quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

Misoginia e o significado das palavras

"Bom dia, amor. Posso te estuprar hoje?"

É com essa frase que se pode começar uma investigação sobre a misoginia contida nas recentes declarações do Deputado Federal Jair Bolsonaro. Essa provocação inicial é necessária, pois, ao que tudo indica, os estudos de gênero que são desenvolvidos pelos renomados centros de pesquisa em Ciências Sociais europeus e norte-americanos não atingiram a inserção necessária no meio acadêmico brasileiro, com raras exceções. Portanto, uma provocação prévia é necessária, para que se possa traçar um molde genérico sobre o tema e despertar um debate atento a detalhes normalmente silenciados.


Preliminarmente, é preciso esclarecer uma premissa. Em tempos de solipsismo, as palavras perdem o significado que originalmente / culturalmente têm, em função de uma "vontade de poder" (Der Wille zur Macht) que o indivíduo exerce sobre cada uma delas. Esse tipo de ato interpretativo parte da concepção de que somente o indivíduo existe enquanto ser que pensa um objeto e que, para além do ato de pensar desse mesmo indivíduo, nada existe de concreto. Isso representa um difícil problema de interpretação, visto que, ao contrário do que possa parecer, além do indivíduo existem outros, e o significado das coisas é feito (também) coletivamente e, na maioria das vezes, de forma consensual.

No passado, a palavra dita tinha a força de uma raiz que, uma vez fincada no solo, não poderia ser removida, sob pena de destruição daquele que a pronunciava, assim como uma planta. Enquanto o silêncio guarda (em si) uma natureza plurisignificativa, que desperta no interlocutor uma inabalável dúvida sobre seu significado, a palavra é a concretização do pensamento, embalada pelos desejos que se revelam, e que extrapola os mecanismos de controle a que a mente humana se submete no convívio com os demais. Falar é, acima de tudo, conviver.

Agora, sobre a misoginia. Na literatura, esse comportamento já foi expresso por autores do porte de Nelson Rodrigues que, ironizando as relações afetivas heterossexuais, apontava o desejo implícito que as mulheres teriam, por exemplo, de apanhar. Esse imaginário faz referência direta a certos comportamentos sociais, reproduzidos no mundo da cultura e determinantes dos papéis sociais de gênero - o que pode ocasionar abusos de interpretação / percepção, como no caso da mulher que se comporte de forma anormal e deseje não apanhar. Da mesma forma, chamar uma mulher de "vadia", dentro de um contexto qualquer, significa a verbalização de uma perspectiva sobre essa pessoa, num processo de coisificação fundada no desejo.

É isso o que a comunicação interpessoal faz: ela estabelece a interconexão entre as subjetividades. A grande questão: lançar palavras ao vento, sem uma preocupação com seus efeitos (significados), é ignorar o que existe de mais vulgar na comunicação humana, no que respeita às emoções e suscetibilidades da psique. Afinal, "as palavras ferem mais que a espada" - teria dito, em coro, a população.

Da mesma maneira, a afirmação "Jamais te estupraria, porque você não merece" apresenta, além do erro gramatical de concordância evidente, um erro contextual e outro de convivência: a organização dos espaços sociais não comporta esse tipo de verbalização dos desejos (até então ocultos) sobre a outra pessoa. Se é bem verdade que as palavras devem ser analisadas nos meio (contexto) em que são proferidas, existem algumas delas que se convertem em desejos que são socialmente execráveis, ainda mais quando ditas em espaços públicos nos quais os ouvintes do discurso não compactuam com o que é dito, quer por razões morais, jurídicas, ou religiosas, por exemplo. Trata-se da adequação quanto ao local (logos) no qual as palavras são reproduzidas, e quanto ao sistema de crenças (ethos) compartilhados por esses animais sociais e políticos (seres humanos). 

Ante o exposto, deve-se tentar perceber que o processo civilizatório pressupõe convivência (interação social) e regulação (atribuição de direitos, deveres, competências etc). Contextualizando essa ideia, é de se notar que, num parlamento democrático, a exposição de ideias encontra por limites as normas garantidoras da continuidade das relações intersubjetivas (do tipo políticas) e referentes, portanto, ao decoro que é exigido de cada membro que ali convive. Admitir que, no decurso de suas atividades, os parlamentares se utilizem de expressões discriminatórias (xenófobas, racistas, misóginas, marginalizantes etc) e violentas, agride diretamente os objetivos para os quais o Estado Democrático de Direito foi constituído - consoante o disposto no art. 3º da Constituição Federal -, e atentatórias aos fundamentos no qual se alicerça, vis-à-vis, cidadania e dignidade da pessoa humana - desta vez, com fulcro no art. 1º do Texto Maior.

Como representantes que exercem a soberania, isto é, exercendo o Poder Político-Social em nome do povo (titular efetivo desse Poder), os parlamentares devem estar atentos aos valores morais que dão substância ao que se fala (parlar = falar; parlamento = lugar onde se fala), por consenso. É consenso da população que o estupro é um ato que atenta à intimidade e ao próprio ser (autônomo), sendo repudiado de maneira tão incisiva que se converteu em crime contra a pessoa, passível de penalidade. Em que pese o Deputado Jair Bolsonaro defender ferrenhamente o aumento das penas para tal modalidade de crime, não parece haver harmonia entre o seu desejo (verbalizado) e suas atitudes políticas, haja vista que tal assunto sobrevém em sua comunicação em tom jocoso e de escárnio, contra a Deputada Maria do Rosário. Não há ligação, nessa "brincadeira", entre o significado da palavra e o repúdio social que ela desperta. 

"Brincar" tem um significado bastante específico: "divertir-se; entreter-se com alguma coisa infantil; galhofar, gracejar" (Dicionário Priberam). Não se pode imaginar como alguém possa "brincar" com a palavra "estupro" ou com o verbo (= a palavra em ação) "estuprar",  direcionando essa "brincadeira" a uma mulher que é, antes de mais, uma adversária política pelo qual (ele) nutre antipatia e intolerância. Pela mesma razão, não se pode (tentar) esconder essa agressão verbal e simbólica pelos "bons comportamentos" anteriores e prévias boas intenções, como se isso não tivesse um significado ofensivo à "mulher enquanto gênero".

Em vista disso, mesmo que se considere a "brincadeira" do sereno e bem humorado parlamentar, é óbvio que sua intenção era de agredir, e assim o fez. Essa atitude poderia ter sido evitada por um solene silêncio, que ocultaria seu desprezo e "vontade de poder" sobre a mulher contra quem proferiu e na qual objetivou seu desejo (inconsciente) de submissão sexual, em ato falho. Nada contra o sexo: é que, embora o Congresso não goze de uma austera reputação - no momento -, as palavras, ali, têm um significado público. 

Estupro, portanto, não, Deputado. "Por favor = É obrigado".

Vídeo: História dos Direitos Humanos

Uma breve ilustração da história dos direitos humanos, muito didática e útil para a formação de crianças, adolescentes, jovens, adultos e idosos.
Boas Festas!


Agradecimentos à Senhora Doutora Profa. Ana Paula Pinto Lourenço (UAL - Universidade Autónoma de Lisboa), por ter compartilhado essa importante ferramenta pedagógica.

terça-feira, 9 de dezembro de 2014

O Político e o Professor

Desde as eleições recentes (outubro de 2014), as redes sociais têm sido espaço para a verborreia do ódio e do descontrole, intercalado apenas pelo bom senso de poucos, que tentam contemporizar e trazer à tona a racionalidade e a cidadania, necessários ao desenvolvimento pleno da Democracia brasileira. Porém, a Internet tem sido apenas o palco, onde os personagens multiplicadores desses sentimentos vis e antidemocráticos funcionam como fantoches de forças e grupos com intensões bem claras, e objetivos políticos concretos.
Para compreender o "estado da Nação", é preciso que se reconheça que os ânimos se acirraram, principalmente após a vitória apertada da atual Presidente da República - legitimamente eleita mediante pleito eleitoral, por escrutínio secreto e universal. Depois de encerradas as eleições, ao contrário do que se poderia imaginar - com a reorganização das forças políticas em torno de questões relevantes e urgentes para o País -, alguns setores da oposição têm utilizado das funções do Estado brasileiro para clamar por impeachment - sem que tenha havido, até o momento, a abertura de qualquer procedimento inquisitivo nos moldes do devido processo legal - e golpe militar - sem que se precise dizer que, além de estarem obrigados a respeitar o Estado Democrático de Direito (art. 142 da Constituição Federal), como grupo de cidadãos, os representantes dos altos escalões das Forças Armadas já firmaram posição de respeito à Democracia, em que pese à dissidência interna (e velada) sobre o tema...


No Congresso Nacional, outro espetáculo: a personificação do ódio e da intolerância nas atitudes reiteradas do deputado federal Jair Bolsonaro, revela o ganho político que os comportamentos das redes sociais fomentam e reproduzem. Tal parlamentar clama, aos quatro ventos, os maiores impropérios contra todos aqueles que colocam em dúvida ou entram em desacordo ao seu "sistema de crenças", chegando a expor (abertamente) comportamento misógino, fundado numa percepção completamente equivocada do que venha a ser um parlamento; em vários episódios como esse, toda manifestação de pensamento contrária desperta, incontinenti, ataques verbais ultrajantes

Além disso, esses mesmos setores descontentes e seus locutores utilizam-se de adjetivações e imputações criminais ao Executivo da União e até a classificar todos os eleitores do Partido dos Trabalhadores de "criminosos" - caso protagonizado pelo candidato derrotado Aécio Neves -, como se opção política fosse motivo para se imputar conduta delituosa a qualquer eleitor. A escolha democrática tem que ser respeitada, quer seja fundada em interesses materiais conquistados por meio de políticas públicas assistencialistas, quer na ideologia do eleitor (sim, a velha ideologia de esquerda...), quer em qualquer outro motivo emocional, partidário, ou psíquico, ou, ainda, até decorrente da boa ou má formação política e educacional do cidadão.

Na linha das conhecidas argumentações defendidas pelos mais exaltados, segue a retórica da "população apavorada", no esteio da noção (equivocada e imprecisa) de que o atual ordenamento jurídico é o instrumento de excelência para a disseminação do crime e da desordem. Frases soltas, do tipo "Os direitos humanos só protegem bandidos" têm sido veiculadas abertamente, diante de uma população que, desta feita, por ignorância, desconhece a amplitude conceitual do tema dos Direitos Humanos - que albergam normas protetoras dos direitos políticos do cidadão, civis e políticos das crianças, da maternidade, dos idosos, dos trabalhadores (...) e, sim, dos investigados em inquéritos policiais e acusados em processos penais. Diante da inapetência do Estado em cumprir as normas constitucionais que contém as chamadas "sanções promotoras" (conforme classificação do autor italiano Norberto Bobbio, chamado a explicar sobre os fundamentos do Estado de Bem-Estar Social), vulgariza-se essa abordagem a respeito da proteção estabelecida por normas de direito interno e internacional que incidem sobre os direitos e garantias fundamentais da pessoa humana.

Na contraposição a essas pontuações, está a brilhante defesa do Direito, da Ética e das instituições sociais organizada de forma bastante informal e didática pelo Prof. Haroldo Guimarães, mestre em Direito Constitucional pela Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará. De uma maneira muito gentil e descontraída, os ensinamentos do Professor são claros: para a boa convivência social, é necessário um diálogo aberto, amistoso e racional, com o fito de preservação da malha social. Somente através do conhecimento (não só proporcionado pela Educação formal ou acadêmica) é que se torna possível uma verdadeira emancipação social, vez que tanto na política, quanto nas mais simples relações humanas vigoram as mais intrincadas e sutis emanações de Poder.

Ainda, a História revela que a personificação e o direcionamento do ódio para grupos sociais específicossempre resultou em atos de barbárie e que, para alcançar esse resultado, os grupos que os disseminavam se utilizaram de argumentos acríticos semelhantes aos expostos pelos defensores do ódio em Terra Brasilis. Vale ressaltar que o discurso de ódio sempre irrompe em momentos de crises (institucionais e econômicas), proporcionando Poder a seus propagandistas. 

Valendo lembrar que, em tônica muito resumida, aderir a esta ou aquela bandeira partidária e ideológica é um dos fundamentos da República; os ataques aos assim rotulados "comunistas", "marxistas", "bolivarianistas", "socialistas" e "gayzistas" (sic) têm se mostrado prática absolutamente intolerante e em descompasso ao pluralismo político consubstanciado no art. 1º, inciso V da Constituição Federal. Em outras palavras: ao invés de se construir uma oposição racional às ideologias e percepções de mundo contrárias aos seus interesses, esses grupos que discursam o ódio optam pela lógica do silenciamento e da censura, por meio da violência, numa sociedade na qual o espetáculo da brutalidade ganha cada vez mais adeptos. Ressalta-se: não é uma violência presumida da qual se fala, mas de uma que se apresenta na forma de violência física, psicológica e político-social, e sobre a qual somente o esclarecimento pode verter alguma luz - num explícito apelo ao modelo mais simples de Estado de Direito, fundado na razão.  

Portanto, mesmo que essa parcela "politicamente agressiva" da população seja inexpressiva, deve-se duvidar que o discurso que reverbera nas redes sociais não possa encontrar "ouvidos carentes" e, diante dessa orfandade acrítica, multiplicar-se. Silenciar diante desses atos significa: (i) tornar esses atores políticos os únicos e legítimos proprietários das soluções sociais, e (ii) conferir-lhes a atribuição exclusiva de identificar quais as verdadeiras causas da - e os (convenientemente) culpados pela - desorganização das instituições públicas e dos poderes constitucionais. Esse silêncio é, acima de tudo, um ato de omissão política inaceitável. 

***
Em homenagem ao Prof. José Haroldo Guimarães Filho.

domingo, 26 de outubro de 2014

Eleições 2014 no Brasil: meu balanço das redes sociais na Internet

Durante todo o pleito de 2014, me furtei de oferecer qualquer posicionamento, quanto ao meu voto, nas redes sociais da Internet (nomeadamente, Facebook, Google+ e Twitter). Basicamente, fiz isso por duas diretrizes e uma razão: (i) me resguardar do desgaste mental de ter que responder pela minha opinião e (ii) por exercer minha capacidade de reflexão sem o envolvimento emocional, e, no segundo caso, (iii) a noção de que a forma supra citada não encontra amparo dentre os milhões de brasileiros que estão fora da chamada "revolução sócio-tecnológica" da famigerada "Era da Informação". Isso propiciou o recrudecimento de algumas opiniões que nutro sobre a participação política da população brasileira - desta vez, orientadas ao mundo digital.


À distância, o que pude perceber foi a proliferação de dois fenômenos: (a) o discurso de ódio, que fez da política nacional uma disputa do tipo "amigo versus inimigo", que se travou principalmente entre as correntes mais conservadoras e tradicionais, de um lado, e as mais progressistas, de outro; e (b) a falta de embasamento nas opiniões políticas, ante a impossibilidade de diálogo entre os contendores, sempre dispostos a ignorar o discurso do oponente, na generalidade dos casos.

Quanto ao discurso de ódio, o exemplo mais infeliz ocorreu no debate à disputa presidencial, televisionado no dia 28 de setembro, pela rede de televisão "TV Record", protagonizado pelo então candidato Levy Fidélix (PRTB), que levou a OAB à requerer a cassação de sua candidatura por declarações homofóbicas. Em clara ofensa à finalidade do ordenamento jurídico brasileiro vigente, o então concorrente ao cargo de Presidente da República afirmou suas convicções morais da pior forma possível, declarando que a homossexualidade leva à pedofilia e afirmando que gays precisam de tratamento psicológico. Tal postura entra em choque com os objetivos pacificatórios e pluralistas afirmados na Constituição republicana que, mesmo protegendo que existam diversos sistemas éticos na Sociedade brasileira, consubstancia o repúdio à discriminação - conforme disposição ao inciso IV do art. 3º da Constituição Federal, que reza que a República Federativa do Brasil tem por objetivo "IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação".

Ainda quanto ao discurso de ódio, ele também se concretizou mediante o posicionamento ideológico irascível, numa campanha anti-comunismo (?) que associou todo o discurso progressista às ideologias que povoaram a prática política da segunda metade do século XX; essa postura, além de confundir as propostas da social-democracia com as dos Estados totalitários e ditatoriais que vigoraram na ex-União Soviética, em alguns países europeus e latino-americanos, e no Leste Europeu, também promoveram uma clara confusão entre os mais de 236 tipos de socialismo (conforme as várias propostas, inclusive, a da Social-Democracia Cristã) com os fenômenos fascistas do nacional-socialismo alemão, salazarismo português e franquismo espanhol, e assim por diante. Ressoa - e no Brasil, ainda de forma mais evidente - a implantação das lutas ideológicas do período histórico da Guerra Fria, embora o atual contexto globalizante tenha transformado todas as formas de exercício governamental em uma autêntica gestão do sistema mundo de produção capitalista, já globalizado.

No que respeita à ausência de um debate político autêntico - no qual as partes contendoras desafiam-se numa atividade intelectual de posicionamento às questões macroeconômicas e sociais -, era praticamente inexistente a disposição mútua de debate político sem ofensas pessoais, dentre os usuários que pude acompanhar (1.874 "amigos" do Facebook), com raríssimas exceções. Inclusive, o desejo de "mudança" se expôs de maneira autoritária e sem a oferta de uma proposta concreta, com frases no imperativo, do tipo "Brasil: ame-o ou deixe-o", ante a exigência de uma retirada peremptória dos atuais integrantes do governo federal. Nesse âmbito, convém salientar que a palavra de ordem era "Fora PT", embora o governo de coalizão encampe, também, o PMDB - que sai ileso diante dessas agressões. Nesse mesmo compasso, foram as frases de efeito, materialmente planejadas pelo marketing eleitoral, do tipo "Aécio Never" e congêneres.

Ainda em respeito a essa segunda observação, não foi incomum dois tipos de associação bastante surpreendentes, quanto à opção dos eleitores: quem vota no político "Y" é rico, ou reacionário, ou membro da elite, enquanto quem vota no político "X" é favelado, ou pobre, ou desinformado, ou faz parte da corrupção instalada etc. Esse tipo de comportamento em nada contribuiu para uma mudança de opção política, mas no acirramento e entrinxeiramento das posturas agressivas, que atingiram extremos antes não imagináveis, como o de um usuário que defendeu que uma determinada candidata, que foi presa pela ditadura, deveria ter sido, também, estuprada... Cruzou-se uma linha muito perigosa, nessa e noutras postagens nas redes sociais. Ainda, os ataques aos supostos vícios de drogas de um outro candidato tenham levado a discussão ao campo da pessoalidade, muito embora a utilização de estupefacientes seja um caso de saúde que impede a boa fruição de qualquer tipo de trabalho e, neste caso, o exercício escorreito e diligente de um cargo público.

O fato é que ficou difícil a disseminação de qualquer opinião ou crítica, sem que houvesse o rotulamento e a estereotipização de quem quer que fosse. Raras foram as tentativas de racionalização do debate, que ficou ao encargo de poucos, numa tentativa de moralização do processo democrático e da equilibrada liberdade de expressão; liberdade essa que, como qualquer outra, no contexto de um estado civil, é limitada por outras liberdades e direitos, naquilo que podemos chamar de proporcionalidade entre direitos e deveres jurídico-políticos. Esse equilíbrio é necessário para a manutenção da paz social, ante a ideia de que o conceito "amigo versus inimigo" está superado numa democracia: numa sociedade plural e democrática, que abraça a possibilidade de opiniões contrárias, a política não comporta mais esse tipo de divisão, sendo correto dizer que os sistemas morais e políticos têm que conviver, mediante a ideia primária (e precária, na minha humilde opinião) de tolerância. Não é possível considerar ético um discurso que deseja (ou tem a finalidade de) eliminar qualquer outro tipo de discurso; isso seria igualar o conceito de moralismo ao de sistema ético, não obstante o fato de que a Ética resume-se à convivência entre diferentes seres (ou seres humanos que são essencialmente diferentes, mas que convivem), enquanto moralismo é uma homogeneização de um tipo de conduta moral (heterônoma e sancionatória).

Portanto, minha conclusão é que política se faz no mundo real, e (ainda) não na Internet. Enquanto um setor social tenha se utilizado do meio para o enraizamento (muitas vezes colérico) de suas convicções, dando azo ao antagonismo que se apresenta no vigente "segundo turno" das eleições, a política fez-se (e ainda faz-se) nas ruas, no mundo real - no mundo de pessoas, que passam fome, querem mudanças materiais e concretas -, e não no digital. Quem sabe, um dia, com a disseminação da Internet e de outras benesses tecnológicas dentre os menos favorecidos (como ocorreu com a televisão e, antes dela, com o rádio), um dia se faça uma campanha limpa na Internet.

sexta-feira, 8 de agosto de 2014

O mérito numa sociedade desigual e de privilégios

Um dos temas mais polêmicos na teoria política diz respeito à meritocracia. De acordo com essa teoria, a investidura no poder deve dar-se quase que exclusivamente em razão do mérito do candidato. Porém, embora a meritocracia tenha sido um fator determinante no preenchimento de cargos públicos na Antiguidade, nas sociedades contemporâneas ela diz respeito diretamente ao sucesso na competição pela sobrevivência.




Antes de mais nada, convém ressaltar que os gregos - autores dessa perspectiva - pressupunham três critérios que integrariam a avaliação do mérito do cidadão num regime democrático: isagoria (a igualdade política entre os indivíduos do corpo civil), a isotimia (o livre acesso aos cargos públicos aos cidadãos) e a isonomia (a igualdade de todos perante a lei da pólis). Ainda, convém esclarecer que esse modelo helênico, puramente formal, tinha por alicerce uma sociedade fundamentalmente desigual e injusta: as mulheres e os filhos não eram cidadãos, ocupando, junto com o escravos, o patrimônio econômico do cidadão grego, ou seja, o locus social dessas pessoas era a puramente privado, sujeito às regras do justo e injusto de uma justiça privada ou não-pública, nos dizeres de Aristóteles (na obra "Política"). Isso para não descrever certos aspectos dessa cidadania, que admitia a venda de pessoas na qualidade de "escravo", como foi o caso de Platão, cidadão e filósofo ateniense que serviu nessa condição, num navio mercante, por vários anos. Com isso, pode-se afirmar que tal paradigma sócio-político de meritocracia era, inequivocamente, formal.

Dando prosseguimento a essa modesta investigação, pergunta-se: como essa estrutura foi absorvida pelas culturas ocidentais, e que marca (trauma) ela provoca nas formas de acesso ao poder (sócio-econômico)? Igualmente: quais seriam as consequências práticas desse tipo de perspectiva diante da obscena desigualdade entre os sujeitos que compõe um modelo jurídico-formal de Estado Democrático de Direito? E, finalmente: que perspectiva se abre diante dos contornos de uma democracia plural, inclusiva e participativa?

Em que pese os milênios de transformações sociais e culturais pelas quais passaram as civilizações ocidentais, que se abeberaram na filosofia grega para contemplar o modelo de Estado de Direito, a organização dessa Modernidade optou por uma abordagem puramente formal de configuração das estruturas de poder. Essa perspectiva está alinhavada numa transição paradigmática que faz parte das transformações registradas pela História (principalmente da Idade Média coletivista, para a Modernidade individualista), que culminou na prevalência dos interesses privados do homo oeconomicus, com uma mudança focal sobre a vida social, isto é, uma mudança de viés na concepção da organização da vida individual e coletiva: o cerne das preocupações do indivíduo passou da esfera pública para a privada. A promessa de um "futuro melhor" por meio do progresso foi o estopim e armadilha na qual se jogaram os países europeus, alimentados por ideologias e modelos sociais os mais variados - mas todos comprometidos com alguma tentativa ou proposta de equilíbrio entre os interesses individuais e nacionais: houve uma transmutação de conceitos: da coletividade para a nacionalidade, como bem ilustra os adeptos da Escola Histórica e das doutrinas jurídico-políticas que se utilizaram da filosofia hegeliana.

Entretanto, ao contrário do que indicava o fatalismo da abordagem histórica, os progressos tecnológicos de que se desfruta atualmente (revolução aeroespacial, telemática e informática, biotecnologia, energia termonuclear etc.) também modificaram aquela configuração sócio-política do Estado nacional: a globalização reduziu distâncias, eliminou fronteiras geográficas, tornando o mundo, paulatinamente, numa aldeia global, sem, contudo, resolver os problemas do passado. A miséria e os diversos tipos de desigualdade e exclusão social, ao contrário do esperado, se intensificaram. Isso porque essa globalização sedimentou-se sobre ruínas de uma disputa da Modernidade (entre os argumentos da economia de mercado e da economia planificada), que resultou com a vitória da perspectiva formal liberal, que assumiu os contornos de uma neoliberalismo: neo (novo) porque adequado a um mundo de plena liberdade conferida ao mercado financeiro e às grandes indústrias transnacionais; neo porque abandonou o indivíduo à própria sorte, por concentrar-se e validar apenas o direito à propriedade, e relegar ao plano meramente abstrato os direitos da personalidade (ao desenvolvimento das capacidades plenas do indivíduo).

Neste momento, torna-se necessário avaliar o argumento que discute a contemporaneidade - também designada de "pós-modernidade", que nada mais indica além da prevalência de um modo de vida pautado nas "sociedades mais desenvolvidas" (Lyotard) do complexo político de cariz eurocêntrico. O atual modelo de organização social tem na esfera econômico-financeira o seu alicerce primordial. Para ter "sucesso", os indivíduos devem zelar pela otimização dos recursos sociais e, dentre eles, tempo e dinheiro compõe a "chave para o sucesso" na organização dessa vida social. Assim, garantir os interesses pessoais e individuais é uma máxima válida e inquestionável, se o cidadão almejar uma sobrevivência plena e abundante em bens materiais e segurança financeira, numa sociedade de consumo em massa. Mas, em que pese todo o aparato das correntes do pensamento crítico, além da falta de oportunidade que continua a assolar as populações dos países da periferia da antiga divisão Norte-Sul globais, hoje, esse sistema global reproduz a miséria e os diversos tipos de desigualdade no centro desse sistema (Norte) - sendo a atual crise econômica europeia o melhor exemplo a ilustrar esse fato: inundados por imigrantes, sem perspetiva de empregabilidade (diante do fenômeno da deslocalização de empresas), com uma pirâmide social absolutamente invertida (envelhecimento populacional) e vivenciando políticas de austeridade, os europeus estão endividados, desempregados e desgovernados.

A competição global por acesso aos bens e aos recursos naturais, de um lado, só proporciona o referido progresso (prometido na Modernidade) àqueles dotados de privilégios que, porventura, consigam administrar e dispor de tempo e dinheiro (que já possuem) à formação que propicie o desenvolvimento de competências técnicas adequadas. De outro lado, os excluídos do processo não tem acesso a essas ferramentas, tendo que ocupar a margem industrial excluída pelos processos tecnológicos, recebendo apenas uma remuneração que só garante a sua reprodução biológica e o sustento de suas necessidades elementares. O que se constata é que houve um aumento (globalizado) do fosso que separa ricos e pobres.

Em que pese esse ser um cenário generalizado, ainda persistem algumas ilhas de resistência a esse panorama desalentador. Sobreviveu, em alguns países, uma linha de proteção social aos desamparados e, associada a ela, uma linha argumentativa de um modelo não-formal (mas nem por isso menos jurídico-político) de correção daquelas distorções formais do (neo)liberalismo. Seria uma linha por estabelecer um espaço limítrofe entre a humanidade e o mercado, entre o ser e o ter: as políticas públicas do Estado de Bem-estar Social e Democrático de Direito, sustentada por uma outra linha, também limítrofe, de reforma social, da social-democracia. Social-democracia essa que reconhece os direitos do indivíduo, consagrados pelo liberalismo político e jurídico, mas que também zela pelos direitos da sociedade; que dá a noção de que o indivíduo, antes de ter, é e está, e nessa condição de estar, convive. A união entre esse modelo estatal e o outro jurídico-político está vivo no texto constitucional de países como o Brasil, França, Itália, Alemanha e Portugal, dentre outros. Porém, as avaliações sobre a efetividade e a sobrevivência dessas linhas são desoladoras, porque, embora elas existam, a leitura e interpretação que se procedem sobre elas ainda é majoritariamente formal.

Significa dizer que, embora existam modelos jurídicos que assegurem a transposição dessas dificuldades e mazelas sociais, é necessário uma abordagem circunstancial e não-formal dessas garantias. Tome-se o caso de um problema global: corrupção. A abordagem formal da corrupção submete-a à formulações procedimentais e processuais que são incompatíveis ferramentas de solução do problema. Por que? Porque a impunidade relativa a ela é não-formal: não se trata de um problema sistêmico, mas extra-sistêmico; não é jurídico, é político, e está ligado à omissão (relativamente aos mecanismos da democracia participativa, de controle, fiscalização e cobrança dos atos de governo). Outro problema: formação educacional. Também esse seria um problema a exigir uma solução não-formal: de que adianta proporcionar o ingresso de discentes de classes sociais desprovidas às universidades (públicas e privadas), se não há livros, alimentação e transportes públicos e gratuitos aos estudantes? Em outras palavras: você consegue estudar com fome?

Portanto, as questões relativas ao mérito devem ser avaliadas diante da seguinte problemática: quem tem mais mérito? Aquele que goza de benefícios, facilidades, apoio e suporte financeiros, ou aquele que, mesmo diante de privações, falta de oportunidades e carestia consegue seu lugar ao Sol? Como se determina o mérito num modelo competitivo, desigual, formal e excludente?

quarta-feira, 2 de abril de 2014

Os "filhotes de ditadura"

O título deste texto é uma autêntica provocação; e essa provocação, de certeza, não é uma das mais prudentes atitudes a serem tomadas nos dias que correm. A expressão "filhotes de ditadura" foi cunhada por uma colega professora e, vez por outra, ressoa em minhas memórias como um alerta, uma lembrança de que ainda não superamos o autoritarismo do golpe de 1964. Essa é uma chaga aberta na sociedade brasileira, que ainda não conseguiu discutir todos os aspectos que envolvem o regime de exceção que se instalou no Brasil, de 1964 até 1988 - regime de exceção de um Estado não-democrático de Direito. Esse é mais um problema que se arrasta e que desperta o ódio e a ira de grupos que não conseguem (ainda) estabelecer um debate amplo sobre os males que o originaram e que germinaram durante esse período.


A mudança de regime jurídico-político de 1988, que se inaugurou com a Constituição da República Federativa do Brasil, também não foi eficazmente constituído de forma a resgatar o passado e, no espírito verdadeiramente democrático, efetuar a delimitação da culpa de cada partícipe desse processo - que se inicia num golpe de Estado e que termina na promulgação de um documento regente de um povo com tantas mazelas. O fetiche do legalismo estatista só não foi absoluto porque o modelo jurídico implantado teve o mérito de ter sido conduzido por meio de um debate social, no qual participaram diversas correntes de pensamento e grupos de representação social e de pressão - o que caracterizou o pluralismo político defendido no texto vigente. 

Se tal não fosse verdade, não teríamos a necessidade de discutir se adotaríamos uma Monarquia Parlamentarista, por exemplo, ou da discussão do sistema de governo - parlamentarista ou presidencialista. Haviam dúvidas, posicionamentos divergentes, questões históricas e todo tipo de conjectura acerca de nossa vocação sócio-política, e que ainda ressoam nesses grupos que ora são ignorados, ora causam rebuliço naquela paz que adviria do fim do controle e da opressão dos governos militares. Isso para não dizer que, olhada atentamente, a História da República teve a contribuição das forças armadas desde a proclamação dessa estrutura política, passando pela composição da Presidência e nos momentos de intervenção nos governos civis. Entretanto, essa contribuição precisa sempre ser reavaliada, em função da essência do que designa o conceito de "militar": a força que, fazendo a guerra, garante a paz... Então, quer dizer, somos um povo que não atinge a paz, senão por meio da guerra, da violência

Como é óbvio, a Democracia, por si, não é um instrumento capaz de apagar os erros históricos cometidos pelos governantes e pelas "cabeças pensantes" que comandavam e continuam a comandar os rumos políticos do País. Ela servirá, talvez, para impedir que cometamos os mesmos erros, por meio da experiência adquirida no passado. Porém, somente o preparo e o empenho de uma população comprometida com os ideais de Justiça social, liberdade (de pensamento, de empreendedorismo, de opinião, expressão e consciência) e igualdade (jurídica, política, cultural e de ascensão econômica) poderia concretizar os objetivos e defender os fundamentos do atual sistema político e do ordenamento jurídico vigente. Contudo, esse preparo pressupõe não apenas o conhecimento dos fatos, mas a possibilidade de refletir sobre cada um dos fatores que nos fazem ser quem somos - os "filhotes de ditadura". Ainda, esse empenho indica a abstinência de interesses individualistas e imediatistas que nos impulsionam antes à ação do que à reflexão, embotando o bom julgamento e impedindo a exposição de motivos daqueles que querem (e merecem) ser ouvidos.

Me incluo como membro de uma geração que não teve participação direta nos eventos que concorreram para o início do período em destaque, porque fui espectador passivo e impúbere do sentimento de mudança que acalentava os sonhos de uma liberdade que os meus pais não tiveram. Por sorte (e por várias outras razões), não posso afirmar que passei por perdas familiares, nem fui eu mesmo vítima da perseguição política, nem muito menos decidir agir violentamente para mudar aquilo que parecia imutável. Mas sinto-me no direito de requerer que haja a construção de um debate em torno dessas questões, que possibilite a exposição dos motivos, das razões e das desculpas (mesmo que esfarrapadas) que levaram compatriotas a mutilarem-se e matarem-se uns aos outros, em nome de ideologias e posicionamentos que afetavam a regulação da vida de toda a sociedade brasileira. Inclusive, penso que qualquer forma de autocracia - seja na forma de ditadura, seja na de autoritarismo - é sempre maléfica àqueles ideais destacados do preâmbulo constitucional e que, supunha eu, pudessem dirigir os rumos políticos do País.

Essas preocupações são mais inquietantes quando podemos assistir nos meios de comunicação de massa (até na via digital), a comemoração velada ao autoritarismo que vigorou e ao que continua a vigorar, de maneira difusa, no Brasil. É mesmo a expressão de um sentimento que se encontra arraigado na comemoração da diferença (desigualdade) e numa falsa meritocracia (posto que excludente a partir de privilégios injustamente adquiridos), que impede que o grande público tenha acesso a expressões que são afetas (e prediletas) aos bancos universitários - ainda não democratizados e, em que pese toda tentativa e esforço nesse sentido, continuam elitizados. 

Igualmente, me pergunto se, enquanto nação, podemos ser refratários à dor das famílias que perderam entes queridos - e algumas delas, impiedosamente massacradas - por força dessa autêntica guerra de todos contra todos. Talvez, seja necessário dizer que toda a sociedade perdeu com a tortura, os atentados, os enforcamentos, degolações ... que foram a prática corriqueira, tanto dos que se diziam defensores da liberdade, quanto dos que - em nome dessa mesma liberdade - praticaram essas barbaridades. Quantos males já se perpetuaram, e quantos outros ainda se perpetuarão em nome desse valor? Ainda na seara desses valores, quantos critérios seriam aplicáveis à igualdade, que nos colocam como inimigos uns dos outros, num país com riquezas incalculáveis, e quanto é possível se sacrificar esse povo em nome dessa (genérica) igualdade? Que Justiça social é possível diante dos privilégios, dos acordos entre poderosos, da inépcia das instituições e das precárias assistência e segurança sociais?

Enquanto o jogo da verdade continuar restrito aos mesmos jogadores; enquanto a maioria do povo continuar sem uma voz ativa e esse debate estiver concentrado na representatividade de minorias - que se arvoraram em proprietárias desse debate -, haverá solução possível? Quando deixaremos de ser "filhotes da ditadura"?

Esse diálogo é apenas uma fração correspondente a um sofisticado e longo debate, na dura luta pelo poder, pelas mentes e corações...



quarta-feira, 12 de março de 2014

A Democracia por um fio: coisas não queremos saber

O projeto democrático brasileiro vem, aos "trancos e barrancos", sofrendo diversos reveses nos últimos anos. Se é certo que depois da Constituição de 1988 pode-se falar de um ressurgimento da participação popular, é também correto admitir que ainda há muito a se democratizar no Brasil. Como um dos desafios, surgem as diversas e, por vezes, conflitantes perspectivas políticas e concepções ideológicas, calcadas nas tradições e leituras (ontologicamente construídas) que o legislador constituinte originário soube tão bem colmatar no texto constitucional - sob a rubrica do pluralismo político.

De fato, pode-se afirmar que, hoje, o Brasil possui um ordenamento jurídico que adota a liberdade de consciência política - encontrando respaldo na melhor doutrina do liberalismo político. Sob o imperativo categórico da tolerância, defende-se a ideia do lema "que vença a melhor ideia". O sistema federal, bicameral, compõe-se da Câmara dos Deputados e do Senado Federal que, juntos, desempenham a função maior da Democracia brasileira: o Congresso Nacional. Ali, todas as garantias para a desenvoltura dos debates estão assegurados: desde as garantias e direitos fundamentais, tais como a liberdade de expressão e consciência, até as garantias e direitos políticos, como a liberdade de filiação partidária e as imunidades parlamentares, há todo um aparato jurídico-político que conflui diretamente para o exercício de uma parcela de nossa Democracia - a representativa. Além disso, o País possui mecanismos de participação decisória direta, que ultrapassa as limitações do sufrágio universal e secreto, responsável pela escolha daqueles políticos: ferramentas como orçamento participativo, fiscalização e controle de contas dos poderes executivos (municipais, estaduais, distritais e federal), e outros, como a proposta de lei de iniciativa popular, referendo e plebiscito são todas ferramentas jurídicas à disposição do povo brasileiro, para o exercício de uma das mais preciosas conquistas sociais - a soberania popular.

Esse conceito de soberania popular, que adquirimos da tradição europeia, não é um conceito unívoco. Ao contrário, ele indica que há um certo tipo de soberania, qual seja, aquele no qual o poder deriva diretamente da vontade do povo. O conceito de povo, também, também não é unívoco - embora a preguiça e o senso comum tentem sempre distorcer o seu significado, para não falar das insidiosas práticas do intelecto desonesto, que deturpa o real sentido e alcance da palavra. Povo, no sentido constitucional, é a classe de pessoas que habita este País e que, sendo sujeitos de direito como todos os outros membros da população (estrangeiros, turistas e apátridas), possuem a capacidade ou a expectativa de direito de votar e serem votados. Seguramente, junto da melhor doutrina, referenciada aqui em Paulo Bonavides, no seu livro "Ciência Política", o elemento povo apresenta uma faceta jurídica (sujeito de direito) e outra política (poder, um dia, votar e ser votado).

Como se vê, até este ponto, Direito, Poder e Política são três elementos que estão em constante contato. Isso porque a Política é um meio, no qual o Poder se expressa e, como resultado, surge o Direito. Mas essa interação não pára nesta primeira síntese; assim como ocorre em todo processo dialético, esse resultado (o Direito) dá ensejo a novas conformações da Política, pois a dinâmica social é uma constante e, nela (na dinâmica social) ocorrem novas manifestações de Poder. A Sociedade promove constantemente uma reformulação dessa dialética, reconstruindo posições, com novas interações entre atores políticos que, negociando seus interesses e defendendo suas convicções e ideologias, fornecem novas configurações ao Direito.

A Democracia é, então, um jogo político que se desenvolve sobre o pano da liberdade política. E quanto mais saudável é uma Sociedade, mais claras são as intenções e os atos praticados pelos representantes políticos escolhidos pelo sufrágio, e mais acessíveis aos olhos do povo são os atos desses governantes e legisladores. Então, qual seria a dificuldade da Democracia à brasileira? Por que ela é uma Democracia de baixa intensidade - para utilizar uma expressão do professor sociólogo Boaventura de Sousa Santos?

1) Educação

Seria muito pertinente elaborar uma defesa da Educação que fizesse apologias emotivas ao valor dos professores, à necessidade de preparar as crianças para um futuro melhor e ... enfim, apelar ao bom senso do leitor. Mas o caminho a ser trilhado aqui é outro: o do cumprimento da Lei - coisa que nem a população, nem os governantes parecem gostar.

A Constituição Federal estabeleceu um conjunto enorme de artigos voltados ao desenvolvimento de uma Educação inclusiva, que fosse capaz de realizar os objetivos fundamentais da República, consubstanciados no art. 3º, que também concretizasse a dignidade da pessoa humana do art. 1º e, por fim, pudesse lançar as bases de realização de uma justiça social - conforme preleciona o preâmbulo constitucional. Ainda, colocou-a como um direito fundamental, pois ela integra o art. 6º, no capítulo dos Direitos Sociais, que pertence ao Título II da Carta Constitucional - que cuida dos direitos e garantias fundamentais (esse é o nome do Título, para aqueles que não sabem ou não "entendem" que a Educação e os direitos dos trabalhadores, por exemplo, são direitos fundamentais). Sobremaneira, desponta o clarividente art. 205, estabelecendo o que se pode entender como um rol taxativo e hierárquico dos objetivos da Educação: "(...) direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade"; a finalidade desse direito é (1) o pleno desenvolvimento da pessoa, (2) seu preparo para o exercício da cidadania e (3) sua qualificação para o trabalho.

Em que pese a valorização do trabalho como única forma de construção de riquezas, veja-se que a primeira diretiva teleológica é "o pleno desenvolvimento da pessoa", quer dizer, o desenvolvimento das aptidões que tornem o indivíduo uma pessoa feliz, realizada, consciente de todo o seu potencial. O segundo objetivo é "seu preparo para o exercício da cidadania". Nesse segundo ponto se descortina o principal entrave ao desenvolvimento de uma Educação democratizada: não havendo educação de qualidade para o trabalho, que torne a absoluta maioria da população apta à competitividade do mercado de trabalho da Era da Informática, o que se poderia dizer de uma Educação para o exercício da cidadania? 

A maior queixa e a grande parte das críticas que se fazem ao sistema eleitoral brasileiro é exatamente focada nas escolhas dos representantes políticos: embora existam restrições acerca da vida pregressa dos candidatos e as proibições de candidaturas daqueles condenados por crimes e delitos de variada ordem, as reclamações de uma parcela que se diz "esclarecida" clama pela proibição do voto dos analfabetos - proposta que faz lembrar o voto censitário, que já vigorou nestas terras.

2) Desigualdade social

Há redundância na junção das expressões "situação social no Brasil" e "desigualdade social". Desde a exploração-colonização, passando pela independência política e adentrando a fase republicana, a acumulação e concentração de riquezas e as mazelas da maioria esmagadora da população sempre andaram pari passu com a História Nacional.
Para não falar dos tempos em que havia mão-de-obra escrava e que essa situação era reconhecida pelo Direito positivado, e para não comentar sobre a escravidão que ainda se reproduz nos rincões deste vasto território, a situação das cidades e do campo evidenciam o que há muito se escreve e se descreve acerca da condição humana nas terras tupiniquins: vive-se a insustentabilidade de um modelo de produção que ainda não foi capaz de solucionar o problema da exclusão social. Se a educação de qualidade só existe na rede privada de ensino; se essa rede privada de ensino encontra-se fora dos padrões e possibilidades de consumo da maioria esmagadora do povo; se aquela educação pública, ofertada pelo Estado não serve minimamente à qualificação de trabalhadores; se essa escola pública é um depósito de jovens, que não oferece uma perspectiva emancipatória e, ainda por cima, os sujeita ao convívio das mais diversas formas de violência - da prostituição às drogas -, com raríssimas exceções... Então a conclusão a que se pode chegar é que o cenário de miséria e despreparo intelectual de crianças e jovens da maioria dos cidadãos é absolutamente incapaz de apaziguar o que se pode chamar de "jogo da ilegalidade".

3) Jogo da ilegalidade

Existe uma vasta literatura sobre os jogos psicológicos, que tanto se dão em nível individual, quanto coletivo. Uma das obras mais conhecidas nesse território é aquela da lavra de Eric Berne, intitulada "Games People Play", e é diante das estratégias dos diversos atores sociais que se instituiu no Brasil o "jogo da ilegalidade".

Essa interessante dinâmica começa no nascimento daquele indivíduo pobre e miserável, que recebe a alcunha de "favelado": quando ele nasce, se tiver a sorte de nascer num Hospital, pode até ter alguma chance mais segura de sobrevivência, mas geralmente vem ao mundo sem os menores cuidados; ao contrário do que ocorre com uma parcela minoritária da Sociedade brasileira, esse sujeito na maioria dos casos não é registrado (a certidão de nascimento no Brasil é paga, mesmo pelos hipossuficientes; embora a lei lhes garanta tal direito, os cartórios cobram os emolumentos dos pobres e miseráveis). Para o Direito, sua existência é uma situação de fato, visto que o formalismo jurídico que aqui ainda reina carece de uma comprovação que ele não pode fornecer. Além disso, com alguma sorte (se não for abandonado por uma mãe faminta e desesperada), a casa na qual habita não pode ser chamada de propriedade: ele não possui um dos direitos mais elementares, que é o direito de possuir um local onde se abrigue e no qual, sendo cidadão, estabeleça de forma segura a sua residência, seu domicílio.

Inclusive, diga-se de passagem que, esse seu direito de 1ª dimensão, um direito civil, de possuir algo como seu, é tolhido exatamente pela força do direito de quem possui a propriedade do terreno no qual seu barraco está construído. E é exatamente nesse momento, no da definição de "o quê é de quem" que começa uma das partidas mais cruéis do jogo da ilegalidade: esse sujeito, desprovido, despreparado e desapropriado tem que enfrentar aquela minoria citada anteriormente, que possui todas as condições materiais para competir e vencer a luta da sobrevivência numa das maiores potências econômicas do planeta (sim, a sexta economia do mundo). Uma potência econômica que ainda tem na terra e no solo os seus bens mais preciosos, extremamente custosos e cada vez mais escassos, visto estarem concentrados nas mãos daqueles que ou conseguiram o que têm através da herança (e nada conhecem do trabalho), ou obtiveram através da luta competitiva do sistema de produção vigente (porque estão aptos a concorrer), ou porque usurparam os bens através da malícia e violência (porque o roubo, a sedução e a corrupção também são meios à acumulação), ou porque tiveram sorte (no jogo, ou no "amor"...).

Nesse quesito, há também o Estado - essa pessoa jurídica de Direito Público controlada por políticos, funcionários e agentes públicos, numa das repúblicas mais corruptas do mundo. Esse ator agoniza de todas as formas: em primeiro lugar porque, obviamente, encontra-se a serviço de toda sorte de gente e do conflito de interesses dos políticos; em segundo lugar porque tem ainda que combater toda sorte de doenças sociais, como o crime organizado, a tensão constante da real politique praticada por outros Estados e assim por diante - inimigos internos e extermos; e em terceiro e último lugar, porque ele é operacionalizado por meio de regras burocráticas que o impedem de cumprir sua missão de forma efetiva e eficiente, o que dá lugar ao desperdício e desvio de recursos, quer por má-fé, quer por inaptidão de seus servidores e funcionários.
Some-se a isso o jeitinho brasileiro... E toda forma de legalidade e legitimidade não passará de mero discurso retórico ou, como se diz na linguagem politicamente-irrelevante das redes sociais, "blá, blá, blá"- coisa para inglês ver.

4) A violência e o abuso de autoridade

Não é à toa que o Brasil é um dos países mais violentos do mundo: todas as dificuldades na formação cultural e intelectual de seu povo - conforme narrado acima -, associada ao despreparo e desonestidade, agravada pela ilegalidade e temperada com a falta de oportunidades cria um sentimento de ineficiência e ineficácia dos institutos jurídicos e das instituições aqui referidas.
É curioso observar que até as opções de leitura filosóficas da parcela do povo que se prepara para preencher os cargos e funções públicas (os futuros burocratas, bacharéis em Direito), direcionam-se a autores cujo trabalho e especulações giram em torno da violência, do uso da força, da brutalidade e da concentração de autoridade. Quais outros, senão Hobbes e Maquiavel, a alimentar toda sorte de devaneio na mente dos incautos leitores, que desejam adquirir o conjunto de conhecimentos que tornam a razão instrumental apta à solucionar suas crises existenciais?

Embora exista aqui uma deferência ao autor inglês Thomas Hobbes, pela sua contribuição na formação do pensamento iluminista - e nos desdobramentos que essa escola trouxe ao pensamento e cultura ocidentais -, é necessário esclarecer alguns aspectos de sua teoria sócio-política, tendo em vista ser um autor estudado de maneira recorrente pelos estudantes de Direito - na seara da Ciência Política e Teoria do Estado. Ao lado desse nome, com a mesma ferocidade e vontade de poder, surge o autor Nicolau Machiavel, um dos nomes mais conhecidos pelos curiosos e investigadores que se debruçam sobre o palco da Política, numa tentativa de compreender seus lados e, sobremaneira, aquele mais obscuro - o autoritarismo. O primeiro chega a falar numa criatura monstruosa, avassaladora, invencível (o Estado), e a necessidade de ele concentrar todo o Poder (social), para determinar o futuro desse ser tão miserável, que é o humano. O segundo coloca à população, aos súditos, apenas duas opções: o amor ou o medo; a coerção como forma de dominação de todos, sob a ameaça de uma deusa da justiça que não tem nenhuma balança, nem venda, mas só a espada...
Diante de tudo isso, e do que mais ficou faltando falar, pergunta-se: qual será o futuro da nossa Democracia?

***
Em homenagem à professora Jacqueline Alves Soares, coordenadora do Escritório de Direitos Humanos do Centro Universitário Christus, a quem devo vários minutos extra-laborais, por uma importante discussão.