quinta-feira, 18 de junho de 2015

Amor em tempos de intolerância: a luta entre os credos no Brasil

No último domingo (14/06/2015), uma menina de 11 anos de idade foi apedrejada na cabeça por um grupo de sectários religiosos, quando saía de um culto afro-brasileiro (Candomblé), na cidade do Rio de Janeiro. Essa tragédia levanta sérios questionamentos sobre a atual conjuntura política brasileira. Afinal, a mensagem cristã não é de compreensão, perdão e fraternidade? Para onde foi o significado da lição "deixai vir a mim as crianças"? E, contrariando o senso comum (que estipula que religião não se discute), não seria necessário colocar as formas de expressão religiosa em debate?

(Fonte da foto: O Globo)
Observando o ocorrido com essa menor de idade, pode-se afirmar que foi abandonado o discurso religioso que prega o amor e a comunhão, e revelado o discurso de ódio que a prática a segregação e justifica todas as formas de violência. Convinha saber, entrementes, se esses dois discursos e práticas têm o mesmo lugar-comum. Isso porque partiu-se do conhecido e chegou-se ao impensável: foi feita uma aplicação prática das normas religiosas, da prescrição normativa à sanção, do regulamento à aplicação do castigo. Considere o seguinte: não bastassem as agressões verbais de natureza escatológica - sobre a condenação eterna da alma da garota que, por representar o "diabo", iria arder no fogo eterno, na presença do próprio "Lúcifer" -, perpetrou-se a violação de sua integridade física, comprometendo a segurança de pessoa juridicamente incapaz.

Você pode acompanhar o caso em vários jornais, ou numa pesquisa genérica na internet, ou indo direto às matérias jornalísticas da Folha de São Paulo, do G1 - Globo, do Estadão, ou do Correio Braziliense. O que você vai encontrar são diversos relatos sobre o caso da pré-adolescente, mas não deveria entendê-lo como um caso isolado: embora tenha ganhado notoriedade, diante das especificidades já evidentes, ele é apenas mais um entre muitos, sejam os noticiados, ou os não reportados, sobre a violência contra a cultura afro-descendente no Brasil.

O que é importante salientar, neste e em todos os fatos, é o recrudescimento da violência física contra os adeptos de religiões minoritárias. Como é óbvio, não se tratam de minorias numéricas, mas de grupos que são minorias no acesso ao Poder, e que não encontram o reconhecimento estatal necessário para a livre expressão de suas formas de crença, ainda mais quando o Congresso Nacional tem sido palco de manifestações religiosas (de rezas e orações cristãs). Esses acontecimentos só vêm reforçar o sectarismo e contrariar manifesta determinação legal contida no inciso I do art. 19 da Constituição republicana:
Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
I - estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público.
Assim, é preciso reconhecer que existe uma clara separação entre a esfera política (assuntos de Estado) e a esfera íntima (assuntos estritamente particulares). Não há nada de novo na questão do ódio contra a livre expressão de credo em terras tupiniquins, tendo em vista que a religião é um dos derivativos do poder social e está diretamente associada às questões de identidade e sentimento de pertença sociais. Então, quanto mais uma determinada religião (ou culto) estiver próxima ao poder, mais ela poderá ser um fator de exclusão e mais poderá ser responsável pelo surgimento de minorias. Tudo isso faz lembrar um passado remoto, quando a religião oficial destas terras era a "Catholica Apostolica Romana" (art. 5, Constituição Política do Império do Brazil). Nesse tema de liberdade religiosa, havia tumulto e preconceito contra as primeiras igrejas protestantes que tentavam se instalar nos domínios imperiais de D. Pedro I.

No Estado Democrático de Direito brasileiro, a liberdade de consciência e de crença está assegurada na Constituição Federal (art. 5º, inc. VI), sendo um direito oponível ao Estado e aos demais cidadãos, nos termos da eficácia vertical e horizontal que esse direito fundamental produz, respectivamente. Seguindo a diretriz constitucional que determina a laicidade do Estado (art. 5º, VIII c/c art. 19), é importante salientar que os assuntos religiosos são privados, quanto à oposição que se faz ao Estado como entidade responsável pelo domínio público. Isso não quer dizer que a Sociedade civil não possa expressar sua fé nas ruas - qualquer estudante de Direito com dois dedos de testa sabe disso. 

(Foto: Folha de São Paulo)

Você é a favor disso? Se for, tem que compreender que, numa democracia constitucional de uma sociedade aberta (art. 1º, inc. V), as relações sociopolíticas devem estar embasadas na reciprocidade e no acesso às mesmas oportunidades políticas. Por essa lógica, sendo o Congresso Nacional a casa do povo, é preciso (re)lembrar que povo engloba todo o corpo de cidadãos da República, independentemente de credo ou convicção política ou filosófica. O que enseja o direito de manifestação de Candomblé, Umbanda, Espiritismo e outros cultos, seitas e credos na Câmara dos Deputados - quiça até satânicas, quem o saberá?! Ainda, já imaginou se essa reciprocidade autorizasse o apedrejamento dos membros da sua congregação? Pense nisso. Muito embora a maioria numérica da população brasileira seja teísta, também há que se contemplar o ceticismo ateu que põe em causa todas as religiões - ou essa não seria, também ela, um posicionamento recepcionado pela República?

Portanto, é importante identificar as margens de manobra nos discursos que falam de amor e que são utilizados para praticar o ódio. Essa ressignificação do amor deturpa, ao mesmo tempo, as noções de tolerância e aceitação, impulsionando os membros de uma sociedade "livre, justa e solidária" a abandonar seus laços de fraternidade política, rumo à segregação. O único ponto positivo nessas práticas é uma Revelação (mundana): os intolerantes saíram do armário. Aos esclarecidos, cabe combatê-los.

sexta-feira, 12 de junho de 2015

A Lua, o Lar e a Cidade: ensaio sobre os espaços humanos

As noites de junho em Fortaleza podem ser bem românticas. O calor da cidade é abrandado pela brisa leve, que corre desde a praia rumo ao interior. Isso, por si só, já é grande vantagem, numa região que só tem dois tipos de clima: quente e muito quente. O céu, quase sempre limpo, ostenta a lua dos namorados e das serenatas solitárias, enquanto a urbanidade descansa da vida caótica do trânsito e do trabalho extenuante da "corrida de ratos".


Numa dessas noites aluadas, a conversa com a amiga, filósofa e analista política Sandra Helena de Souza fluía no compasso da contemplação do belo, no bairro Papicu, quando fui capturado por uma epifania: estamos mesmo vivendo em pequenas tocas, como roedores. Essa súbita e chocante constatação estava envolta no contexto do descanso e do silêncio proporcionados pelo prenúncio da madrugada e da percepção visual da paisagem local, cuja brutalidade dos prédios circundantes era quebrada pela pracinha mal cuidada e desprovida de verde, que nada mais era que uma promessa de tranquilidade abandonada pela municipalidade.

Esse meio ambiente (social e natural) e suas artificialidades nos põe a pensar sobre nós mesmos, sobre a nossa condição cidadã, notadamente no que se refere ao lar, à moradia e à municipalidade. É aterradora a percepção de que reproduzimos um modelo de uso e ocupação do solo que, além de desordenado, tem nos colocado em pequenas unidades habitacionais desprovidas do conforto presumido pela lógica da modernização e crescimento econômico. Se essa já era uma realidade para a camada miserável da população que ou mora nos agrupamentos humanos do Estado paralelo - favelas -, ou daquela que habita os rincões do Brasil - na caatinga, no sertão, no cerrado -, hoje, esse cenário faz parte da realidade de todo o agrupamento social urbano, independente da posição socioeconômica dos trabalhadores. Essa é a lei econômica que só encontra duas exceções, presentes quer na liberdade absoluta do homem que possui todo o mundo para si - na figura metafórica do mendigo ou do louco, que é o proprietário absoluto da cidade e do lixo que ela produz -, quer na liberdade regulada do homem que possui o poder de controle sobre a distribuição da riqueza produzida - na descrição denotativa da realidade racional do sistema produtivo -, ambas relacionadas à condição de homem fundamental do nosso liberalismo selvagem.  

A moradia - invadida (favela) ou comprada (bairro) - é apenas o reflexo material da nossa cultural dissociação do meio ambiente natural. O curioso é notar que a contrapartida para o trabalho honesto (que deveria ser decente para todos, mas não é, bem o sabemos!) é o comprometimento com um sistema econômico que nos impulsiona para o trabalho subordinado (e cada vez mais subalterno), cuja única recompensa é uma vida de trabalho até a morte (work until you drop dead) e cujo o único alívio para o endividamento que nos consome a vida economicamente ativa é o sono intranquilo em nossas pequenas unidades habitacionais. Esse descanso hermeticamente contido possui uma dicotomia intrínseca: do lado da favela, a insegurança absoluta, gerada pela pestilência decorrente da falta de saneamento do esgoto ao céu aberto e da falta de água tratada, do assassinato de crianças e jovens das minorias étnicas; do lado do bairro, a insegurança relativa, guardada pelas cercas elétricas e vigiada pelas câmeras de segurança, e o medo e o preconceito constante em relação à pobreza (enquanto categoria discursiva: tanto do ser, como do não-ter). Mas não há enganos: quando o rico vive circundado pela miséria, ele é apenas um miserável de sorte (e a sorte não dura para sempre!).

Devíamos viver na praça, como fazem os felinos: esse espaço em que a Lua ainda é de todos e todas, onde a brisa desalinha todos os cabelos, e no qual a amplitude da cidade adquire um novo significado. A praça é democrática: é tanto dos solitários, quanto dos enamorados; por meio da fuga da toca, torna-se o lugar onde os roedores tornam-se gatos pardos, em busca do seu locus na urbe, numa relação de co-dependência humana que deriva de nossa condição social ou capacidade de socialidade. Se a vida é em cubículos, é preciso se construir e preservar espaços comuns para se poder pensar fora da caixa. Somente na praça é que se pode falar a língua dos gatos. Miau.

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Para Sandra.

sábado, 23 de maio de 2015

O Mercado e teoria do Direito: "Por um punhado de dólares"


A intenção deste artigo de opinião é discutir como as regras de mercado têm exercido uma influência negativa na interpretação (a priori, limitada) dos fundamentos do Direito. Trabalharemos com a noção de que o Mercado é uma instância de Poder e que, visando a acumulação ilimitada de riquezas, possui regras de funcionamento sistêmico próprias. Ainda, como premissa, admitimos que algumas dessas regras podem ser convertidas em regras jurídicas, com o objetivo de garantir o equilíbrio das relações econômicas. Mas também aceitamos como válido o fato de que esse âmbito economicista muitas vezes exige o falseamento e a modificação de regras pertencentes a outras instâncias, como as referentes à Polítca e à Moral - numa relação intersistêmica pertinente ao variado campo da Ética, do qual também faz parte o Direito.



De início, fazemos uma breve nota sobre os riscos inerentes à utilização de um método experimental de análise. Procederemos à investigação desse tema por meio da utilização de uma linguagem figurativa, oriunda da cultura: o ditado popular. Isso porque, numa de suas palestras, o sociólogo Slavoj Žižek indica não existir nada mais intelectualmente desinteressante do que um ditado popular, pois tal recurso seria a coroação do pensamento acrítico, fundamentado numa aceitação dogmática da realidade cultural. Entretanto, por vezes, esse artifício linguístico nos indica algo para além do óbvio, visto conceder uma margem interpretativo-analítica sobre a qual se pode construir uma crítica que compreenda quais os discursos subjacentes e ocultos numa forma de se pensar.

Assim, utilizaremos uma metáfora como recurso cognitivo essencial para a compreensão de um dos valores internos do Mercado, qual seja, a ganância. Procedemos de tal maneira porque essa diretriz valorativa tem servido de justificação para os adeptos de diversos doutrinadores acadêmicos que examinam esse sistema: os economistas. Nada contra os economistas! Pelo contrário. Seus conselhos e prognósticos resolvem uma grande parte de nossos problemas (mas não todos). Assim, para demonstrar esse valor (ganância), vendido como um elemento axiológico da natureza humana, utilizaremos como instrumento uma obra cinematográfica: "Por um punhado de dólares".

Dessa forma, fazemos referência ao filme de faroeste italiano (spaghetti western), cujo título original é "A Fistful of Dollars" (1964), dirigido por Sergio Leoni e interpretado pelo ator norte-americano Clint Eastwood. A película, em si, não tem nada de muito interessante, se não fosse por um detalhe: ela revela um aspecto interessante sobre o Poder. Essa faceta manifestada é a facilidade com a qual um oportunista se aproveita de um contexto social conflituoso para auferir vantagens, diante de tal clivagem / divisão política. Representa, assim, um adágio popular: "a ocasião faz o ladrão". Essa seria uma denúncia do que ocorre entre o Mercado e a Política.

No bang bang italiano, o pistoleiro caçador de recompensas (Eastwood) encontra-se no interior do México, numa cidade dividida e sitiada por duas famílias rivais: os Rojos e os Baxters. A população encontra-se acuada por causa da violência perpetrada pelos integrantes dessas facções criminosas. O pistoleiro (no papel de anti-herói), utiliza o conflito entre dois grupos para pôr em prática seu plano de apropriar-se de um carregamento de ouro anteriormente roubado do governo mexicano e que se encontra na posse de um deles. Durante o planejamento e execução desse objetivo, nosso anti-herói proporciona uma espécie de libertação ao povo oprimido do vilarejo, acabando por matar cada um dos criminosos que aterrorizam a cidade e trazendo de volta o "equilíbrio natural" para o pequeno povoado mexicano. Ao final, monta em seu cavalo e segue seu rumo à próxima aldeota.

Então, você deve estar se perguntando: e o ouro? E o que diabos isso tem a ver com Política?

Se você tiver assistido o filme, percebe que o ouro desaparece da trama, tornando-se elemento narrativo inexistente. Isso se deve ao fato de que essa figura é apenas uma representação simbólica de algo muito mais precioso. O "ouro" que o forasteiro desejava roubar era nada mais nada menos que a identidade política daquele agrupamento humano. Nosso anti-herói apropria-se indiretamente do próprio povo, assumindo um dúplice papel: de verdugo-libertário, um símbolo, um ícone de uma nova instância de Poder.

O cowboy é, por assim dizer, a representação máxima dessa modernidade industrial, da especialização e do pragmatismo político, cuja promessa maior é a desconstituição das "tradições selvagens", sendo ele o mensageiro de uma promessa de libertação, mas que possui uma imoralidade própria, resultante de suas contradições internas/subjetivas: violência, avareza, ganância e pragmatismo. É representante impiedoso e misericordioso dessa modernidade. Ele exprime-se por meio de uma lógica de dominação de Mercado, e sua diretriz operacional é uma razão instrumental utilitarista que trabalha com dados matemáticos, econométricos, com precisões e probabilidades.

Voltando ao nosso ditado, "a ocasião faz o ladrão" apresenta um significado explícito e objetivo, que se converte na prática de uma conduta ilícita contextualizada: o furto ou roubo de algo que pertence a outrem, que os juristas traduzem pela locução "subtração de coisa móvel alheia"). Esse delito seria praticado diante de facilidades que uma determinada situação proporciona, visto que, em tese, as pessoas têm um comportamento ético adequado (decorrente de uma natureza?), até que surja um fator externo qualquer que as leve a cometer tal infração e quebrar o pacto social. Porém, se estendermos o significado da frase, poderíamos encontrar um fator interno e absolutamente subjetivo (talvez, natural?): diante de certas condições, o seu "ladrão interior" aflora e tem total legitimidade para se comportar de maneira anti-social. Haveria uma justificação implícita para o cometimento de ilícitos: a frase pressupõe que podemos cometer algum tipo de ilicitude, pois haveria algum tipo de perdão ou compreensão social, perante o contexto no qual nos inserimos e por força dos fatos que nos levaram a cometer um delito.

Como temos argumentado, esse imaginário possui uma lógica interna própria, qual seja, a hierarquização de princípios (valores humanos) por meio de critérios de utilidade, de acordo com uma relação racional entre valores e interesses. Como todo sistema, como se pode supor diante de um pensamento estruturalista, esses valores convivem harmonicamente, sem aniquilarem-se uns aos outros, mantendo as funções para as quais o sistema é criado. Porém, ao lado desses elementos objetivos, existe um critério subjetivo, muito importante na estratégia de funcionamento sistêmico: o individualismo. Esse é o sistema que guia o protagonista do Far West (faroeste).

Com efeito, para que essa estrutura (Mercado) se mantenha intacta, é necessário uma desarticulação do coletivismo, da noção de grupo e práticas culturais, por meio do fortalecimento exacerbado do indivíduo e sua ampla e irrestrita liberdade de escolha e ação. Assim como o pistoleiro, o indivíduo defensor dessas forças de mercado é esse ladrão que, diante dos diferentes contextos, opta por controlar ou liberar seus instintos, sendo uma espécie de criatura acima das leis e dos costumes, rizomático, transitório e desinteressado, que cativa nossos corações com sua forma desapegada e cínica de observar e interagir com o mundo. Ele é que é livre sem ser igual e, por revelar-se superior a nós, nos leva nossos problemas, exigindo em troca apenas nosso "ouro". É, para dizer o menos, um alienado: distancia-se dos demais, torna-se alheio ou indiferente aos outros. Ele é o "homem sem nome".

Esse vilão-benfeitor é, naturalmente esquizofrênico, por carecer de um fio condutor da normalidade social, haja vista que suas diretrizes são matemáticas, puramente lógicas e instrumentais. Mesmo revelando uma contradição no seu âmago, não é dialético per si, dependendo de intervenções constantes e suficientemente fortes para aquietá-lo, domá-lo. Essas intervenções, como externas, encontram-se sedimentadas na resistência social/coletiva que lhe impõe certos limites, freios e contra-pesos - porque nenhuma forma de Poder poderá ser absoluta numa Sociedade. E é por meio do Direito que se organizam essas normas que garantem e limitam a liberdade.

É diante dessas afirmações alegóricas que é possível explicar de que forma o imaginário social deposita sua confiança nas regras de convivência que compõem o Direito. As normas jurídicas, dispostas harmonicamente dentro de um sistema que lhes é particular, organizadas em outra estrutura, desempenham uma função geral e mais abrangente, consoante possuem outras finalidades, outros valores e uma topologia que lhes são próprias.

Os vértices jurídicos acumulam experiências cognitivas, pois têm o condão de preservar certas percepções orientadas pela necessidade de uma convivência comum, libertária, igualitária, solidária e dialogada. Embora tenham sido utilizados para acumular os mais torpes objetivos ao longo da História, sua atual operacionalização tem por escopo a defesa da humanidade (entendida como uma categoria mais ampla que a própria sociedade). Como todo instrumento social, ao contrário de outros instrumentos, sua operacionalização se faz mediante a avaliação entre normas justas e injustas, o que não sucede com as normas mercadológicas, que só podem ser avaliadas como úteis ou inúteis, adequadas ou inadequadas.

O controle que as normas jurídicas exercem sobre as normas de mercado reside ou brota da legitimidade que sobre elas é depositada. Essa legitimidade pode lhes revelar um exame interpretativo consentâneo ao sentimento de Justiça construído socialmente, ultrapassando as limitações de natureza quantitativa proporcionadas pela eficácia e pela validade -- embora sobre essas últimas exerça uma enorme influência. As normas do Direito são construídas pela cultura, pelas percepções identitárias, pelos sentimentos individuais e coletivos de pertença, e pelo necessário equilíbrio que a convivência exige da espécie humana: a harmonia entre interesses individuais e coletivos.

Esta é, ao fim e ao cabo, a importância (e o desafio) da constantemente renovada teoria do Direito: preservar a humanidade de suas próprias contradições. Ela proporciona a persistente readaptação dos preceitos normativos às necessidades sociais de convivência, ajudando o indivíduo a ser (viver) e a estar (conviver). Colabora na produção e aplicação de um conjunto de regras positivadas - postas para serem conhecidas e interpretadas pelo público -, informando o jurista a encontrar os meios adequados para a implementação de um arsenal teleológico.

É a teoria jurídica que orienta o investigador à compreensão de que não adianta "fazer a Justiça, mesmo que o mundo pereça". Porque o Direito é realidade social, devendo o jurista optar por decisões que preservem o meio social mesmo que, para isso, sejam exigidos sacrifícios da própria Sociedade. Na lista desses sacrifícios, por vezes, encontra-se o conflito entre o ter e o ser, ou entre o ser e o estar.

Se nada mais importar, a não ser os números, então tornam-se desprezíveis as normas, quer as jurídicas, quer as mercadológicas. Vê-se, pois, que o "nosso mundo" não é feito por números, nem somente por atos de pura Justiça. O mundo é composto de humanos, mas não só.