quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

Hollywood e suas apostas na distopia

Um dos filmes mais curiosos lançados este ano (2013) foi "Elysium": drama de ficção científica, no qual a população mundial é controlada por um sistema político gerenciado por poderosas corporações. Esse gênero de ficção científica já é bem conhecido das audiências: inevitavelmente, o sistema de produção vigente (capitalista) leva a Sociedade (baseada num modelo cultural anglo-saxão) a uma necessária privatização total do Estado, num contexto de brutal escalada de violência e degeneração moral. Assim, há o protagonismo de cidadãos e cidadãs comuns (blue collars), antagonizados pela frieza de empresários e empresárias bem sucedidos (white collars).


Essa tensão discursiva, que tem por polos os "colarinhos azuis" como uma espécie de homo sacer, e os "colarinhos brancos" representando os bem sucedidos homo economicus, é uma tentativa de ambientação da platéia num contexto futurístico (campo imaginário), partindo da realidade atual (campo real). Esse futuro seria o resultado fatalístico da competição individualista, responsável pela destruição dos valores coletivos. Esses valores (campo simbólico), por sua vez, seriam os alicerces de um sistema, pertencentes aos regimes democráticos obliterados pelo consumismo e pelas leis exatas, inumanas e matemáticas dos mercados.

Seguindo no mesmo tom de "Elysium", existem diversas películas, dentre as quais merecem destaque: Alien (1979, 1986, 1997); "Exterminador do Futuro" (1984, 1991, 2003, 2009); "Robocop" (1987, 1990, 1993); "O quinto elemento" (1997);  "The Matrix" (1999, 2003.1, 2003.2); além da famigerada saga de Milla Jovovich em Resident Evil (2002, 2004, 2007, 2010, 2012); e o recente filme de Ridley Scott, "Prometheus" (2012). Porém, há uma ironia: todos esses filmes pertencem a grandes corporações, que investem nesse tipo de gênero (Sony Pictures, 20th Century Fox, TriStar etc). 

O que chama a atenção em "Elysium" é o fato de que há uma irrefutável clivagem entre ricos e pobres, numa sociedade futurística com tecnologia suficiente para criar novos mundos - ou estações espaciais habitáveis, como é o caso -, curar doenças e prolongar a vida da população indefinidamente, e construir meios de transporte ultra rápidos e eficientes. Mas, qual o cenário apresentado no filme? A população rica habita a estação espacial, gozando de todos esses benefícios, permanecendo aquartelada e protegida de qualquer tipode contato com a classe pobre. A maioria esmagadora da população mundial vive na miséria, sendo tratada brutalmente por policiais-robots, desprovida de todos os direitos, numa espécie de Estado Global falido. 

O filme é ácido: não há saúde, nem direitos aos trabalhadores. As pessoas da Terra vivem nos escombros do que outrora foram grandes e suntuosas cidades, cercadas pela poluição (melhor dizer, absoluta devastação ambiental) e sem instituições intermediadoras dos conflitos sociais. Ainda, apresenta o crime organizado como uma alternativa à ausência estatal e à brutalidade corporativa, como se ele fosse um ensaio popular diante de uma carência sócio-institucional. Porém, antes de querer arrumar suas malas e ir morar em Elysium, vale referir que os burocratas-corporativos, quer dizer, o corpo político responsável pela administração dessa grande Empresa Global, utilizam-se de forças militares convencionais (robots) e não-convencionais (mercenários), fazendo uso de golpe de Estado, abuso de autoridade e, enfim, tudo o quanto for possível para a manutenção do status quo e de seu enriquecimento imoderado e luxurioso.

Com certeza, pode-se afirmar que "Elysium" é uma dura crítica ao capitalismo financeiro e corporativista, concretizado nos últimos anos por políticas neoliberais. Todavia e ao contrário do que se possa imaginar, a crítica levantada pelo autor da obra é, antes, a favor de um conservadorismo e de um retorno às benesses de um sistema produtivo que tinha amparo e respaldo no individualismo iluminista e liberal de um Estado garantista. Sem querer antecipar o final da estória (spoiler alert!), a "revolução" impetrada pelos heróis não estabelece a eliminação das classes hierarquicamente superiores, nem a divisão de todos os bens sociais do trabalho. O desfecho da trama tão simplesmente se resume numa restituição: são devolvidos à população mundial aqueles direitos fundamentais que foram usurpados pelo grande capital transnacional e corrupto. Nada de revolução, nem propriamente uma reforma. Apenas restituição.

Como se poderia antever, seria bastante contraditório para a Sony Pictures ou qualquer outra grande corporação defender um posicionamento revolucionário (no correto significado do termo). Nesse gênero cinematográfico, a proposta é sempre conservadora, numa tentativa de redenção por meio da manutenção de um sistema de produção "livre" (no campo simbólico), mesmo que esse sistema não seja livre (no campo real).

É dizer: o grande alívio da platéia é constatar que os heróis e heroínas estão sempre à procura de remeter sua realidade futurística ao passado no qual se encontra a platéia, e isso, por si, seria libertário, exatamente porque redime a platéia de qualquer responsabilidade por esse futuro que está por se concretizar a qualquer instante. Mas libertário, sem ser emancipatório, exatamente porque somente os campos do real e do simbólico seriam transformados, haja vista a inexistência de uma promessa utópica (imaginário), que pusesse um fim definitivo à violência, à acumulação desproporcional e à desigualdade generalizada. Libertária porque se limita apenas à restituição das regras de um jogo competitivo, atávico e matemático, presente inclusive na personalidade dualística dos atores sociais - todos submetidos à lógica da violência, da ganância e da lei do mais forte.

Dessa forma, conclui-se que essa aposta de Hollywood em filmes que projetam cenários nos quais as sociedades vêem-se em um estado de calamidade generalizado (distopia) é, na realidade, uma ferramenta de controle muito bem organizada. Ela proporciona o ganho simbólico de redenção, na figura do herói (homo sacer) que se sacrifica em prol da continuidade do real (desta realidade), vingando-se dos anti-heróis (homo economicus). E isso só se torna possível diante da natureza dicotômica - profana e sagrada - desses heróis imaginários, cúmplices dos espectadores.