terça-feira, 23 de dezembro de 2008

Mercado financeiro: uma fábula

(Com a colaboração de Cláudio Monteiro)

"Certa vez quatro meninos foram ao campo e, por 100 reais, compraram o burro de um velho camponês. O homem combinou entregar-lhes o animal no dia seguinte.

"Mas quando eles voltaram para levar o burro, o camponês lhes disse:

- Sinto muito, amigos, mas tenho uma má notícia. O burro morreu.
- Então devolva-nos o dinheiro!
- Não posso, já o gastei todo.
- Então, de qualquer forma, queremos o burro.
- E para que o querem? O que vão fazer com ele?
- Nós vamos rifá-lo.
- Estão loucos? Como vão rifar um burro morto?
- Obviamente, não vamos dizer a ninguém que ele está morto.

"Um mês depois, o camponês se encontrou novamente com os quatro garotos e lhes perguntou:

- E então, o que aconteceu com o burro?
- Como lhe dissemos, o rifamos Vendemos 500 números a 2 reais cada um e arrecadamos 1.000 reais.
- E ninguém se queixou?
- Só o ganhador. Porém lhe devolvemos os 2 reais e ficou tudo resolvido."

segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

Sr. Bush, o sapato, por favor...?


Não há palavras para descrever a atitude do jornalista. Talvez haja algo de bíblico nisso, no simbolismo da luta entre David e Golias. Sem dúvida nenhuma, é uma das cenas que ficará registrada na memória do povo iraquiano e na história mundial. É evidente que aqui não se pretende fazer reverência a nenhum tipo de violência. Mas a verdade é que, diante das centenas de milhares de pessoas que sofreram e sofrem com a invasão norte-americana no Iraque, o episódio é irrisório, banal.

Embora a intenção preliminar do agente tenha sido humilhar o presidente yankee, pensando melhor, o incidente foi uma "cesta de três pontos": 1º) pela humilhação simbólica de ter um sapato atirado em sua direção (de acordo com a tradição e leis do Islã); 2º) pela possibilidade de o ter atingido com um objeto pontudo, de couro, com quase 300g de massa e viajando em alta velocidade (conforme as leis da Física); e 3º) o perigo de tê-lo contaminado com o "chulé" causado pelas bactérias que pululam na combinação ácida entre o suor do jornalista e o calor desértico (conforme as leis da Biologia e da Geografia).

No Brasil -- se essa moda pega --, faltarão sapatos...

A notícia pode ser lida aqui: BBC|News.

sábado, 13 de dezembro de 2008

Serra do Sol: o problema era o arroz?

A recente decisão do STF sob a demaracação da reserva indígena Raposa Serra do Sol põe um fim à querela midiática dos últimos meses e abre uma discussão sobre os reais motivos da quesilha. Afinal, eram os interesses dos fazendeiros de arroz e dos especuladores imobiliários versus os direitos dos índios às terras demarcadas. Isso demonstra ao cidadão o que se passa nos bastidores de decisões políticas do Judiciário e o qual é a verdadeira motivação das empresas privadas de comunicação.

Com efeito, deve-se dizer que a provocação jurisdicional partiu de fazendeiros que agiam contra a decisão do Executivo federal de demarcação daquelas terras, em 2005. A partir daí, toda uma campanha foi feita para "alertar" os brasileiros sobre os perigos à soberania nacional, à integridade do território e coisas do gênero. Ora. Quem examina a questão do ponto de vista jurídico sabe que não havia nenhum risco à suposta ou imaginária soberania nacional a guiar os interesses dos postulantes (os fazendeiros). Ainda, não era uma questão sobre os recursos naturais da região -- e a importância estratégica dos mesmos para o desenvolvimento do País. O que imperava na disputa eram os interesses de uma importante e impoluta indústria agropecuária que explora a plantação de arroz em Roraima e, ainda, o avanço da especulação imobiliária sobre as terras indígenas.

Some-se a isso a propaganda midiática que colocava o projeto da Reserva como um espaço de exclusão de soberania em relação à República. Ora. Mais uma vez o capital privado e a indústria da (des)informação juntam-se para assegurar a continuidade do uso anti-democrático da terra -- uso que garante a concentração de riquezas e o uso anti-social da propriedade privada. Desde que foi inaugurado, o princípio da função social da propriedade privada e do respeito pela dignidade da pessoa humana são dois dos pilares sociais da República, garantidos pela Constituição Federal de 1988.

Penso que um último alerta é necessário. É preciso lembrar a esses senhores que a ditadura militar é assunto morto e encerrado no Brasil -- talvez valha até a pena explicar à equipe de pseudo-jornalistas envolvidos nessa campanha que de nada adianta aliciar os militares brasileiros com apelos nacionalistas. Neste caso -- e espero que nos casos que surgirão no futuro --, a decisão foi tomada por um órgão jurisdicinal civil; uma decisão do órgão responsável pela garantia da ordem constitucional brasileira: o Supremo Tribunal Federal. Um episódio dessa magnitude merecia mesmo uma decisão minimamente democrática, que além de colocar a reserva sob a tutela da FUNAI (Fundação Nacional do Índio, órgão da República Federativa do Brasil), assegurou o que era óbivio: o exercício do poder de polícia das forças armadas no território nacional, na medida e com o controle do princípio da legalidade.

Eu não gosto de futebol, mas devo dizer que essa decisão é uma espécie de "gol cala-a-boca" para os (de)formadores de opinião da mídia nacional. Emblemático posicionamento jurídico e ato simbólico, no ano em que se comemoram os 60 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos. É ainda um duro golpe contra a tradição das elites brasileiras de descumprimento da legislação nacional e internacional que garante a proteção dos direitos humanos. Finalmente, é correto pensar que esta decisão inaugurou a aplicabilidade dos princípios jurídicos e demais valores contindos na Declaração da ONU sobre Povos Indígenas.

terça-feira, 9 de dezembro de 2008

O novo Brasil de Lula

Todas as vezes que a mídia nacional estiver empenhada em algum assunto, desconfie: há uma agenda por detrás dessa motivação. Tendo em vista que os ataques sobre o atual governo aumentaram vertiginosamente nos últimos meses, convém salientar o seguinte: entramos no período das campanhas presidenciais. Por isso, convém fazer um balanço dos últimos 13 anos, para se verificar o que pode vir por aí.
  • A Herança de FHC (PSDB)
Fernando Henrique Cardoso é o antecessor do atual Presidente. Durante os seus 08 anos de mandato, de 1995 a 2003, o Brasil e o mundo puderam assistir ao mais bem elaborado plano de privatizações jamais levado a cabo no continente americano. Ainda, foi a cúpula de intelectuais políticos de FHC que condiziu o Congresso Nacional à aprovação de emenda constitucional instituidora da reeleição ao cargo de Presidente da República. Porém, tanto os processos de privatizações, quanto a aprovação da "emenda da reeleição" foram fatos marcados por escândalos políticos, quer na compra de votos de parlamentares à aprovação da infame emenda, quer no sub-faturamento e sub-avaliação das empresas a serem privatizadas.

Durante esse período e diante de todo tipo de dificuldade operacional, a Polícia Federal brasileira conseguiu abrir inquéritos contra os políticos do PMDB envolvidos no escândalo do Opportunity Found. No caso S.I.V.A.M., alguns oficiais das forças armadas brasileiras conseguiram alertar contra os perigos de se colocar o monitoramento da Amazônia nas mãos da empresa norte-americana Raytheon, pelo simples fato de que isso poderia comprometer a segurança nacional. Convém ainda dizer que, de Janeiro de 1995 a Abril de 2002, a dívida externa brasileira foi quadruplicada: isso significa que no Governo de FHC (PSDB) a dívida passou de R$ 153,4 bilhões para R$ 684,6 bilhões (4,46 vezes mais dívida).

Por isso, é mais que correto afirmar que o Estado brasileiro estava completamente subserviente às diretrizes do Consenso de Washington e obrigado pelas cláusulas dos acordos do F.M.I. durante o governo do PSDB. O neoliberalismo tinha chegado ao seu extremo, e até as classes tipicamente reacionárias já não estavam dispostas a ceder diante da concentralização do Poder no Palácio do Planalto -- como ilustra a campanha midiática contra as intermináveis e irremediavelmente reeditáveis medias provisórias que transformaram o Executivo num Novo Legislativo.
  • O difícil começo de Lula (PT)
As eleições presidenciais de 2002 foram marcadas pela esperança de milhões de brasileiros por uma reestruturação da política social. Nesse período conturbado, o antigo discurso demagógico -- centrado num conjunto de promessas irrealizáveis ou incompreensíveis -- foi substituído pelo discurso da autonomia e da auto-afirmação. O que isso quer dizer?

Isso quer dizer que houve uma promessa de um novo pacto social, isto é, a futura conformação política propunha uma mudança paradigmática na condução da res publica. Ora. Mas tal promessa por si só era desncessária, tendo em vista que a base e a coalisão partidária que concorria contra o PSDB, por si só, já traria uma remodelação ampla no gabinete presidencial. Em outras palavras, a eleição do PT e a alternância de partidos no Poder já era uma mudança positiva, por si mesma.

O que foi trágico para o novo governo eleito (e re-eleito) foram dois movimentos internos e simultâneos: 1) a aliança política entre PT e PMDB no Congresso e 2) a cisão do PT com alguns setores internos do próprio partido. Mas essas eram conseqüências naturais da nova formatação governametal, por dois motivos: 1º) a esperança de mudanças depositada no PT se restringiu basicamente ao Executivo, enquanto os grandes caciques políticos continuavam a angariar votos no Legislativo; e 2º) o projeto da esquerda não era uníssono, vez que todos os tipos de pensamentos e correntes de esquerda tiveram que se unir em torno do projeto de mudança política levada a cabo em 2002.

Contudo, mesmo diante dessas dificuldades, nestes últimos 05 anos, o Brasil passou por mudanças estruturais e políticas profundas. Uma das mais importantes, senão a maior delas, foi o fim da dependência/subserviência do Brasil ao F.M.I. A importância desse fato é extrema, vez que pela primeira vez o Brasil pode levar adiante algumas reformas sociais que haviam sofrido reveses, desde a aprovação da Constituição de 1988.

Some-se a isso uma prudente e bem encaminhada política externa do Itamaraty, que soube aproveitar a mudança política brasileira para elevar o conceito do País em nível internacional. Ainda, além do sucesso de algumas políticas econômicas que haviam sido elaboradas no governo anterior e que favoreceram a grande indústria e os grandes bancos, novas políticas foram direcionadas às pequenas e médias empresas. Não só: medidas sociais intervencionistas proporcionaram o aumento do número de pessoas na classe média trabalhadora, ou seja, houve mobilidade social, com a ajuda dos programas de rendimento mínimo e auxílio familiar.

Isso tudo proporcionou o acesso de milhões de brasileiros ao ensino superior, à melhoria na alimentação diária e à melhoria na qualidade de vida das classes menos favorecidas. E, como era também natural, a mídia (e os setores mais bem remunerados da Sociedade) começaram a atacar o governo, classificando-o como populista. Entretanto, é correto pensar que, se o atual governo é populista (pois favorece o povo), é também correto pensar que os governos anteriores eram elitistas (pois favoreciam as elites). E nessa lógica reside a força e a aceitação do atual Governo.

A razão para esse comportamento populista do Governo Lula é simples: os titulares dos cargos públicos e os demais chefes de gabinete estavam todos comprometidos pelo discurso de campanha (comprometidos pelo, e não comprometidos com). Esse comprometimento dificultou toda tentativa de desmonte social ou medidas impopulares -- qualquer ação contra esse discurso seria a ruína imediata do Governo. E foi por isso que o Governo Lula conseguiu sobreviver quase intacto ao escândalo do Mensalão e a outros -- coisa que poucos ou nenhum dos analistas políticos da direita tradicional conseguiram entender.

No geral, importa dizer que a vitória de Lula representou um fortalecimento da classes trabalhadoras e, consequentemente, da Democracia. Sobretudo porque era mais que necessário eleger um representante público de origens humildes e com passado sindical, com vistas a salvar o próprio sistema representativo democrático. Na altura, não havia outra solução para evitar o surgimento de um "Evo Morales tupiniquim" -- talvez por isso não tenha havido um golpe da direita brasileira. Ainda, mesmo que o PT tenha quebrado a sua promessa enquanto partido político, essa vitória representou o fortalecimento do poder de barganha das classes populares, e o ponto alto desse fenômeno é o surgimento do PSOL e da reafirmação dos valores socialistas e comunistas em alguns partidos menores, no cenário nacional.
  • As próximas eleições
O que fazer para não assistir a um retrocesso e, sim, uma evolução do atual estágio da política brasileira? O primeiro passo é garantir uma alternância no Poder. É, para dizer o mínimo, "(...) retroceder um passo, para avançar dois". Compreender as origens do problema já é o primeiro passo nesse sentido.

Ao redor dessas desventuras políticas está um sistema representativo construído para favorecer uma elite ou um número reduzido de pessoas com acesso à riqueza. Lutar contra essa estrutura (sem o derramamento de sangue) requer estratégia, calma, prudência e paciência. Tendo a consciência de que esta semente já está plantada, a próxima atitude não pode ser a de contemplação (jamais!), mas uma ação de base junto às classes menos informadas, que maximize o efeito multiplicador das bases políticas pós-1988.

Tendo em vista as dificuldades de inserção e divulgação dos planos de governo dos partidos de esquerda menores, um dos principais objetivos da esquerda fragmentada deve ser o Congresso Nacional: inserir um maior número de parlamentares, para garantir a governabilidade do País sem as atuais alianças com a direita tradicional (DEM, PMDB e etc.). Havendo um maior número de parlamentares de partidos com PCB, PCdoB, PSOL e outros, haverá menor risco de corromper as reformas sociais em andamento e as que ainda restam por fazer. Por isso, é mais que necessário saber que as mudanças estruturais se operam a longo prazo, e saber isso significa direcionar investimentos e energias na mais deficitária área de atuação da esquerda brasileira.

Uma nova atitude também deve ser requerida dos intelectuais que dividem suas opiniões na mídia não-convencional. Não se pode esquecer que apenas 20% da população brasileira acessa a Internet -- e esse índice não comporta a grande maioria dos excluídos sociais, com certeza. Ao que tudo indica, a dispersão dessas idéias deve ser efetuada em outras mídias e outros espaços, sem as quais todo esforço ideológico será fútil e infrutífero.

Finalmente, uma das mensagens mais importantes que devem ser difundidas é que toda mudança é uma vitória. Para isso, precisamos entender o que significa "mudar" e o que é "vitória", mas essas concepções axiológicas devem ser preenchidas dentro de contextos específicos -- o que vai requerer reflexão e flexibilidade dos ativistas empenhados nas próximas eleições.

segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

Estatização de bancos à vista, na Inglaterra (2)

Autores: Jorge F. Maques* e Antônio T. Praxedes.

Após a crise financeira que sacudiu o mundo nos últimos meses, o Estado vai retornando ao papel que exerceu no pós-Segunda Grande Guerra, qual seja, o de ativo interventor na Economia. Seja através do bailout aos grandes bancos, seja através do suporte às indústrias, a teoria da não-intervenção estatal nos assuntos financeiros vai sendo deixada de lado, e se repete um ciclo econômico. Porém, se nada se repete na História, como se dará esta nova fase do pós-capitalismo?

Se é-nos impossível prever o futuro, uma coisa é certa: estamos num período de mudanças drásticas. Chamem-lhe de Obamanomics, Gordonmomics -- ou qualquer justaposição entre o nome de um líder governamental e economics --, esse novo processo intervencionista é a oportunidade perfeita para uma adaptação dos diversos setores econômicos às novas configurações sociais: 1) no trabalho e do trabalho, com as novas formas de contratos e de prestação de serviços; 2) do sistema financeiro, com a ascenção -- mesmo que momentânea -- de limites ao capital especulativo selvagem; e 3) com uma nova configuração geopolítica na condução do sistema de produção global, como ilustra o grupo do G-20.

É razoável pensar que esse re-arranjo do sistema global parece ter sido uma conseqüência lógica da "neoliberalização do mundo", isto é, o modelo econômico dos "Chicago Boys" chega ao fim como uma conseqüência "natural" de sua própria hegemonia. Com efeito, a liberalização dos mercados, o aprofundamento dos sistemas regionais de produção e circulação de riquezas, o avassalador desenvolvimento nas telecomunicações, o ressurgimento de um Império Global no período pós-Guerra Fria, criaram as condições essenciais ao descontrole e ruína de um sistema fundamentado numa liberdade absoluta ao capital.

Contudo, grande e grave lição é dada pelos próprios arquitetos do sistema capitalista: toda liberdade deve ser acompanhada por responsabilidade. E a responsabilização que agora recai sobre o sistema financeiro -- na forma de possíveis estatizações ou retoma de capital social -- é um sinal de que o capitalismo é, acima de tudo, uma força que deve estar ao serviço da Sociedade como um todo.

Porém, ninguém pode ser tão ingênuo e pensar que haverá mais igualdade no sistema. Não. A exploração vai continuar, e a intervenção do Estado na Economia não significará o retorno ao Welfare state (a História não se repete, porque os atores e os interesses são outros). Essa afirmação exemplifica-se na simples constatação de que a ajuda financeira foi dada apenas aos grandes atores econômicos: multinacionais e instituições financeiras de alcance global. Portanto, ficam faltando incentivos fiscais e linhas de crédito para pequenos e médios empreendedores e, ainda, normas protetivas para famílias e indivíduos atingidos pela crise -- como é o caso das pessoas que perderam seus fundos de pensão porque alguns bancos utilizaram esses benefícios como créditos na ciranda financeira.

Enquanto todo esse ciclo se compõe, pouco a pouco o cidadão vai tomando consciência dos riscos à vista. Seja pelo novo esquema de endividamento do Estado (através da baixa dos juros nos bancos centrais), seja pela obtusa e alienada visão da ainda-dominante escola econômica monetarista, a população global começa a se aperceber de que esse é um jogo de cartas marcadas, no qual ela só participa trazendo canapés e drinks aos jogadores na mesa. Mas se tal conscientização levará a alguma mudança ou à democratização do sistema, isso é outra questão, para a próxima crise / próxima geração.

***

* Jorge F. Marques é licenciado em Geografia pela Universidade de Coimbra (Portugal).

terça-feira, 2 de dezembro de 2008

Estatizações de bancos à vista, na Inglaterra

O Primeiro Ministro britânico Gordon Brown deu um duro recado aos bancos ingleses que receberam investimentos públicos na crise financeira: se não repassarem esses investimentos na forma de créditos à população e ajudarem a movimentar a economia, poderão ser estatizados.

A notícia é tão "bizarra" que ainda não consegui digerir a idéia, desde o dia 25/11/2008 até hoje, 02/12/2008. Gostaria de saber o que o leitor pensa disso.

Sobre esse assunto, pode enviar-me um email (clique aqui) ou deixar seus comentários no blog (clique aqui).

Você tem US$ 20 mil?


De acordo com esta propaganda, aquele que tiver vinte mil dolares pode adquirir um lindo terreno de praia no Brasil. O texto do anúncio é claro: compre o seu pedaço de terra paradisíaca num mercado emergente, antes que o preço desse tipo de imóvel torne-se inacessível. Assim, é possível afirmar que avança o processo de privatização global de terrenos públicos (como são os terrenos de marinha, no País) e espaços naturais (florestas, reservas naturais e etc.), em detrimento dos interesses socais correlatos às populações praianas e ribeirinhas, nativas dessas regiões.

A relativização desses direitos sobre a propriedade e o desequilíbrio evidente entre liberdade e igualdade  (função pública da propriedade versus direito à propriedade privada) podem significar uma tragédia social nas próximas décadas, não só em decorrência da explosão demográfica nas capitais brasileiras - já densamente povoadas -, mas também da depredação ambiental da biota. O pior é ter que assistir isso de camarote, com pouco ou nenhum poder de reação, sabendo inclusive que, a contrario senso, a maioria da população brasileira dirige suas atenções e hostilidades contra as populações indígenas que lutam para garantir seu espaço de sobrevivência digna -- ao invés de reagir, por exemplo, contra a venda do território litorâneo.

Isso me faz lembrar a música "Aluga-se"  de Raul Seixas:
Os estrangeiros eu sei que eles vão gostar
Tem o Atlântico, tem vista pro mar
A Amazônia é o jardim do quintal
E o dólar deles paga o nosso mingau
    Nós não vamos pagar nada
    Nós não vamos pagar nada
    É tudo free
    Tá na hora agora é free
    Vamos embora dar lugar
    Pros "gringo" entrar
    Pois esse imóvel está pra alugar
Mais sobre o loteamento do Brasil aqui.

terça-feira, 25 de novembro de 2008

Direito de resposta de Lionel Brizola contra Rede Globo

A Rede Globo de Televisão tornou-se num dos maiores conglomerados de telecomunicações no planeta. As origens desse poder midiático remontam ao período da ditadura militar brasileira que perdurou de 1964 até 1988 -- sempre considerando que a ditadura só chegou ao fim com a Constituição de 1988, ou seja, com um novo ordenamento jurídico.

Uma das vozes que mais se opôs ao poder da Globo foi o político Lionel Brizola. O trecho do Jornal Nacional que você vai assistir agora refere-se ao direito de resposta de Brizola contra a propaganda da Rede Globo que difamou a sua imagem em 1990. Isto significa que, depois de quatro anos lutando na justiça, Lionel Brizola assegurou seu direito de resposta em cadeia nacional, no horário nobre da televisão brasileira.

segunda-feira, 24 de novembro de 2008

Flexibilidade no trabalho e as necessárias contra-partidas

As teses que defendem a necessidade de flexibilidade dos contratos de trabalho são cínicas. Seu cinismo não está centrado na insegurança a que subtem os trabalhadores, mas ao seu alcance limitado aos trabalhadores que alferem baixos e médios salários, sem atingir outros setores do mercado de trabalhos, nomeadamente, executivos, diretores e outros cargos de alto escalão.

Com efeito, as medidas de flexibilização dos contratos de trabalho visam promover uma maior facilidade na contratação e no despedimento de trabalhadores. Essa espécie de heresia aos direitos humanos consagrados na Declaração Universal dos Direitos Humanos (arts. 22 e ss.) é, antes de mais, uma consequência do discurso emergencial no qual se baseiam as decisões políticos nesse período pós-político. Assim, os argumentos jurídico-econômicos apresentam-se como infalíveis e aéticos, de forma a garantir a maximização de recursos e melhores resultados econômicos, que garantam a sustentabilidade da Economia.

Entretanto, as medidas de flexibilização são direcionadas apenas às partes mais fraca da cadeia de produção. Isso se dá por uma razão simples: já que o sistema privilegia ou atribui bons méritos aos profissionais com "melhor formação" (via de regra, formação acadêmica), os trabalhadores que só dispõe de sua força-de-trabalho devem continuar em situação de insegurança jurídica constante, visto que os únicos insubstituíveis são aqueles com melhores aptidões laborais. Ora, esse tipo de "meritocracia" tende apenas a agravar situações de desigualdade social, porque privilegia as classes mais abastadas, isto é, garante a continuidade dos modelos de "mérito hereditário", quer dizer, um mérito vinculado à capacidade econômica de enviar a prole às melhores escolas.

Num sistema de produção que tem a competição como um de seus pilares, para que as regras do jogo sejam minimamente justas, é preciso garantir: 1) acesso gratuito, amplo e irrestrito aos mesmos níveis de Educação, com o consequente fim de instituições de ensino privadas; 2) gratuidade total do ensino, nela inclusa o acesso à livros e material de apoio; 3) nivelação salarial para todos os tipos de cargo, independente do tipo de trabalho, para que o "mérito" seja remunerado em consonância com a dedicação pelo trabalho, e não apenas à aptidão para o exercício do trabalho; 4) em nível da OMC, um tratado internacional que estabeleça a proibição de comércio com países que não garantam a mínima proteção social aos trabalhadores, que empreguem trabalho escravo ou semi-escravo, que tolerem o trabalho infantil e que não possuam sistemas de proteção ao desemprego e assistência social mínimos; 5) uma moratória sobre a dívida interna e externa dos países em desenvolvimento e sub-desenvolvidos, para que possam estruturar suas economias de forma a elevar seus padrões de bem-estar social, garantindo justiça social em nível global; 6) a implementação do imposto TOBIN (ou outra solução similar), que incida sobre as operações financeiras de curto e médio prazo, dando total isenção fiscal aos investimentos financeiros com prazos de recapitalização de 20 anos ou mais.

Essas são medidas para se acabar com privilégios. Se os trabalhadores têm que abrir mão de seus direitos, em função dos imperativos econômicos, os empresários devem perder seus privilégios, para que se estabeleça um modelo mais justo de normatização econômica. Se tem que haver flexibilidade de normas sociais, deve haver também a flexibilização de normas anti-sociais, nomeadamente daquelas que protegem as grandes fortunas e os grandes monopólios.

sexta-feira, 21 de novembro de 2008

Soberania territorial relativa

A soberania territorial no Brasil é relativa. Digo isso porque constatei que existe uma variação da força do princípio jurídico em questão, quando a idéia é observada em situações diferentes. Para ilustrar essa hipótese, oferto dois exemplos.

O primeiro dado é a controvérsia sobre a Reserva da Raposa Serra do Sol, no Estado do Pará*. Ali, alguns grupos indígenas começaram a reivindicar autonomia territorial. Isso causou um reboliço sem precedentes, com o apelo à defesa da soberania do território nacional em região fronteiriça, além de todo o apelo midiático necessário para causar uma das maiores polêmicas de todos os tempos, com uma propaganda propositadamente negativa ao direito de auto-afirmação dos povos indígenas.

O segundo dado é a "mais-que-perfeita" e bem-vinda alienação dos terrenos da costa brasileira a centenas de empresas e pessoas estrangeiras, quer para a construção de hotéis e resorts, quer à construção de casas de veraneio. Desse segundo aspecto nada se fala ou pouco se houve na mídia, já que há o enriquecimento das classes sociais que são proprietárias de terras, ainda que muitas vezes essas vendas sejam ilegais e acarretem na desocupação de populações praianas que habitam o litoral brasileiro sem um "justo título" de propriedade dessas terras.

Portanto, é mais que possível afirmar que o princípio da soberania territorial é relativo. A relatividade desse princípio depende dos interesses econômicos das classes sociais que controlam a propriedade da terra: o princípio da soberania é mais rígido quando os interesses forem democrático-distributivos, e mais flexível quando os interesses foram despóticos e concentradores de riqueza.

***
* Errei: Fica no Estado de Roraima, conforme orienta o colega Léo, no comentário.

Orgulho do Brasil

Tem circulado na internet um email clamando por um orgulho pelo Brasil, pregando o amor por ser brasileiro. Nada contra. Sentir-se parte de algo, ou lutar por ter uma identidade é uma das características mais simplórias da humanidade. Porém, as coisas ganham outra dimensão quando esse tipo de apelo se reveste de um cariz nacionalista - aí as opiniões ficam um pouco mais melindrosas.

O teor do email não é nada ofensivo. Apenas mostra, de forma bem contundente, aquilo que todo brasileiro desconfia, mas não tem certeza; mostra o quanto o Brasil é um país rico e poderoso. O engraçado é que, colocando os recursos naturais em segundo lugar, o texto faz um apelo pelo progresso que o País atingiu no plano industrial, isto é, pinta um cenário até certo ponto bastante realista sobre a atual economia nacional.

Entretanto, o que o texto do email não deixa claro é que, mesmo sendo um país que tem tido bons resultados econômicos diante de seus desafios desenvolvimentistas, só a pouco é que essa industrialização começou a se espalhar pelo território nacional. Até bem pouco tempo, talvez anos 1980, era comum a migração interna de milhões de pessoas, fugidas da miséria e da pobreza do sertão nordestino, em busca de uma vida melhor (nas favelas) no Sul do País.

Outro fato que o texto ignora é que os avanços industriais sacrificam de forma absurda os recursos naturais, pela simples razão de que é impossível haver crescimento econômico sem a delapidação de recursos naturais -- o sistema de produção é invariavelmente concebido para transformar recursos naturais em recursos econômicos e, por isso, a destruição ambiental.

Ainda, o que aquele email não esclarece é que os movimentos sociais que hoje ocorrem no Brasil têm por objetivo democratizar diversas partes dessa nova e bem sucedida economia: democratizar o acesso à terra e às funções estatais (Legislativo, Judiciário e Executivo); viabilizar políticas sociais, fazendo com que elas "saiam do papel" e se tornem efetivas.

o texto não explica porquê a corrupção e a mafiocracia brasileiras impedem ou dificultam o exercício da cidadania. Não fica claro porque a corrupção indigna os milhões de brasileiros que labutam "7 dias por semana" e porque uma minoria controla não só o Poder social, mas todos os recursos produtivos. Nem diz porquê é tão importante alienar e afastar o povo do real exercício do Poder democrático.

Mais importante ainda, o(s) autor(es) do texto esqueceram-se de explicar que existem milhões de pessoas (a maioria delas jovens e crianças) sem a menor oportunidade de participar nesse sucesso econômico, seja por não possuírem os graus mínimos de educação formal para entrar no mercado de trabalho, seja porque a própria lógica do mercado de trabalho torna impraticável absorver todas essas pessoas na produção de bens, produtos e serviços. O que implica dizer que, para cada "cidadão de bens", devem existir necessariamente milhares de pessoas sem possibilidade de adquirir esses bens ou riquezas sociais.

É. haviam muitas brechas naquele texto, que me fizeram pensar sobre muitas coisas. Mas o que me deixa mais preocupado é ver renascer e ganhar força ao redor do País a idéia de que é preciso mais ordem, mais rigor, através de discursos do tipo "linha dura", que apostam num progresso cego e anti-social. Não podemos nos esquecer que a ditadura acabou a menos de uma geração atrás, e que se ela um dia existiu é porque havia conivência/conluio entre o comando e certos setores sociais (principalmente a classe média, que é quase-que-obrigatoriamente reacionária).

Eu penso que os motivos para se ter orgulho do Brasil são outros. Penso que todo brasileiro deve ter orgulho, primeiro, por finalmente ser possível protestar contra o exercício arbitrário do Poder e contra a corrupção da classe política. Festejar porque é possível clamar por justiça social, através de manifestações na rua -- mesmo que para isso seja necessário quebrar o "direito sagrado da propriedade" e importunar a ordem estabelecida. Agradecer, dia após dia, o direito de manifestar o pensamento -- por mais absurdo que seja --, porque a liberdade e expressão é um direito humano universal e inalienável.

Finalmente, soa um bocado estranho ter "orgulho do Brasil". Afinal, sentimento tão nobre não deveria ser desperdiçado sobre coisas, ainda mais quando essas coisas são meras abstrações. O Brasil não existe. O que existe é um povo, que habita um determinado território e luta por definir uma identidade qualquer, há mais de 500 anos.

quinta-feira, 20 de novembro de 2008

União sagrada para a vigarice sagrada - por Éric Toussaint*

(Este artigo encontra-se em http://resistir.info/)

"O salvamento dos bancos e dos seguros privados realizado em setembro-outubro de 2008 constitui uma escolha política forte que não tinha nada de inelutável e que compromete o futuro em vários níveis decisivos.

"Em primeiro lugar, o custo da operação fica inteiramente a cargo dos poderes públicos, o que implicará um aumento muito importante da dívida pública[1]. A crise capitalista atual, que durará ao menos vários anos, até mesmo uma dezena de anos[2], vai implicar uma redução das receitas do Estado enquanto aumentarão os seus encargos ligados ao reembolso da dívida. Em consequência, as pressões para reduzir as despesas sociais vão ser muito fortes.

"Os governos da América do Norte e da Europa substituíram um andaime balouçante de dívidas privadas por uma montagem esmagadora de dívidas públicas. Segundo o banco Barclays, os governos europeus da zona euro em 2009 vão emitir novos títulos de dívida pública num montante que deveria atingir 925 bilhões de euros [3] . É uma soma colossal, sem contar as novas emissões de títulos do Tesouro pelos Estados Unidos, Grã-Bretanha, Japão, Canadá, etc. Entretanto, até recentemente, havia um consenso desses mesmos governos no sentido de reduzir a dívida pública. Os partidos da direita, do centro e da esquerda tradicional apoiaram todos a política de salvamento favorável aos grandes acionistas sob o pretexto falacioso de que não havia outras soluções para proteger a poupança da população e o funcionamento do sistema de crédito.

"Esta união sagrada significa a transferência da fatura à maioria da população, que será convidada a pagar as travessuras dos capitalistas sob diferentes formas: redução dos serviços que o Estado fornece à população, perdas de emprego, baixa do poder de compra, aumento das contribuições dos pacientes para os cuidados de saúde, dos pais para a educação dos filhos, redução dos investimentos públicos... e um aumento dos impostos indiretos.

"Como são financiadas atualmente as operações de salvamento que estão em curso na América do Norte e na Europa? O Estado contribui com dinheiro fresco para bancos e seguradoras à beira da falência, seja sob a forma de recapitalização seja sob a forma de compra dos ativos tóxicos das empresas referidas. O que fazem os bancos e as seguradoras com esse dinheiro fresco? Essencialmente, eles compram ativos seguros para substituir ativos tóxicos no seu balanço. Quais são os ativos mais seguros neste momento? Os títulos da dívida pública emitidos pelos Estados dos países mais industrializados (títulos do Tesouro dos EUA, da Alemanha, da França, da Bélgica...).

"A fivela está afivelada: o Estado dá dinheiro às instituições financeiras privadas (Fortis, Dexia, ING, bancos franceses, britânicos, norte-americanos...). Para fazer isso, os Estados emitem títulos do Tesouro público que são subscritos por esses mesmos bancos e seguradoras, que são mantidos no setor privado (pois o Estado não pediu que o capital que ele concede lhe dê o direito de tomar as decisões, nem mesmo de participar nas votações) e que fazem novos lucros emprestando o dinheiro fresco que acabam de receber dos Estados[4],a esses mesmos Estados, exigindo naturalmente um juro máximo...

"Essa enorme vigarice em curso beneficia-se da lei do silêncio. A omerta está em vigor entre os principais protagonistas: governos, banqueiros ladrões, seguradoras rufiãs. Os grandes media evitam cuidadosamente analisar até o fim o mecanismo de financiamento das operações de salvamento. Eles demoram-se nos pormenores: a árvore que esconde a floresta. Exemplo: a grande questão que se coloca na Bélgica a propósito do financiamento da recapitalização do Fortis, que fica sob o controle do BNP Paribas, é a seguinte: quanto valerá a acção do Fortis em 2012 quando o Estado que se tornou comprador poderá revendê-la? Naturalmente, ninguém pode responder seriamente a essa questão, mas isso não impede a imprensa de a ela consagrar páginas inteiras. Isto permite desviar a atenção. A filosofia e o mecanismo da operação de salvamento não são analisadas. Será preciso esperar que, graças à operação conjugada dos media alternativos, das organizações de cidadãos, das delegações sindicais e dos partidos políticos da esquerda radical[5], essa grande vigarice venha a ser compreendida por uma parte crescente da população e denunciada. Isso não será fácil, uma vez que o alarido é considerável.

"À medida em que a crise se agravar nascerá um profundo mal-estar que se transformará em desafio político em relação aos governos que realizaram esse tipo de operação. Se o jogo político prosseguir sem grande perturbação, os governos de direita hoje no poder serão substituídos por governos de centro-esquerda que prosseguirão uma política social-liberal. Da mesma forma, os atuais governos sociais-liberais serão substituídos por governos de direita. Cada um por sua vez, eles criticarão a gestão dos seus antecessores afirmando que esvaziaram os cofres do Estado[6] e que não há margem de manobra para concessões às reivindicações sociais.

"Não há nada de inelutável em político. Um outro cenário é inteiramente possível. Primeiro, é preciso afirmar que se pode perfeitamente salvar a poupança dos cidadãos e o sistema de crédito de uma outra maneira. Pode-se assegurar a proteção da poupança da população graças à colocação sob estatuto público das empresas de crédito e de seguros à beira da falência. Por outras palavras, trata-se de as estatizar ou de as nacionalizar. Isso significa que o Estado que se torna proprietário garante a responsabilidade da sua gestão. A fim de evitar que o custo desta operação recaia sobre a esmagadora maioria da população que não tem nenhuma responsabilidade na crise, os poderes públicos devem fazer pagar aqueles que estão na origem desta. Basta recuperar o custo do salvamento das empresas afetadas tomando um montante igual do patrimônio dos grandes acionistas e dos administradores. Evidentemente, isso implica levar em conta o conjunto desses patrimônios e não apenas a parte saída das sociedades financeiras em falência.

"O Estado deve igualmente iniciar processos legais contra os acionistas e os administradores responsáveis pelo desastre financeiro, a fim de obter ao mesmo tempo reparações financeiras (que vão para além do custo imediato do salvamento) e condenações a penas de prisão se a culpabilidade for demonstrada. É preciso também tomar um imposto de crise sobre o grande capital a fim de financiar um fundo de solidariedade para as vítimas da crise (nomeadamente os desempregados) e para criar emprego em setores úteis para a sociedade.

"Numerosas medidas complementares são necessárias: abertura da contabilidade das empresas com direito de vista às organizações sindicais, levantamento do segredo bancário, proibição dos paraísos fiscais a começar pela proibição às empresas de ter qualquer transação ou ativo que seja com ou num paraíso fiscal, imposto progressivo sobre as transações em divisas e sobre os produtos derivados, instauração do controle sobre os movimentos de capitais e sobre os câmbios, travagem de toda nova medida de desregulamentação/liberalização dos mercados e dos serviços públicos, retorno a serviços públicos de qualidade... O agravamento da crise remeterá à ordem do dia a questão da transferência de setores industriais e de serviços privados para o setor público, assim como a questão da execução de planos vastos para a criação de empregos.

"Tudo isso permitiria sair desta crise grave pelo alto, a saber, levando em conta o interesses das populações. Trata-se de reunir as energias para criar uma relação de forças favorável à colocação em prática das soluções radicais que têm como prioridade a justiça social."

- Notas:

"|1| Do lado dos governos e da Comissão Européia, no entanto encarregada de velar pelo respeito às normas de Maastricht, evita-se cuidadosamente o assunto. Quando os jornalistas se tornam realmente insistente, o que é muito raro, é-lhes respondido que não se tinha escolha. É preciso também precisar que vários governos realizam, tal como os bancos falidos, operações fora do balanço ou fora do orçamento a fim de dissimular o montante exato das suas obrigações em termos de dívidas publicas.

"|2| Pode-se comparar com a crise em que se debateu o Japão a partir do princípio dos anos 1990 e de que ele saiu só quando esta crise o atingiu com plena intensidade.

"|3| Segundo o Barclays, esta soma seria repartida como se segue: 238 bilhões para a Alemanha, 220 bilhões para a Itália, 175 bilhões para a França, 80 bilhões para a Espanha, 69,5 bilhões para os Países Baixos, 53 bilhões para a Grécia, 32 bilhões para a Áustria, 24 bilhões para a Bélgica, 15 bilhões para a Irlanda e 12 bilhões para Portugal.

"|4| Naturalmente, o dinheiro fresco oferecido pelo Estado não será utilizado unicamente para a compra de títulos do Tesouro, servirá igualmente para novas reestruturações bancárias assim como para o lucro direto dos bancos.

"|5| Esperemos que se possa contar igualmente com parlamentares que façam sua tarefa e com jornalistas que nos grandes media desejem realmente analisar de modo crítico a maneira como o salvamento bancário é até agora realizado.

"|6| Eles poderiam denunciar isto ou tentar agir desde já no interior das instituições parlamentares. Se não o fazem, então é evidente que sabem perfeitamente que a dívida pública vai aumentar fortemente, é que eles concordam com a orientação escolhida. De fato, eles escolheram a união sagrada que romperão com o aproximar das eleições."

(O original encontra-se em http://www.cadtm.org/spip.php?article3845)

***

* Éric Toussaint é presidente do Comitê pela Anulação da Dívida do Terceiro Mundo da Belgique (CADTM); é formado em história e doutor em ciências politicas pela Universidade de Liège (ULg) e de Paris VIII; é membro do conselho científico de Attac France, da rede científica de Attac Belgique e do conselho internacional do Forum Social Mundial; também é membro do comitê internacional da Quarta Internacional e da sua seção belga (LCR-SAP).

O discurso da crise

A "nova" crise econômica global é um problema retórico. Apesar da propaganda que é feita em torno do atual downturn, a recessão econômica anunciada atinge apenas a parcela mais frágil das Sociedades, qual seja, os trabalhadores. Essa é uma análise prática da situação, tendo em vista o bail-out do sistema financeiro e os subsídios conferidos às multinacionais européias e norte-americanas.

Na composição desse cenário, o G20 representa uma reorganização da geopolítica mundial que não significa necessariamente uma democratização do sistema de produção econômica, mas o fortalecimento das atuais estruturas de controle social. Isso porque embora um maior número de países tomem parte nas negociações internacionais sobre as movimentações comerciais e financeiras e isso signifique uma melhoria das condições de produção e comércio, o comando e as diretrizes gerais ainda continuam a ser impostas pelos países do Norte, contra os interesses das populações do Sul. Isso quer dizer que o papel dos irmãos pobres do Sul continua a ser o de produzir para satisfazer as demandas dos irmãos ricos do Norte -- inclusive, com a mantuenção do sistema de classes sociais no interior dos países periféricos e semi-periféricos.

É pertinente ainda afirmar que a globalização cultural remodelou o conceito de classes sociais e diluiu a questão identitária nessa recomposição. Isso significa que a aculturação do novo modelo de organização social é estabelecida através de novas hierarquias no sistema de pertença cultural, deslocando o eixo identitário através do tipo de mensagem/mídia (internet, imprensa, rádio, televisão) e, sendo esta sociedade global uma "sociedade de informação em rede", a antiga exclusão econômica (a nível laboral) agora surge como exclusão tecnológica (a nível informático). Assim, enquanto não forem estabelecidas novas formas de resistência e contra-cultura, não será possível oferecer ações sociais suficientemente fortes, visto que o processo de colonização das novas mídias segue a lógica TOP-DOWN.

A conjugação dos dois fatores acima delineados (econômico e tecnológico) é crucial para perceber porque a atual crise é um falso problema, isto é, uma estratégia discursiva. Primeiro, porque a externalização dos prejuízos financeiros provocados pela expeculação capitalista revela uma socialização do ônus, ou seja, as empresas e agentes econômicos empurram a responsabilidade pelo pagamento das dívidas ao Estado, e este repassa os dividendos ao público, em forma de impostos e aumento da dívida pública. Segundo, porque a recuperação financeira não impede que as empresas e agentes financeiros continuem a garantir lucros e fortalecer posições de monopólio e cartel, como se evidencia nos despedimentos coletivos em nível global e no aumento dos preços ao consumidor. Terceiro e não menos importante é pensar que essas estratégias discursivas são bem sucedidas porque tem a sua disposição as mídias dominantes, sendo certo afirmar que, se a mídia é a mensagem, a mensagem (o conteúdo a ser apreciado e publicamente valorado) será sempre aquilo determinado pelos grandes canais de comunicação global -- sejam eles os grandes portais e/ou os grandes grupos de comunicação multinacionais).

Portanto, o que se pode observar é que a "nova" crise não passa de uma repetição, ou um ciclo dentro de um novo contexto, num mesmo sistema ideológico. A socialização dos prejuízos financeiros causados por bancos e outras instituições, associada à estagflação já anunciada (inflação + queda na produção + desemprego) é um duro golpe contra a democracia, ainda quando se pensa na impunidade e anistia que é dada aos mais ricos, em detrimento do castigo dos mais vulneráveis.

sábado, 15 de novembro de 2008

Change: yes, we could...

Não me lembro de ter acompanhado um mote tão bem elaborado na política dos últimos 10 anos como o de Barack Obama: "Change: yes we can!". Inspirador, popular e ... demagógico? Qual é a real mudança que virá deste governo?

Na área da defesa, praticamente nenhuma, vez que as intervenções militares ao redor do planeta continuarão -- pelo menos é o que está previsto para o Iraque e Afeganistão. Inclusive porque Barack Obama irá manter em seus atuais cargos: Colin Powell, Robert Gates -- Secretário de Defesa e Chefe do Estado-maior, respectivamente.

Mas as continuidades não param por aí. No discurso após a reunião com o G20, Bush discursa -- com seu sotaque texano e a inteligência de uma ameba --, afirmando que o objetivo final daquela reunião seria garantir o livre mercado. Hum... Obama, de Chicago, apoia. E a regulamentação global do mercado financeiro? Fica para depois, talvez.

Contudo, não estranhe, prezado e surpreso leitor. Isso tudo é muito normal. Faz parte de uma estratégia simples, na qual os eleitos representam um determinado papel, que é escrito nos bastidores por hábeis analistas e intelectuais, tudo para o benefício geral da(s) nação(ões).

Change, well... Yes, you should, but you won't.

quarta-feira, 12 de novembro de 2008

"Diga não às drogas" - trecho de palestra com Thomas Szasz

Thomas Szasz vem causando uma enorme controvérsia nos meios psiquiátricos norte-americanos. Esse psicanalista de 88 anos é um dos responsáveis pelas mais abrasivas e bem orientadas críticas contra o tratamento de crianças "diagnosticadas" com TDA (Transtorno com Déficit de Atenção com Hiperatividade). Com área de interesse bastante ampla, seus trabalhos envolvem psiquiatria forense, psicologia, Direito e Filosofia -- mas seu foco dos últimos anos incide sobre a luta contra a administração de drogas em crianças.

De acordo com os acadêmicos e investigadores do ramo da psiquiatria, o TDA ou DDA -- Distúrbio de Défict de Atenção, como também é chamada essa "doença" -- atinge de uma média de 4% das crianças em idade escolar, e dizem os cientistas médicos que essa disfunção cerebral é responsável pelo comportamento de inquietude, falta de concentração e impulsividade em crianças. Nos Estados Unidos da América é comum a administração de cloridrato de metilfenidato (comercializado com o nome de "Ritalina"); isso significa que existem, hoje, milhões de crianças a tomar o tal medicamento, por serem "inquietas, desatentas e impulsivas".

Confesso que nunca tinha dado a devida atenção a um assunto tão sério. O que me causa um profundo desconforto é que a padronização social está começando cada vez mais cedo e colocando em risco a saúde e o bem estar de crianças, não só nos EUA, mas no Brasil e ao redor do mundo. Causa-me grande espanto, nesse contexto, observar que a sala de aula, que deveria ser um espaço de convivência e construção de personalidade, está se convertendo dia-a-dia numa extensão da indústria, do escritório, do consultório psiquiátrico, enfim, tornou-se o lugar de excelência ao controle e domínio sobre a liberdade dos infantes.

O sistema de "aprendizado em massa" que colocamos à disposição dos infantes está sendo subvertido num sistema de controle disciplinar desnecessariamente perigoso ao desenvolvimento de cidadãos sadios e equilibrados. O que quero dizer com isso é que, privadas de espaços amplos e verdes, as crianças precisam descarregar suas energias de alguma forma, e a escola seria o melhor lugar para isso, obviamente pela rara oportunidade diária de reunião entre centenas de indivíduos em formação.

Nos dias que correm, é correto afirmar que a maioria das crianças vivem "aprisionadas" dentro de casa, ou nos condomínios fechados, estando cada vez mais privadas de espaços públicos pela violência e, se isso não bastasse, privadas da presença e do acompanhamento familiar. A vida agitada, as longas jornadas de trabalho dos adultos -- e o inevitável cansaço --, os problemas financeiros (...), todos esses fatores da vida familiar têm influência no comportamento de uma criança -- e a escola é o palco aonde esses pequenos atores interagem com outros adultos (professores e funcionários que exercem o controle sócio- disciplinar) e outras crianças e exteriorizam suas emoções e, algumas vezes, piores demônios.

Não posso deixar de dizer que esse é um cenário bizarro. Antigamente, talvez ainda no tempo de meus pais, os alunos mal comportados eram castigados com a palmatória ou a régua do(a) professor(a). Hoje, drogam-se os alunos. Isso é um absurdo! É natural que isso cause indignação até nas pessoas mais insensíveis.

No final das contas, quem sai lucrando com isso é a poderosa indústria farmacêutica, com suas mil e uma pílulas. Ironicamente, sou levado a crer que no futuro próximo seremos todos obrigados a tomar algum tipo de droga, todas as vezes que formos diagnosticados como "tristes", ou "felizes demais", ou qualquer outro comportamento considerado "inadequado".

Antes de queremos ter crianças competentes, deveríamos querê-las contentes. Assim, junto ao vídeo com o trecho da palestra de Szasz, reproduzo o seguinte pensamento: criança feliz é criança danada, livre, brincalhona, energética e "bagunceira".


(Ao meu amigo Zé Luis)

sábado, 8 de novembro de 2008

A branquitude ressentida e Barack Obama - por Lourenço Cardoso*

A branquitude ressentida e Barack Obama, ouse a raça não é importante depende de quem diz.


Barack Obama foi o primeiro negro eleito presidente dos Estados Unidos. Em sua campanha, procurou desvincular sua imagem da idéia de raça. No jogo das identidades, apelou para sua identidade nacional, distanciando-se da identidade racial.

O senador argumentou que era mestiço: filho de mãe branca americana e pai negro africano. A idéia implícita que o então senador procurou passar durante o desenrolar da disputa eleitoral foi que a raça não era importante. Enquanto candidato, ambicionou tanto os votos dos brancos, quanto dos negros, assim como todos os políticos, procurou angariar votos sem distinção.

Entretanto, pergunta-se: será que a raça não é realmente importante? Se a raça não fosse relevante, por que o senador Barack Obama teve que enfatizar esse recado de maneira direta e inequívoca e, também muitas vezes, de forma implícita? Talvez mais adequado seria o senador sustentar que a idéia de raça não deveria ser considerada relevante, ou seja, no sentido de ser um fator de vantagem e desvantagem. A maioria dos negros norte-americanos votou em Barack Obama; negros que são pessoas distintas, inclusive pertencentes ao Partido Republicano, que também teve a maioria de seus votos provenientes de eleitores latinos, isto é, voto étnico. Portanto o resultado apontado na apuração indicou os dados racial e étnico como elementos significativos que influenciaram a escolha do novo chefe do executivo norte-americano.

Em sua campanha, quando o Barack Obama "falou" ou se "calou" estrategicamente sobre sua pertença racial, sua intenção seria justamente de não perder votos porque é negro. Todavia, aceitou de bom grado os votos recebidos por causa de sua pertença racial. O candidato eleito Barack Obama foi considerado negro aos olhos da opinião pública mundial, especialmente por causa das imagens e notícias veiculadas pela mídia, apesar de ter se esquivado dessa identidade racial, durante o decorrer de sua campanha.

A branquitude -- ou a identidade racial branca (1) --, sempre se vangloriou de sua condição de poder imanentemente superior. Neste momento, com a vitória de Barack Obama, a branquitude começa a tomar também para si o argumento de que a raça não é importante. Porém, trata-se de uma branquitude ressentida, que passa a sustentar esse discurso porque não suporta ver, ou pior, por ser obrigada a obedecer a um negro que se encontra num nível hierárquico superior -- aquele ocupado historicamente por brancos.

Por isso, a partir de agora, ouvir-se-á muitas vezes da "boca" da branquitude um novo discurso, de que "o negro não seria negro, assim como branco não seria branco", porque "a raça não existe". Contudo, no íntimo, a branquitude ressentida simplesmente não admite estar num patamar inferior ao negro. Até o presente momento na história norte-americana, nenhum presidente necessitou deparar-se com a idéia de raça presente e persistente, a todo instante em sua campanha, de forma direta ou indireta. Logo, o argumento de que a raça não é importante possui intenções diferentes, que dependerá muito da pessoa, ou grupo que o professa.

Nesta perspectiva da abolição do conceito de raça, destaca-se o intelectual Paul Gilroy (2). Esse autor propõe o abandono da utilização política e analítica da idéia raça, porque esse seria o melhor caminho para o fim do racismo, levando-se em consideração que a raça não deixa de ser uma idéia que o opressor inventou.

No caso da branquitude ressentida, a idéia de que a raça não existe seria defendida por causa da sensação de incômodo do branco, que entra em crise quando se depara com um negro num cargo de maior poder e prestígio -- a posição que o branco sempre ocupou. A convincente vitória eleitoral de Barack Obama expõe essa branquitude ressentida. Nos Estados Unidos, ela poderá ser encontrada expressa nos discursos dos brancos eleitores, ou simpatizantes do Partido Republicano que apoiaram candidato republicano e senador branco John MacCain.

O presidente "negro" (ou talvez "mestiço") Sr. Barack Obama também expõe a branquitude revoltada, expressa na branquitude acrítica (3). Essa branquitude revoltada é representada pelos brancos que aprovam o racismo publicamente, como por exemplo, os membros dos grupos neonazistas e da Ku, Klux, Klan -- gurpos que já ameaçam assassinar Barack Obama. Simplesmente porque ele seria negro. Ou, talvez, por ser mestiço que possui uma parte negra, fato para eles inaceitável. Ou, porque sendo eles "brancos puros" seriam, por isso, os únicos cidadãos autenticamente estadunidenses.

* Notas

(1) Acerca da branquitude, ver: CARDOSO, Lourenço (2008). O branco "invisível": um estudo sobre a emergência da branquitude nas pesquisas sobre as relações raciais no Brasil (1957-2007). Dissertação de mestrado, Faculdade de Economia e Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Ainda: CARONE, Iray e BENTO, Maria Aparecida da Silva (org.) (2002). Psicologia social do racismo: estudos sobre branquitude e branqueamento no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Vozes.

(2) Acerca do fim da idéia de raça proposto por Paul Gilroy, veja: GILROY, Paul (1998). Race ends here. Abingdon, Oxford: Ethnic and racial studies, vol. XXI, nº 5, 838-847.

(3) Acerca da branquitude acritíca, pode-se colher um estudo mais aprofundado em: CARDOSO (2008), pp. 178-180.

***

Lourenço Cardoso nasceu na capital de São Paulo, Brasil. Formado em História pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Mestre em Sociologia pela Universidade de Coimbra (UC). É escritor e ativista do movimento negro. Suas principais áreas de interesse são relações raciais e literatura. Escreveu alguns trabalhos dentre os quais: O branco "invisível": um estudo sobre a emergência da branquitude nas pesquisas sobre as relações raciais no Brasil (1957-2007) [dissertação de mestrado]; o livro de poesia "O peso do Mundo", São Paulo, Edição do Autor, 2002, e as peças teatrais: "Preto", "Assassinaram o canalha" e "Perdoe o filha da puta" (no prelo). Também participou das antologias poéticas: "Revista Oficina de Poesia" Viseu: Palimage Editora, 2006; "Revista Oficina de Poesia: 10 Anos" Viseu: Palimage Editora, 2006; QUILOMBHOJE (org.) Cadernos Negros Volume 29. São Paulo: Autores, 2006.

Cinema, política e globalização - entrevista com Slavoj Zizek

Uma rápida mas imperdível entrevista com Slavoj Zizek.

Zizek é um psicanalista ioguslávio (esloveno) e professor de Sociologia na European Graduate School. Este pensador vem ganhando cada vez mais notoriedade na mídia global, vez que sua linha de pesquisa aborda temas que envolvem psicanálise, teoria política (marxismo), economia e artes, de maneira transversal e interconectada .

Vale a pena assistir (dublado em português).

quinta-feira, 6 de novembro de 2008

A vida privada dos representantes públicos

É cediça a confusão entre a vida pública e a vida privada dos representantes públicos. Homens e mulheres de governo estão sempre sujeitos à execração popular até mesmo por causa da mais banal das atitudes. Isso se dá pela idéia pérfida de que esses homens e mulheres são os "melhores exemplos" da Sociedade e devem, por essa razão, cultivar os melhores hábitos e zelar pelos bons costumes.

Ledo engano, esse hábito de mistura entre o caráter particular (privado) com o exercício das atribuições políticas de um indivíduo não encontra convergência, a não ser em casos excepcionais. No geral, tais espectativas são nada mais do que 1) uma válvula de escape às pressões cotidianas da população e 2) ferramenta à disposição de políticos oportunistas.

Existem casos em que o fenômeno sob escrutínio torna-se ridículo, levando às situações mais esdrúxulas: desde o profundo debate sobre qual seria a correta utilização dos charutos na Sala Oval da Casa Branca, até à nova e seríssima discussão sobre a raça do novo cão das filhas do recém-eleito presidente dos EUA.

Porém, antes que o incauto leitor comece a se debater sobre dúvidas terríveis -- em lembrar do "caso dos charutos", ou em saber se os Obama deveriam optar por um labrador, ou por um chiuaua --, deve pensar o que esse fenômeno significa. Significa que, diante da popularidade de certas figuras públicas (ou pessoas que representam um papel no grande palco social), existe um apelo emocional por uma participação concreta e real na vida cívica.

Ao que tudo indica, nessa mistura (confusão) ou interrelação dinâmica público-privado, o eleitor quer e tenta a todo custo manter uma ligação viceral com o candidato, o que revela um processo de sublimação: ele troca a participação na gestão da coisa pública pela participação na gestão dos atos do gestor -- afinal, ele é um mandatário.

Essa dinâmica mereceria um estudo mais sério e aprofundado, por revelar a existência de diversos atores sociais e porque cada um desses atores é detentor de um conjunto próprio de interesses. A conjugação desse amálgama de forças e interações cria o conhecido "jogo político", e é sobre aquele processo de sublimação que também atuam os diversos grupos de pressão.

A história registra muito bem o uso da imagem privada de candidatos contra as suas candidaturas: nas eleições presidenciais brasileiras de 1989 (Collor vs. Lula) e de 2006 (Serra vs. Lula); nas eleições presidenciais norte-americanas de 2000 (Bush vs. McCain) e de 2008 (McCain vs. Obama). Contudo, nem sempre quem se mete na vida alheia (ou mente) sai vitorioso... Talvez porque o povo às vezes se compadece do candidato atacado, ou talvez porque se não perdoar aquele pecador, pode não ter o seu pecado perdoado.

Assim, acalentada pela hipocrisia cultural de cada povo, o representante político segue seu caminho, ao ritmo da promiscuidade aditada a sua vida. E no rumo da bisbilhotice, fica o recado para os próximos candidatos: "quem não pode com o pote, não segure na roudilha".

terça-feira, 4 de novembro de 2008

O meio ambiente da corrupção no Ceará

Os livros de História já ilustram o perfil predatório da ocupação do solo no Brasil. De Pedro Álvares Cabral ao Governo Lula, do litoral à floresta, do sertão da catinga ao pantanal, colonizadores e colonos substituem-se na atividade que tornou "viável" a ocupação do território brasileiro: a depredação dos recursos naturais. 

Nesse contexto, a história do Município de Fortaleza (CE) não é diferente. De todos os lados, surgem relatos sobre a devastação de reservas ambientais: a destruição das dunas da Praia do Futuro; a desmatação do manguezal do Rio Cocó; urbanização e poluição da Beira Mar, etc. O que se passa na Capital também ilustra o que ocorre no resto do Estado: urbanização da Lagoa do Banana; depredação de Jijoca e Jericoacoara; a destruição das reservas florestais da Serra da Ibiapaba, Ubajara, Maranguape, etc. Esta semana, a "Operação Marambaia" da Polícia Federal levou à captura de meia dezena de funcionários públicos que estariam envolvidos em esquemas imobiliários irregulares e ilegais (leia mais aqui).

A depredação ambiental enriqueceu e continua a garantir o enriquecimento ilícito de diversas pessoas que trabalham no setor imobiliário cearense. Não são poucas as histórias de pessoas que aumentaram seu patrimônio de maneira exponencial às custas da natureza, e também não é de hoje que a Sociedade cobra ações concretas e eficientes na proteção ambiental. Ao que tudo indica, a única forma viável de crescimento econômico é a utilização indiscriminada e insustentável do meio ambiente. Diretamente proporcional à destruição do meio ambiente está a ação corrupta/criminosa de represetantes e agentes públicos - daqueles que teriam a incumbência de gerir a coisa pública e, especificamente, o patrimônio ambiental.

Entretanto, pouco ou nada se falou acerca dos corruptores, isto é, dos empresários e particulares que financiaram esses esquemas e, consequentemente, obtiveram os alvarás e autorizações para construir seus empreendimentos nas zonas ecológicas protegidas. Dessa forma, ainda há trabalho por fazer. É evidente que as autoridades públicas devam ser responsabilizadas (civil, criminal e administrativamente). Mas também é preciso que a Polícia Federal amplie suas investigações, para que todas as corretoras e imobiliárias que estiveram envolvidas nesses esquemas criminosos sejam devidamente processadas e julgadas. 

Finalmente, no julgamento da culpabilidade desses atores anti-sociais, as penas aplicadas devem ser conter elevadas multas, além de outras sanções, não só para desencorajar a reicidência, mas para impedir que essas pessoas voltem a exercer a atividade econômica em questão. A pergunta é: a cultura jurídica cearense estará à altura desse desafio?

sexta-feira, 31 de outubro de 2008

"Uma Casa Branca Negra" - Por Boaventura de Sousa Santos*

(Publicado na Visão, em 23 de Outubro de 2008)

«É muito provável que o próximo presidente dos EUA seja um afro-descendente. O significado de tal facto é enorme e insere-se num processo histórico mais amplo. As três últimas décadas foram de muita esperança e desilusão a respeito da democracia representativa. Muitos países conquistaram ou reconquistaram a democracia neste período mas a garantia dos direitos cívicos e políticos ocorreu de par com a degradação dos direitos sociais, o aumento da desigualdade social, da corrupção e do autoritarismo.

«O desencanto, numa época em que a revolução não foi uma alternativa credível à democracia, fez com que surgissem novos actores políticos, movimentos sociais e líderes, na maioria dos casos com poucas ou nenhumas vinculações à classe política tradicional. As Américas são uma ilustração eloquente disto ainda que os processos políticos sejam muito diferentes de país para país. Em 1998 um mulato chega à presidência da Venezuela e propõe a revolução bolivariana; em 2002 um operário metalúrgico é eleito presidente do Brasil e propõe uma mistura de continuidades e rupturas; em 2005 um indígena é eleito presidente da Bolívia e propõe a refundação do Estado; em 2006 um economista sem passado político é eleito presidente do Equador com a proposta da revolução cidadã; em 2006 e 2007 duas mulheres são eleitas presidentes do Chile e da Argentina respectivamente e com projectos de continuidade mais ou menos retocada; em 2008 um bispo, teólogo da libertação, é eleito presidente do Paraguai e põe fim a décadas de domínio do partido oligárquico através da aliança patriótica para a mudança, e ainda em 2008 é provável que um negro chegue à Casa Branca com o slogan: “Change, yes we can”. Uma nova política de cidadania e de identidade, sem dúvida mais inclusiva, está a impregnar estes processos democráticos, o que nem sempre significa uma política nova. Por isso pode ser um sol de pouca dura. De todo modo, é importante que líderes vindos de grupos sociais que na história da democracia mais tarde conquistaram o direito de voto assumam hoje um papel de preeminência. No caso dos EUA, isto acontece apenas quarenta anos depois de os negros conquistarem direitos cívicos e políticos plenos.

«A eleição de Obama, a ocorrer, é o resultado da revolta dos norteamericanos ante a grave crise económica e a estrondosa derrota no Iraque, apesar de declarada como vitória até ao último momento, como já aconteceu no Vietname. O fenómeno Obama revela contraditoriamente a força e a fragilidade da democracia nos EUA. A força, porque a cor da sua pele simboliza um acto dramático de inclusão e de reparação: à Casa Branca dos senhores chega um descendente de escravos, mesmo que ele pessoalmente o não seja. A fragilidade, porque dois temores assolam os que o apoiam: que seja assassinado por racistas extremistas e que a sua vitória eleitoral, se não for muito expressiva, seja negada por fraude eleitoral, o que não sendo novo (o W. Bush foi “eleito” pelo Supremo Tribunal) representa agora uma ocorrência ainda mais sinistra. 

«Se nada disto ocorrer, um jovem negro, filho de um emigrante queniano e de uma norte-americana, terá o papel histórico de presidir ao fim do longo Século XX, o Século americano. A crise financeira, apesar de grave, é apenas a ponta do iceberg da crise económica que assola o país e tudo leva a crer que a sua resolução, a ocorrer, não permitirá que os EUA retomem o papel de liderança do capitalismo global que tiveram até aqui. Em nome da competitividade a curto prazo foi destruída a competitividade a longo prazo: diminuiu o investimento na educação e na saúde dos cidadãos, na investigação científica e nas infraestruturas; aumentaram exponencialmente as desigualdades sociais; a economia da morte do complexo militar-industrial continua a devorar os recursos que podiam ser canalizados para a economia da vida; o consumo sem aforro nativo e o belicismo sem recursos próprios fizeram-se financiar pelos créditos de países terceiros que não vão continuar a confiar numa economia dirigida por executivos vorazes e irresponsáveis que se atascam em luxo enquanto as empresas abrem falência e transformam os seus passivos em endividamento das próximas gerações.

«A União Europeia já chegou a esta conclusão e parece ter a veleidade de tomar o lugar dos EUA, apesar de nos últimos vinte anos só não ter sido uma aluna mais fiel do modelo norte-americano porque os cidadãos não permitiram. Acresce que nas relações com os países que na América Latina, na África e na Ásia podiam ser parceiros de um novo modelo económico e social mais justo e solidário a UE persiste em assumir posições imperialistas e neocoloniais que lhe retiram qualquer credibilidade. A transformação não virá da UE ou dos EUA. Terá de lhes ser imposta pela vontade dos cidadãos dos países que mais sofreram com os desmandos recentes do capitalismo de casino.»

* Boaventura de Sousa Santos é Professor Catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra e Distinguished Legal Scholar da Faculdade de Direito da Universidade de Wisconsin-Madison e Global Legal Scholar da Universidade de Warwick. É igualmente Director do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, Director do Centro de Documentação 25 de Abril da mesma Universidade e Coordenador Científico do Observatório Permanente da Justiça Portuguesa.

segunda-feira, 27 de outubro de 2008

A pena de morte no Brasil

No Brasil, a lei quase nunca encontra amparo na realidade, quer porque não se reconhece a sua legitimidade, quer porque simplesmente não se aplicam as regras previstas, quer ainda porque a prática social ignora a imperatividade normativa.

O caso da pena de morte não é exceção à este fato. Dia após dia são-nos reportadas as chacinas em cadeias, presídios e nas ruas das grandes e pequenas cidades. Casos de pena de morte, levados a cabo por autoridades públicas e por particulares, ao arrepio da lei, são práticas frequentes, e surgem como forma de punir (principalmente) pessoas que se encontram à margem da Sociedade.

Embora a legislação brasileira proiba a justiça privada ou popular e garanta o exame judicial às lesões e ameaças ao Direito, o fato é que, de uma forma direta ou indireta (de maneira ativa ou passiva), o Estado brasileiro "permite" a ação de esquadrões da morte, forças para-militares, grupos de estermínio, tortura (seguida de morte) -- para não falar da nova "moda" em política de segurança pública, que confere discricionariedade imediata aos de esquadrões de polícia especial, para aplicação de penas de morte nas favelas dos grandes centros urbanos.

A alínea "a" do inciso XLVII do artigo 5.º da Constituição Federal de 1988 estabelece que não haverá pena de morte, "salvo em caso de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX". Assim, somente em caso de agressão externa e com o aval do Congresso Nacional é que o Presidente poderá declarar guerra e poderá se legislar autorizando a pena de morte.

Mas o que acontece na realidade? Na prática, a fiscalização precária, a corrupção institucional generalizada, a aquiescência da Sociedade e a inexistência de políticas públicas legalizaram a pena de morte no Brasil. Na realidade, está anunciada uma nova espécie "guerra civil", em todo o território nacional.

Crise financeira e mídia, ou o Sol e a peneira

As explicações sobre a atual crise financeira pululam na mídia internacional. Acusações e desculpas correm por todos os lados, e culpados há muitos -- claro, dentre os que apostam no mercado financeiro. Nesse contexto, ao que tudo indica, cada grupo/empresa de comunicação social parece querer defender esta ou aquela "melhor explicação" para o fato de que eu, você ou todos nós vamos arcar com os prejuízos do esquema de enriquecimento ilícito praticado pelos grandes bancos do sistema financeiro global.

Por que a BOVESPA e outras bolsas de valores estão em queda? Porque os investidores internacionais estão exigindo a liquidez de seus títulos, porque o sistema financeiro internacional está na bancarrota. Em Agosto deste ano o FED (Banco Central dos EUA) já havia emprestado em torno de US$ 2 bilhões a quatro grandes bancos norte-americanos (Bank of America, JP Morgan Chase & Co, Citigroup e o Wachovia Corp.), e no começo deste mês de Outubro já havia anunciado um pacote de US$ 700 bilhões para salvar outros bancos do destino do Lehman Bros., ou seja, a falência.

Não há necessidade de explicações "mágicas" ou mirabolantes: o sistema ruiu. E a culpa reside nas "expectativas racionais" dos CEO's que, em busca de lucros e através de uma verdadeira "pirâmide financeira", conseguiram empréstimos financeiros e deram como garantias os passivos que tinham a receber, isto é, as dívidas sobre empréstimos de consumidores e clientes desses mesmos bancos.

Por um lado, apesar de estar pacificamente demonstrado que o colapso econômico que se propaga ao redor do mundo está intimamente ligado à captação de alto risco praticada por grandes bancos norte-americanos e ingleses (que inundaram o sistema financeiro global com garantias fictícias), a Folha de São Paulo parece querer adotar um «"jornalismo" autêntico», confundindo os efeitos com as causas -- como estabelece " o porquê disso" da reportagem que se lê aqui.

De outro lado, o que se pode perceber no conjunto dessas reportagens "bem orientadas" é que, ao que tudo indica, os governos devem mesmo intervir na saúde econômica. Só que as medidas econômicas concentram-se em garantir a rentabilidade a saúde dos bancos, na medida em que essas instituições seriam indispensáveis ao correto funcionamento do sistema econômico.
  • Minhas perguntas:
Havendo imperícia, negligência ou imprudência, não há necessidade de reparação? Qual o limite da culpa dos indivíduos que movimentaram esse "esquema"? Não haveria uma norma sequer, a regular essas atividades (a nível nacional, regional ou internacional)? Não seria possível fazer um julgamento político dessas instituições e limitar-lhes esse poder absoluto? Para que(m) trabalha o Estado afinal?
  • Minhas questões:
1) Qual é o motivo de tanta cautela midiática? Um dos motivos seria evitar o pânico entre os consumidores -- e uma inevitável e infrutífera corrida aos bancos, para retirada de aplicações, investimentos, poupanças e valores em conta corrente. Outro motivo seria tentar reverter o irreversível, na esperança de ressuscitar o já pútrido mercado de ações global. Neste item, há vasto campo para especulações - desculpe-me o trocadilho.

2) Se não há tanta cautela, contrariando o dito anteriormente, por que a linguagem utilizada na mídia é o "Economês"? Porque existe uma profunda ligação entre a linguagem e o Poder. Quem controla uma determinada linguagem acaba por exercer o controle sobre um determinado tema, e na seara econômica, os termos utilizados são "trade-off", "hedge", "sub-primes". Sim: a economia fala inglês. Some-se a isso as incompreensíveis siglas -- irreproduzíveis e inúteis neste momento.

3) Por que encobrir uma mudança na atitude política do Estado frente à Economia? Porque é preciso garantir que o nível de confiança da população mundial no sistema permaneça minimamente estável -- inclusive para que o sistema possa ser "reiniciado", para usar uma expressão da Informática. Porque o sistema tem funcionado com intervenções pontuais (ditas mínimas) do Estado durante quase 30 anos -- atuação necessária para garantir a saúde de grandes empresas e corporações multinacionais. Porque há um crescente receio e uma preocupação constante que esse "reinício" seja marcado por uma "grave" agitação social -- que altere profundamente as "regras do jogo".

Entretanto, convém advertir que mesmo que existe um sistema exo-congruente ao sistema financeiro, a gerir todo esse processo de (re)inserção do Estado na Economia: o sistema Jurídico. Pelos princípios consagrados neste campo, toda e qualquer instituição "social", quer por destinação originária, quer por contingência, está imersa sob o controle e diante do exercício da legalidade. Ainda, se os atos jurídicos devem estar conforme à legalidade, havendo ruptura da harmonia desejada (a violação do Direito), é necessário apurar a autoria da ação danosa, a extensão da culpa dos autores e os eventuais danos causados.

Portanto, digam o que quiserem, os jornais e seus repórteres -- os jornalistas estão ausentes (?). O que se torna inadmissível é não haver a responsabilização de diretores e presidentes das instituições financeiras que organizaram essa ciranda financeira, porque o resgate desse prejuízo é pago com dinheiro público.

quarta-feira, 15 de outubro de 2008

A crise financeira já era esperada

A última semana foi marcada por um grande burburinho na mídia global: estava anunciada uma crise financeira, causada pela bolha especulativa que já havia sido detectada por economistas no início dos anos 2000. Enquanto a inflação atinge bilhões de pessoas ao redor do mundo e os investidores não conseguem estimar se o sistema voltará a funcionar "normalmente", os governos do grupo dos G8+Rússia anunciam planos de recuperação financeira, despejando no mercado somas astronômicas (de dinheiro público).

De fato, a atual crise teve suas origens nos começo dos anos 1970, quando os Estados Unidos da América puseram fim à regulamentação do mercado financeiro e ao lastro em ouro da moeda norte-americana, quebrando o pacto do pós-guerra de Bretton Woods e estabelecendo o dólar como a moeda de trocas internacional.

Com efeito, se retornarmos na linha temporal, poderemos ver que, com a chegada ao poder da linha de pensamento neoliberal foram abandonas as políticas de intervenção estatal na economia, nomeadamente, aquelas que exerciam controle sobre o sistema financeiro e, concomitantemente, sobre o mercado internacional de capitais. Chamem-lhe "tatcherismo" ou "reaganismo", o fato é que, desde que a teoria das expectativas racionais de Milton Friedman foi laureada com o prêmio Nóbel de Economia (1976), o mercado assumiu um status de omnipotência sobre a política, e a intervenção dos Estados no sistema mundo de produção capitalista globalizada foi combatida duramente pelo núcleo duro do pensamento economicista mundial.

Foi dessa lógica de não-intervenção que surgiram diversas "recomendações" e "consensos" econômicos, traçando as novas diretrizes e finalidades aos Estados: a desregulamentação da economia e do mercado de trabalho; a diminuição de custos produtivos pela desconstrução dos direitos sociais e assim por diante. Um dos melhores exemplos a ilustrar esse conjunto de diretivas é o documento elaborado pelo FMI e pelo Banco Mundial: intitulado "Consenso de Washington", ele contém em 10 pontos todos os itens de uma receita neoliberal para a nova ordem mundial.

Continuando essa "fábula da sabedoria do mercado", nos anos de 1990 o mundo assistiu perplexo ao turbilhão financeiro causado pela volatilidade dos investimentos especulativos na economia mundial. Argentina, Rússia, Brasil, México e os "Tigres Asiáticos" foram atingindos por um "tsunami econômico" quando, numa rápida intervenção especulativa, um grupo de "investidores" movimentou um volume absurdo de capital que entrou e saiu daqueles mercados, causando a queda dos índices das bolsas de valores daqueles países e um colapso em suas economias que, para "voltarem ao normal", precisaram de várias intervenções (leia-se "empréstimos financeiros condicionados") do FMI.

Finalmente, no início do século XXI o mercado financeiro foi surpreendido pela crise das empresas ¨ponto.com" norte-americanas. Aquele foi outro exemplo de uma bolha especulativa, pois representou a super-valorização de empresas que tiveram as suas cotações valorizadas ao patamar da de grandes empresas, como IBM, Microsoft, Ford, GM e GE -- a despeito de funcionarem em pequenas garagens, não terem mais que 01 funcionário (que era, geralmente o próprio dono da "empresa") e não produzirem outra coisa senão pequenos bancos de dados.

E o que adveio disso? A crise das "sub-prime"; uma crise que vem crescendo ao longo dos últimos 11 anos, caracterizada sobretudo por uma estrondosa acumulação de capital e pelo aumento do fosso que separa ricos e pobres, numa escala global. O aumento da pobreza e da miséria ao redor do mundo vem chamar atenção de inúmeros pesquisadores e cientistas sociais a uma catástrofe sem precedentes na história do capitalismo pós-moderno: um endividamento global que supera em dez vezes o PIB mundial; estima-se que a bolha especulativa tenha gerado um débito global de US$ 600 trilhões, quando o PIB (ou riqueza concreta) mundial é de US$ 60 trilhões. Isso faz uma pessoa pensar que se 11% dos credores exigirem a liquidez de seus créditos hoje, o mundo financeiro entrará em colapso - o que, por si só, já é um fato assustador.

Esse cenário não é de crise. Vivemos o início de uma profunda depressão e, conseqüentemente, de uma mais que obrigatória reestruturação do sistema financeiro mundial, à semelhança do que aconteceu nos anos de 1930. Diante disso, as grandes economias irão sacrificar o dinheiro dos contribuintes para cobrir o buraco nas contas das instituições financeiras - que há décadas vêm praticando essa ciranda financeira global.

Entretanto, a pergunta que não quer calar é: os grandes "investidores" devolverão os lucros obtidos nessa operações especulativas aos Estados e às populações? Eles poderão ser responsabilizados patrimonialmente pelo desastre que provocaram? A resposta é simples: não.