quinta-feira, 3 de novembro de 2005

O comércio de armas e a comunicação social: um paralelo entre Brasil e EUA (ensaio).

No início de fevereiro do corrente ano, facilitamos um trabalho junto aos estudantes do Curso de Direito da Faculdade Christus, que tinha como pano de fundo o filme “Bowling for Columbine”, de Michael More. O filme tratava do problema das armas de fogo em posse de civis nos Estados Unidos da América (EUA) e os problemas da falta de controle na venda de munições. Essas eram as preocupações principais do filme, embora temas subsidiários como a xenofobia e racismo também fizessem parte do enredo.

Como é sabida, a venda de armas e munições nos EUA é livre, havendo apenas certa regulamentação do assunto, tendo em vista que é um direito constitucional dos cidadãos norte-americanos a posse de armas de fogo para a defesa do território e da propriedade privada. O lobby em torno do tema é estrondoso, sendo a NRA (National Rifle Association of America) a principal contribuinte no apoio financeiro aos candidatos dos partidos Republicano e Democrata. Essa Associação, para além das especulações de sua ligação extremada aos membros da Ku Klux Klan, é majoritariamente formada por pessoas caucasianas – pelo que sofreu oposição nos anos de 1970 dos Black Panters (Panteras Negras), grupo armado de afro-descendentes, que faziam luta de protesto armado pelos direitos civis dos afro-norte-americanos. De fato, o NRA patrocina a defesa do direito dos cidadãos norte-americanos de possuírem armas de fogo, fazendo propaganda e campanha em todo o território nacional em defesa desse “direito sagrado”, coletando fundos, organizando palestras e congressos ao redor daquele país, ainda financiando filmes em Hollywood e patrocinando estrelas do porte do governador republicano da Califórnia, o ator Arnold Schwarzenegger – que por coincidência, é o protagonista em pérolas como “Exterminador do futuro” e “Comando para matar”.

A comunicação social teve um papel marcante na história recente da humanidade: foi capaz de atingir milhões de pessoas a um só tempo, com o advento da televisão; por ser a ciência social do jornalismo, teve a capacidade de entender a psicologia de comportamento das massas – momento no qual o indivíduo deixa de se comportar individualmente e passa a manifestar o comportamento coletivo; influenciou milhões de seres humanos com as mais variadas ideologias, desde o fascismo e o nazismo até a democracia liberal instalada recentemente na América Latina e a defesa da vida humana nos países africanos como a Etiópia. Criam-se deuses, criam-se monstros, criam-se e defendem-se valores sociais, metas, objetivos, goals administrativos e econômicos, e a mídia faz o seu papel no mundo do Capitalismo pós-moderno.

E é aí que entra-se na discussão: “qual é o relevante papel da mídia na criação de uma ideologia da posse de armas pelos civis? Qual é o interesse que existe no desarmamento da população?”. Para refletir nosso pensamento nessas perguntas, utilizaremos dois modelos: os meios de comunicação social brasileiro e norte-americano, na busca de um paralelo ou de pontos de convergência entre os dois.

Notório e polêmico foi o referendum sobre o fim da comercialização das armas de fogo no Brasil. Como sugere o tema, aparentemente, a finalidade da votação popular era deliberar sobre o fim da venda de armas de fogo em território nacional, mediante a participação popular na escolha por um regime “guns free” neste País. A despeito de qualquer discussão jurídica em torno da lisura dos procedimentos adotados, que deveriam estar em consonância com o espírito constitucional, que foi objeto de uma ação direta de inconstitucionalidade sobre o tema, outras questões de cunho filosófico e sociológico deve ser abordada. A mídia brasileira, os meios de comunicação social apelaram para o discurso emotivo do fim da violência, mostrando dezenas ou talvez centenas de casos do uso de armas particulares nos mais variados tipos de crimes contra a vida, enfatizando que a população precisava ser desarmada. Os argumentos eram vários, pró-desarmamento, mas convém analisar se são bem fundadas essas pretensões. Senão, vejamos.

O cidadão comum, aquele trabalhador de 7h às 19h, que cumpre com seus deveres fiscais, civis e políticos, já é um cidadão desarmado, em vários sentidos, uma vez que não pode contar com o aparto repressor do Estado para a defesa de sua família e patrimônio, não pode exercitar-se nas vias públicas nem tampouco ir comprar o pão à duas quadras sem o temor do assalto ou seqüestro relâmpago. E, detalhe: esse bom homem não sai de casa armado. Quem está armado é a bandidagem, e muito bem armada! Protegida por um sistema de normas jurídicas e um sistema penitenciário falidos, protegida pela incompetência e pela impunidade, além de protegida pela má remuneração das corporações militares estaduais, responsáveis pela polícia ostensiva no País. Ademais, um projeto dessa magnitude, do fim do comércio legal de armas no País, deve levar em consideração uma série de fatores: regionais, locais, circunstanciais. E a mídia, massificadora por origem e destinação de sua atividade, desprezou todos os tipos de considerações em torno das especificidades de cada região: a violência urbana do Rio de Janeiro é diferente da praticada em Fortaleza ou Natal, na origem ou causas e nas conseqüências. Ainda, deve-se comentar, em tempo, que existem outras soluções – já em prática -, na contenção da vioência: a chamada lei seca ou o toque de recolher que, em cidades como Diadema, têm produzido reduções gritantes no nível de violência. A população brasileira já está desarmada; os traficantes e bandidos obtêm suas armas do comércio ilegal, do tráfico internacional de armas de fogo, com dinheiro obtido do tráfico nacional e internacional de entorpecentes.

Pública e controversa é, também, a quase total falta de controle do comércio de armas e munição nos EUA, impulsionada por uma cultura pró-armas, em que a mídia, os meios de comunicação de massa são os principais responsáveis pelo constante estado de medo no qual vive a população. Com efeito, programas de grande audiência como “Cops” – que no vernáculo das redes de televisão a cabo brasileiras denomina-se “Perseguições fantásticas” ou algo do tipo -, estimulam o medo das minorias étnicas norte-americanas, semeando o medo dos caucasianos pelos negros, dos negros pelos latinos, dos latinos pelos asiáticos, de todos pelos muçulmanos e assim por diante, numa espécie de espiral do medo. A situação criada pelos “inesperados” atentados terroristas de 11 de setembro de 2000 só vieram a agravar a relação doentia da mídia com o poder yankee. Na realidade, o que se pode perceber é que a grande culpada pela violência é a conseqüência (criminalidade) e não a causa (segregacionismo, racismo, problemas econômico-sociais, modelos educacionais ineficientes), a exemplo do quê ocorre na mídia tupiniquim – só que em menor escala. Desde a primeira hora da manhã até os noticiários da madrugada, os canais de televisão mostram apenas uma situação recorrente: violência, crime, crime, violência; cardápio indispensável na formação das audiências daquele país, porque violência e sexo vendem – eis a fórmula garantida para uma grande reportagem ou um grade filme – é só estudar os sucessos de bilheteria e comparar com as premiações da mídia e a remuneração dos atores hollywoodianos. Ainda, a cultura norte-americana está fundamentada na idéia de supremacia militar, do “lar dos bravos, terra dos livres”, conquistada através do sangue (dos nativos que habitavam originalmente o continente), nação que jamais teve seu território invadido.

É curioso observar os dois exemplos, que não necessariamente são extremos entre si. De um lado, um país em desenvolvimento, que não zela pelo seu patrimônio histórico, que convive diariamente com a corrupção, o desrespeito à lei e o descaso das autoridades, que mantém a discriminação e a segregação em níveis de comparação econômica. De outro lado, um país desenvolvido, que procura manter sua tradição e impor sua cultura ao redor do planeta, que tem certo apego à lei e à ordem, e mantém a discriminação e segregação em torno de conceitos predominantemente étnicos. De ambos os lados, as similaridades são várias: a riqueza abundante e a má distribuição de renda, a manutenção das camadas ou classes sociais através da competição capitalista selvagem, a falta de uma identidade nacional etc. E, enquanto num desses países, a mídia gastou imensos recursos com o desarmamento, noutro os meios de comunicação de massa não poupam esforços para a manutenção da comercialização legal e cada vez mais permissiva da posse de armas de fogo. Aonde reside a lógica nesses movimentos antagônicos? Seria pelo fato de o Brasil ser um país pacífico? O Brasil é um país pacífico? Ora, nós também temos uma tradição histórica belicosa, como foram os conflitos da cisplatina e na Região Norte, para não falar dos massacres do começo do séc. XX – como o que aconteceu em Canudos. Seria pelo estado de guerra civil em que se encontram as grandes capitais? Bem, essa pergunta requer uma maior reflexão, pois tem que levar em consideração fatores como ineficiência das políticas de segurança, grande concentração de pessoas nos centros urbanos (uma característica dos países sub e em desenvolvimento) e a crescente desobediência civil – gerada pela insatisfação do povo/população em relação ao Governo. Entretanto, apostar no terror é ferramenta do meio mediático brasileiro, tanto que o sucesso das emissoras de televisão local prova esse comentário: Barra Pesada, Rota 22, o famigerado Mão Branca, todos eles foram ou são programas com autos índices de audiência que utilizam a imagem (digna) do homem para aumentar o fosso que separa as classes sociais no Brasil, por meio da discriminação social – mesmo que de forma inconsciente.

A quem beneficiaria o desarmamento? Aqui reside a liberdade de cátedra: do ponto de vista político, àqueles que lucram com o medo e com a violência, que ajudam a elite a manter no poder e lá se perpetuar nos esquemas oligárquicos nacionais e, do ponto vista econômico, àqueles que desenvolvem a lucrativa atividade de proporcionar, principalmente à classe média, os serviços de segurança privada. Ora, quem já tentou adquirir uma arma de fogo sabe muito bem dos trâmites e da rede burocrata que existe por trás dessa compra, para não comentar dos gastos financeiros envolvidos, que tornam esse tipo de comercialização uma atividade não muito vantajosa, devido à dinâmica da oferta-procura e à constatação de que a demanda por armas é muito reduzida, o que acaba por enfraquecer o mercado, enquanto o destinatário do serviço é o cidadão comum e não a empresa de segurança. Ressalta-se, ainda, que, quanto ao mercado de armas tupiniquim e ao yankee, existem diferenças gritantes, para não dizer que são completamente diferentes: lá, além de um maior poder de compra, associado aos baixos custos do armamento, existe uma enorme diversidade de marcas e modelos, além de uma forte concorrência mercadológica que pressiona o preço dos produtos.

Contudo, o que lá impera, aqui não se deseja. Não parece muito razoável o desejo de um mercado brasileiro desregulamentado ou regulamentado no modelo norte-americano, aonde é possível adquirir uma pistola ou rifle em todo o tipo de estabelecimento comercial, dependendo do Estado-membro e de sua legislação. É bem natural que o Estado exerça sua atividade de controle da propriedade de armas, enquanto detentor do monopólio do binômio sanção-coação, mas proibir a comercialização de armas de fogo sem garantir a proteção do cidadão pacato e ordeiro é uma irresponsabilidade histórica. Isso seria possível através de uma política nacional e políticas estaduais de segurança, aliadas à Educação e melhoria da qualidade de vida das populações, uma vez que são bem conhecidas as origens do poder das facções criminosas entre as famílias de bem: pobreza e insatisfação.