio ambiental.

Entretanto, pouco ou nada se falou acerca dos corruptores, isto é, dos empresários e particulares que financiaram esses esquemas e, consequentemente, obtiveram os alvarás e autorizações para construir seus empreendimentos nas zonas ecológicas protegidas. Dessa forma, ainda há trabalho por fazer. É evidente que as autoridades públicas devam ser responsabilizadas (civil, criminal e administrativamente). Mas também é preciso que a Polícia Federal amplie suas investigações, para que todas as corretoras e imobiliárias que estiveram envolvidas nesses esquemas criminosos sejam devidamente processadas e julgadas. 

Finalmente, no julgamento da culpabilidade desses atores anti-sociais, as penas aplicadas devem ser conter elevadas multas, além de outras sanções, não só para desencorajar a reicidência, mas para impedir que essas pessoas voltem a exercer a atividade econômica em questão. A pergunta é: a cultura jurídica cearense estará à altura desse desafio?

sexta-feira, 16 de maio de 2008

O cidadão emudecido e o capitalismo surdo

Nos últimos meses, tenho me debruçado sobre o discurso neoliberal, de forma exaustiva, tentando identificar aquilo que o torna "neo" em função do liberalismo dos séculos XIX e XX. Embora, à partida, tenha pensado que não haveria nada de novo, logo fui levado a concluir que estava redondamente enganado. Apesar disso, pude constatar que alguns resultados sociais dessa nova "política" são semelhantes aos da velha, embora os espaços e as dinâmicas sejam diferentes. Senão, vejamos.

O liberalismo tinha por sustentáculo inicial a idéia de Estado-nação e a unidade social. A partir daí, o controle social se dava em nível interno e, só depois, partia rumo à dominação de outros povos. Assim, o poder era assegurado em nível local, através da prática burguesa de controle da propriedade privada e de duas formas de divisão: a divisão do trabalho e a de classes. Dessa forma, pode-se afirmar que não havia um projeto liberal, mas vários: norte-americano, inglês, francês, alemão etc.

Nesse aspecto, o neoliberalismo atingiu uma escala global; superada a competição irracional entre as burguesias nacionais, essas propagam alianças na partilha de recursos e mercados comuns. Ora, o modelo anterior era falível exatamente porque a competição desenfreada levou ao esfacelamento do mercado interno - guerras -, fazendo com que novas super-potências despontassem no cenário mundial, oriundas de países que antes ocupavam posição subalterna no sistema mundo de produção: China, Índia, Rússia e outros. Interessante observar que, dentre esses vários países, alguns deles fazem uma estratégica "mudança política", com a rápida formação e mais rápido ainda fortalecimento de suas burguesias internas que, após a liberalização ou "abertura", passam a operar em nível global.

Quanto ao sistema ideológico, o propaganda model liberal recebeu uma nova roupagem: globalizou-se com a ajuda das novas tecnologias de informação e, ao invés de valer-se da censura, passou a utilizar um monólogo, isto é, ao invés de combater e revidar os discursos emancipatórios (ou reformistas, ou revolucionários), pregou o fim de todas as ideologias e, com elas, o capitalismo global como síntese histórica da humanidade. Além disso, se a Internet é democrática, porque possibilita a livre expressão, é caótica, ao ponto de fragmentar os grupos e discursos já suprimidos - para não dizer que os tais "portais" são, acima de tudo, uma tentativa de centralizar a produção do saber e da cultura.

Outra questão relevante a ser pensada é a forma imperial do neoliberalismo. À semelhança de seu "ascendente", o neliberalismo também é hegemônico, ou seja, arvora-se em realidade absoluta fora da qual nada existe: tudo deve ser submetido às leis de mercado, à lógica da Economia e à submissão ao Direito. Nesse aspecto, a democracia representativa de baixa intensidade e indireta configura-se como o único sustentáculo do sistema (afinal, é!) e todas as formas de contestação devem ser tratadas como "caso de polícia" ou "assunto de segurança nacional", ou seja, não há diálogo social, nem expressão contestatória que resista aos imperativos do trinômio Lei-Economia-Acumulação.

Ao repensar isso tudo, sou levado a dizer que o monólogo neoliberal (legalista, científico, acéptico e aético) é algo que prejudica a saúde, simplesmente porque revive um cenário mundial de injustiças, exploração e violência, sem que seja possível articular qualquer plano ou ação que se contraponha à sua força e poder ilimitado.

Pensando melhor, talvez seja por causa dessa megalomania que o sistema entrará em colapso: é omnisciente apenas de si, sua omnipresença é inerte e alheia ao sofrimento humano, e sua omnipotência tem por limites a sustentação da vida humana na Terra. Por enquanto, nossa história segue seu rito, num diálogo entre Afrodite e Tifão.

terça-feira, 8 de abril de 2008

"Nem tudo o que reluz é verde" - Por Boaventura de Sousa Santos

(Publicado na Visão em 25 de Outubro de 2007)

"A questão ambiental entrou finalmente no discurso público e na agenda política, o que não deixa de causar alguma surpresa aos activistas dos movimentos ecológicos, sobretudo àqueles que militam há mais tempo e se habituaram a ser apodados de utópicos e inimigos do desenvolvimento. A surpresa é tanto maior se se tiver em conta que o fenómeno não parece estar relacionado com uma intensificação extraordinária da militância ecológica. Quais, pois, as razões?

"Ao longo das últimas quatro décadas, os movimentos ecológicos foram ganhando credibilidade à medida que a investigação científica foi demonstrando que muitos dos argumentos por eles invocados se traduziam em factos indesmentíveis – a perda da biodiversidade, as chuvas ácidas, o aquecimento global, as mudanças climáticas, a escassez de água, etc. – que, a prazo, poriam em causa a sustentabilidade da vida na terra. Com isto, ampliaram-se os estratos sociais sensíveis à questão ambiental e a classe política mais esclarecida ou mais oportunista (ainda que por vezes disfarçada de sociedade civil, como é o caso de Al Gore) não perdeu a oportunidade para encontrar nessa questão um novo campo de actuação e de legitimação.

"Assim se explica o importante relatório sobre a "conta climática" de um economista nada radical, Nicholas Stern, encomendado por um político em declínio, Tony Blair. Neste processo foram "esquecidos" muitos dos argumentos dos ambientalistas, nomeadamente aqueles que punham em causa o modelo de desenvolvimento capitalista dominante. Este "esquecimento" foi fundamental para a segunda razão do actual boom ambiental: a emergência do ecologismo empresarial, das indústrias da ecologia (não necessariamente ecológicas) e, acima de tudo, dos agrocombustíveis cujos promotores preferem designar, et pour cause, como biocombustíveis.

"As reservas que os movimentos sociais (ambientalistas e outros) levantam a este último fenómeno merecem reflexão tanto mais que, tal como aconteceu antes, é bem provável que só daqui a muitos anos (tarde demais?) sejam aceites pela classe política e opinião pública. A primeira pode formular-se como uma pergunta: é de esperar que as indústrias da ecologia resolvam o problema ambiental quando é certo que a sustentabilidade económica delas depende da permanente ameaça à sustentabilidade da vida na terra?

"A eficiência ambiental dos agrocombustíveis é uma questão em aberto que, aliás, se agravará com a "segunda geração de agrocombustíveis" que, entre outras coisas, inclui a introdução de plantas (árvores) geneticamente modificadas. Por outro lado, a produção dos agrocombustíveis (cana do açúcar, soja e palma asiática) usa fertilizantes, polui os cursos de água e é já hoje uma das causas da desflorestação, da subida do preço da terra e da emergência de uma nova economia de plantação, neo-colonial e global.

"A segunda reserva está relacionada com a anterior e diz respeito ao impacto da expansão dos agrocombustíveis na produção de alimentos. No início de Setembro, o bushel de trigo (cerca de 36 litros) atingiu o preço record de 8 dólares na bolsa de mercadorias de Chicago. Más colheitas (derivadas das mudanças climáticas), o aumento da procura pela China e a Índia e a produção de agrocombustíveis foram as razões do aumento e a expectativa é de que a subida continue.

"O aumento do preço dos alimentos vai afectar desproporcionalmente populações empobrecidas dos países do Sul, pois gastam mais de 80% dos seus parcos rendimentos na alimentação. Ao decidir atribuir 7,3 biliões de dólares em subsídios para a produção de agrocombustíveis, os EUA produziram de imediato um aumento (que chegou a 400%) do preço do alimento básico dos Mexicanos, a tortilla. Reside aqui a terceira reserva: os agrocombustíveis podem vir a contribuir para a desigualdade entre países ricos e países pobres. Enquanto na UE a opção pelos agrocombustíveis corresponde, em parte, a preocupações ambientais, nos EUA a preocupação é com a diminuição da dependência do petróleo. Em qualquer dos casos, estamos perante mais uma forma de proteccionismo sob a forma de subsídios à agroindustria, e, como a produção doméstica não é de nenhum modo suficiente, é, de novo, nos países do Sul que se vão buscar as fontes de energia. Se nada for feito, repetir-se-á a maldição do petróleo: a pobreza das populações em países ricos em recursos energéticos.

"O que há a fazer? Critérios exigentes de sustentabilidade global; democratização do acesso à terra e regularização da propriedade camponesa; subordinação do agrocombustível à segurança e à soberania alimentares; novas lógicas de consumo (se a eficiência do transporte ferroviário é 11 vezes superior à dos transportes rodoviários, porque não investir apenas no primeiro?); alternativas ao mito do desenvolvimento e numa nova solidariedade do Norte para com o Sul. Neste domínio, o governo equatoriano acaba de fazer a proposta mais inovadora: renunciar à exploração do petróleo numa vasta reserva ecológica se a comunidade internacional indemnizar o país em 50% da perda de rendimentos derivados dessa renúncia."

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Boaventura de Sousa Santos: Doutorado em Sociologia do Direito pela Universidade de Yale (1973). Professor Catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, Distinguished Legal Scholar da Universidade de Wisconsin-Madison e Global Legal Scholar da Universidade de Warwick. Director do Centro de Estudos Sociais da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra. Director do Centro de Documentação 25 de Abril da Universidade de Coimbra. Director da Revista Crítica de Ciência Sociais.

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2008

Erro de projeto: Parque de Feiras, no Ceará

O governo do Estado do Ceará, encabeçado por Cid Gomes, está em vias de cometer seu primeiro grande erro político. Trata-se da construção do pavilhão de feiras de eventos do Município de Fortaleza, Estado do Ceará que, embora seja construção mais que necessária, não está respeitando os estudos de impacto ambiental e social que clamam por uma escolha mais razoável da localização do complexo de prédios em questão.

Com efeito, o Governo solicitou um estudo técnico para a construção que, após ter custado US$ 1 milhão, orientou a administração pública a construir os prédios no Poço da Draga, região próxima ao centro cultural Dragão do Mar. Sim, somente o estudo custou um milhão de dólares. Entretanto, algumas considerações devem ser efetuadas sobre este assunto. Primeiro, quando existe uma soma vultosa de investimentos estatais, não existe erro de projeto; existem interesses econômicos que costumam favorecer determinados grupos de pressão (lobistas). Segundo, os investimentos estatais devem ser feitos de forma coerente (do ponto de vista econômico), mas precisam respeitar outras normas e interesses sociais e, neste caso, sócio-ambientais. Isso para dizer que deslocar o Parque de Feiras às adjacências do bairro Edson Queiroz demonstra o claro e inequívoco objetivo de aumentar o valor venal dos imóveis comerciais e residenciais que ali estão instalados.

Por tudo isso e mais alguma coisa, fica aí um recado: já havia chegado a hora de haver maior transparência e lisura nos projetos estruturais no Estado do Ceará. Este tipo de atitude só vem a reforçar a crítica de que os dirigentes estatais agem desvinculados das reais carências e impedimentos racionais associados; isso revela as atitudes "de agenda" que se incorporam às atividades de incentivo e desenvolvimento que se requerem dos agentes públicos.

sábado, 8 de dezembro de 2007

Direitos dos animais

As melhores lições teóricas acerca do Direito nunca vêm da Academia, mas do processo criativo humano, da experiência social - o Direito vivo. Quem não lembra das teorias positivistas e das tentativas jusnaturalistas de definição do que é o Direito? Quase tod@ alun@ de Direito é confrontado com essas questões, mas da teoria à prática passa-se muita coisa, e a mais curiosa delas é a atribuição de direitos aos animais.

Em que pesem as lições dos acadêmicos, quanto à natureza da norma jurídica e o ser humano como destinatário de direitos, existe cada vez mais aceitação de que não é apenas o ser humano que é alcançado como sujeito de direitos, isto é, alguns autores e muitas vozes têm defendido cada vez mais a extensão do âmbito de proteção normativo às coisas; a idéia central é, não mais considerá-las como bens jurídicos, completamente à disposição do Homem. Assim, não só o meio ambiente mas as gerações futuras também podem ser sujeitos com direitos a serem protegidos pelo ordenamento jurídico. O único entrave à concretização desse objetivo reside no exercício, concretização ou defesa desses direitos que, logicamente, só podem ser perseguidos e concretizados através da inteligência humana. Essa gama de direitos, nomeadamente os direitos difusos, serve como limite jurídico ao apetite voraz e destruidor da ação humana no planeta.

Ora! Não passa de mera divagação teórica e uso ideológico do Direito não permitir que a Natureza deixe de ser considerada uma coisa (exp. jur.). Isso de certa forma já é conferido às empresas, como alude uma interpretação constitucional da Corte Suprema dos Estados Unidos da América, que confere alguns direitos civis às pessoas jurídicas. Essas têm interesses jurídicos e atuam mediante representantes; são, portanto, sujeitos de direitos e deveres, podendo contrair obrigações, no presente e no futuro.

No mesmo plano, os direitos dos animais voltam-se ou, dizendo melhor, constituem-se em deveres em relação aos seres humanos; os semoventes não podem (ou não deveriam) ser submetidos a tratamento cruel, nem deveriam simplesmente servir aos interesses meramente econômicos das "sociedades-de-fetiche". É bem claro que existe uma relação de co-dependência entre humanos e outros animais, na estrutura de uma cadeia alimentar e na preservação do equilíbrio ambiental. Mas há outros "usos" que não são apenas desnecessários, como poderiam ser facilmente evitados, como é o caso da pesca do tubarão, nos mares do Japão (do qual se extraem apenas as barbatanas), e das focas, no Círculo Polar Ártico.

Mas, criticamente (e com ar pessimista), pensar tudo isso é grande bobagem. Porque décadas atrás positivaram-se direitos humanos, e a barbárie e a carnificina humana continuam ao redor do mundo... O que me leva a pensar na frase que ouvi anos atrás, em tom de piada: "Quanto mais conheço as pessoas, mais gosto dos animais".

segunda-feira, 12 de novembro de 2007

Tributos e o meio ambiente

É dever de toda pessoa preservar o meio ambiente. Isso é inquestionável. Entretanto, alguns grupos e uns poucos acadêmicos e "burocratas de plantão" parecem gostar de abusar da inteligência dos outros, quando o assunto é meio ambiente. Digo isso porque me deparei, hoje, com a seguinte enquete da BBC|Brasil: "Você concordaria em pagar mais impostos para melhor proteger o meio ambiente?"

Bem. A pergunta é bem elaborada porque, de uma forma ou de outra, todos nós somos responsáveis pela poluição e destruição ambientais, porque consumimos os produtos que são fabricados pelas empresas poluidoras. Mas o que parece estúpido é achar que qualquer cidadão pagará diretamente ao fisco uma taxa ou imposto de proteção ao meio ambiente. Na realidade, até pagará, mas indiretamente, isto é, as empresas é que devem ser tributadas e, assim, o "prejuízo" será repassado aos consumidores, através do aumento do preço das mercadorias. Essa é a fórmula tradicional que revela ou explicita a inflação real; tributar o cidadão é forma de mascarar tanto a responsabilidade dos empresários, quanto a falta de políticas públicas eficazes de proteção ao meio ambiente. Necessário é fiscalizar e punir os infratores - legislação para isso não falta.

sábado, 10 de novembro de 2007

O Brasil , a OPEP e o meio ambiente

A descoberta de novas jazidas de hidrocarbonetos no Sudeste do Brasil parece ter elevado a "moral" do Itamaraty além dos limites. Embora as reservas brasileiras em petróleo e gás natural tenham-se elevado em 60%, convém dizer que é demasiadamente cedo para que o Palácio do Planalto arvore-se como membro da OPEP, porque a lógica do mercado de combustíveis demonstra que um grande consumidor (que tem deficit no abastecimento do mercado interno) pode ter dificuldades tremendas de ser um grande exportador e, consequentemente, de conseguir influenciar o preço do crude no mercado internacional.

Ainda, convém lembrar que vive-se num período de peak na extração do petróleo; grandes mercados, como o europeu, já praticam vultosos investimentos em novas tecnologias energéticas, sendo o hidrogênio a verdadeira aposta no médio prazo. O petróleo foi o combustível do século XX, mas a sua extração já atingiu custos que tornam cada vez mais cara a sua extração; seja proveniente dos desertos do Oriente Médio, ou do solo africano, seja retirado das plataformas continentais, o crude tem os dias contatos no que diz respeito ao abastecimento dos grandes centros mundiais. A Europa, por exemplo, já tem vários outros projetos relacionados à produção de energia (eólica, das marés, solar e etc.), tendo desistido de todos os planos de investimento industrial no óleo bruto; o uso do petróleo é condenado pelo excesso de emissão de monóxido de carbono e pela dependência estratégica em relação aos países produtores desse combustível - os europeus procuram fontes de energia limpa e sócio-economicamente viáveis. Por outro lado, os E.U.A. continuam a utilizar o "ouro negro", por disporem de uma estrutura econômica e militar completamente dependente deste produto; anualmente, o sistema financeiro norte-americano dirige uma soma astronômica à "indústria da guerra", tornando possível as ações militares no Oriente Médio, necessárias ao abastecimento energético deficitário yankee.


Dessa forma, a pretensão brasileira - de incluir o Brasil na OPEP - é, antes de tudo, um erro estratégico. Além do mais, a idéia de que o Brasil poderia influenciar uma desejada queda do preço do barril no mercado internacional está limitada pelo crescimento do consumo interno e pela escassez do produto. Entretanto, considerando as últimas altas no preço desta commodity, parece que os economistas brasileiros estão ansiosos em sacrificar o preço dos combustíveis no mercado interno, almejando o aumento das exportações nacionais e, consequentemente, um superavit na balança comercial - o que pode ter efeitos negativos na formação do mercado interno e no crescimento industrial brasileiro.
  • Uma última nota
Festejar o biocombustível é digno de reprimenda. Como bem indicam os analistas, os efeitos nocivos (sociais e ambientais) desse tipo de produção superam as benesses que porventura possam advir de seu emprego. A uma, porque a quantidade de solo requerido para a produção dos mesmos afetará o uso apropriado da área agricultável - gerando mais devastação florestal e acarretando o uso abusivo dos solos. A duas, porque dará continuidade a existência dos latifúndios, fazendo com que a produção agrícola sustentável e minifundiária/familiar seja descartada dos planos governamentais. Finalmente, nenhum país deve apostar numa única via para suprir suas carências energéticas.

Além da combinação de diversas fontes energéticas, de acordo com as potencialidades de cada região, deve-se ter em mente que, um plano global de uso racional da energia tem que levar em consideração tanto o consumo racional e tecnologicamente apropriado (industrial e particular), quanto a limitação dos danos ambientais (potenciais e efetivos) que venham a ser detectados.

domingo, 15 de julho de 2007

A pena azul do tucano do Cocó

Era uma vez, num reino distante, um Monarca muito imponente e ambicioso. Ele era conhecido por sua avassaladora paixão: todas as vezes que se apaixonava por algo, fazia de tudo para submetê-lo ao seu controle, a todo custo.

De tanto ouvir as histórias de belezas e de liberdade nas florestas, cantadas por seu menestrel - um poeta e "cientista das palavras", que falava em língua de kari'oca -, o Rei criou uma imensa curiosidade sobre a liberdade dos pássaros. Então, mandou construir um enorme palácio nas margens de um mangue, para que pudesse ouvir o canto dos bem-te-vi mais de perto, quando viesse passar férias numa das mais lindas praias do seu reinado... Foi lá que ele encontrou, pela primeira vez, o tucano azul do Cocó.

Obcecado pela beleza daquela ave, apaixonou-se pelos tucanos azuis. E não descansou enquanto não conseguiu capturar a todos; nessa tarefa, destruiu toda a floresta, eliminando com ela todos os animais que ali haviam...

O meio ambiente compreende a natureza (biodiversidade) e o meio social (sociedade); é nele que o solo e a água custam tão caro ou são inacessíveis; e constitui crime a sua ocupação sem a devida permissão do proprietário... e aonde a natureza vai desaparecendo aos poucos. Assim como naquele pequeno conto, e assim como no passado, a natureza ainda é tratada como um bem de consumo. Desde a exploração, até ao uso e ocupação do solo, o meio ambiente é mercadoria, tem valor de troca, favorece o entesouramento (e a especulação imobiliária).

No Município de Fortaleza, a civitas cresceu junto ao mar. A urbanidade dividiu o espaço com a natureza, mas não teve remorsos de a invadir, assim que preciso. O comércio precisava circular, o homem do campo veio à polis e a população cresceu. Sem parecer poético, convém dizer que o crescimento urbano foi organizado, até o período em que "o muro" da cidade não ia muito longe da Praça do Ferreira.

E esse urbanismo foi estruturado em compasso com a delimitação de uma área destinada aos pobres, sob a forma perversa da favela - mesmo que se pense nela num momento embrionário, romântico... E a cidade cresceu em direção à praia - criando a zona de concentração de riqueza, de entesouramento imobiliário e, portanto, de alto valor comercial. Sugiro uma visita ao Google Maps, para uma vista aérea que poucos podem desfrutar (de helicóptero) -> Examine, a forma do botão "Hybrid". Observe a distribuição da cidade no solo e tente identificar as áreas de favela...

A totalidade dessa área ocupada era terreno de praia - areia fina e cristalina -, e o litoral era cercado por dunas de areia, como a que existe em Jericoacoara. Eu cresci ali - vi dunas perto da casa de meus pais, quando era criança. Era ali que as crianças da classe média brincavam com as crianças da favela. Foi ali que aprendi a descer a duna de carritilha; nunca saí ferido ou fui importunado, nunca fui roubado por nenhuma daquelas crianças que vendiam as pranchas de carritilha (o snowboard provavelmente nasceu daquilo... eis o desprezo da modernidade contra o tradicional). O espaço era compartilhado, dividido entre as classes, por mais que persistisse a vergonha da miséria e o ócio da pujança e do perfume. E quando adolescente, não prestei atenção que a duna da Rua Almeida Prado (Papicu) virou prédio.

Isso porque, hoje, o espaço natural não é mais "meio ambiente" e o meio ambiente segrega os meios sociais. A Ciência, quando lhe apetece, tem a mania de ver as coisas esquisofrenicamente: por isso, artificialmente cria a separação entre natureza e sociedade. E há quem se utilize do espaço natural para a construção de seus palácios comerciais, como o rei daquela história. A pena que a história do tucano azulado tem também é a pena que sinto da história da minha cidade.
  • lex mercatoria e o Meio ambiente social
Desde de finais da década de 1990, Fortaleza tem se tornado um dos destinos turísticos mais procurados na baixa estação turística européia. Os pacotes de viagem são acessíveis a grande parte da classe média européia e ficaram ainda mais baratos com a construção do Aeroporto Internacional Pinto Martins - pois os vôos são diretos ou tem menos escalas e custos. A cidade oferece várias opções de diversão e um litoral paisagístico rico e rústico. Não se pode negar que a economia na Capital do Estado do Ceará (Brasil) cresceu nas últimas décadas.

Em contrapartida, não é em qualquer sítio que costuma ficar o "nobre turista europeu"; é preciso muita proteção (repressão policial), o que implica gastos públicos em segurança (ex.: Delegacia do Turista).

É também a violência que diminui a cidadania e que acaba por segregar as comunidades e distanciar as classes sociais. Curiosa proteção dada à nova modalidade de cidadão: o cidadão turista (ou cidadão global). Ardilosas políticas de desigualdade e exclusão: desigualdade entre os cidadãos, exclusão dos miseráveis. Ainda, é conhecido o problema do turismo sexual, que coloca nas linhas de produção garotas com menos de 15 anos de idade: a criança pobre transformada em produto e vendida como carne de açougue.
  • lex mercatoria e o Meio ambiente natural
(Vou comentar apenas um caso: Shopping Center Iguatemi)

A área ambiental do Parque do Cocó é recurso natural escasso e mantido sob a garantia das leis municipais, estaduais e federais de proteção ambiental; ali, a natureza (mangue) vem resistindo contra a cidade e os empreendimentos urbanísticos que ameaçam o espaço natural que ainda resta no Município de Fortaleza.

Foi ali que se instalou o maior shopping center do Estado; os "defensores" do empreendimento argumentam que 40% do espaço natural foi preservado. Mas o que deveriam dizer é: 60% do espaço natural foi destruído. A lógica dos argumentos é crucial para entender o desafio de preservação ambiental. Num Estado brasileiro pobre, qualquer desculpa é válida para que uma pequena parcela da população (a elite burguesa) possa fazer o seu pé-de-meia; quer à custa da população pobre (explorada) quer à custa da natureza (devastada). Passam os anos e a história é a mesma; não precisa ser muito inteligente para perceber que ao redor dos "Reis da Capital" orbita, também, a casta de "ex nobilis": conjugadas as forças do dinheiro e das idéias, criam-se as teorias mais absurdas e os pontos de vista mais imbecis para defender os interesses da pequena elite industrial cearense.

Causa-nos espanto pensar que a natureza esteja submetida à lex mercatoria. Quer dizer, embora, durante anos, tenham-se feito ouvir tantos alertas sobre os riscos envolvidos no uso e ocupação das áreas de preservação ambiental, meia dúzia de empresários de orientação liberal ainda vêem o meio ambiente como produto submetido aos interesses do mercado.

Mais uma vez: estamos diante de um sistema de recursos não-renováveis! O equilíbrio ambiental é muito frágil e uma vez transpostos alguns limites, não há caminho de retorno. Você, cidadão, pense nisso.