sexta-feira, 12 de junho de 2015

A Lua, o Lar e a Cidade: ensaio sobre os espaços humanos

As noites de junho em Fortaleza podem ser bem românticas. O calor da cidade é abrandado pela brisa leve, que corre desde a praia rumo ao interior. Isso, por si só, já é grande vantagem, numa região que só tem dois tipos de clima: quente e muito quente. O céu, quase sempre limpo, ostenta a lua dos namorados e das serenatas solitárias, enquanto a urbanidade descansa da vida caótica do trânsito e do trabalho extenuante da "corrida de ratos".


Numa dessas noites aluadas, a conversa com a amiga, filósofa e analista política Sandra Helena de Souza fluía no compasso da contemplação do belo, no bairro Papicu, quando fui capturado por uma epifania: estamos mesmo vivendo em pequenas tocas, como roedores. Essa súbita e chocante constatação estava envolta no contexto do descanso e do silêncio proporcionados pelo prenúncio da madrugada e da percepção visual da paisagem local, cuja brutalidade dos prédios circundantes era quebrada pela pracinha mal cuidada e desprovida de verde, que nada mais era que uma promessa de tranquilidade abandonada pela municipalidade.

Esse meio ambiente (social e natural) e suas artificialidades nos põe a pensar sobre nós mesmos, sobre a nossa condição cidadã, notadamente no que se refere ao lar, à moradia e à municipalidade. É aterradora a percepção de que reproduzimos um modelo de uso e ocupação do solo que, além de desordenado, tem nos colocado em pequenas unidades habitacionais desprovidas do conforto presumido pela lógica da modernização e crescimento econômico. Se essa já era uma realidade para a camada miserável da população que ou mora nos agrupamentos humanos do Estado paralelo - favelas -, ou daquela que habita os rincões do Brasil - na caatinga, no sertão, no cerrado -, hoje, esse cenário faz parte da realidade de todo o agrupamento social urbano, independente da posição socioeconômica dos trabalhadores. Essa é a lei econômica que só encontra duas exceções, presentes quer na liberdade absoluta do homem que possui todo o mundo para si - na figura metafórica do mendigo ou do louco, que é o proprietário absoluto da cidade e do lixo que ela produz -, quer na liberdade regulada do homem que possui o poder de controle sobre a distribuição da riqueza produzida - na descrição denotativa da realidade racional do sistema produtivo -, ambas relacionadas à condição de homem fundamental do nosso liberalismo selvagem.  

A moradia - invadida (favela) ou comprada (bairro) - é apenas o reflexo material da nossa cultural dissociação do meio ambiente natural. O curioso é notar que a contrapartida para o trabalho honesto (que deveria ser decente para todos, mas não é, bem o sabemos!) é o comprometimento com um sistema econômico que nos impulsiona para o trabalho subordinado (e cada vez mais subalterno), cuja única recompensa é uma vida de trabalho até a morte (work until you drop dead) e cujo o único alívio para o endividamento que nos consome a vida economicamente ativa é o sono intranquilo em nossas pequenas unidades habitacionais. Esse descanso hermeticamente contido possui uma dicotomia intrínseca: do lado da favela, a insegurança absoluta, gerada pela pestilência decorrente da falta de saneamento do esgoto ao céu aberto e da falta de água tratada, do assassinato de crianças e jovens das minorias étnicas; do lado do bairro, a insegurança relativa, guardada pelas cercas elétricas e vigiada pelas câmeras de segurança, e o medo e o preconceito constante em relação à pobreza (enquanto categoria discursiva: tanto do ser, como do não-ter). Mas não há enganos: quando o rico vive circundado pela miséria, ele é apenas um miserável de sorte (e a sorte não dura para sempre!).

Devíamos viver na praça, como fazem os felinos: esse espaço em que a Lua ainda é de todos e todas, onde a brisa desalinha todos os cabelos, e no qual a amplitude da cidade adquire um novo significado. A praça é democrática: é tanto dos solitários, quanto dos enamorados; por meio da fuga da toca, torna-se o lugar onde os roedores tornam-se gatos pardos, em busca do seu locus na urbe, numa relação de co-dependência humana que deriva de nossa condição social ou capacidade de socialidade. Se a vida é em cubículos, é preciso se construir e preservar espaços comuns para se poder pensar fora da caixa. Somente na praça é que se pode falar a língua dos gatos. Miau.

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Para Sandra.

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