terça-feira, 21 de novembro de 2006

Por uma nova Educação no ensino jurídico

Pergunto-me qual é a capacidade de alguns em compreender o Direito e empreender uma busca teórica por sua construção cognitiva. Parece-me que, do ponto de vista da experiência, existem quatro (ou mais) fatores que dificultam este aprendizado: 1) incapacidade de interpretação textual; 2) confusão de conceitos; 3) formulação de posicionamentos a partir do conhecimento vulgar; 4) ineficiência do modelo de ensino jurídico. É bem natural que o exame acurado desta problemática associado à contribuição de outros acadêmicos possa elencar uma série de outros fatores que influenciam nesta questão, só que estes, a meu ver, são alguns itens que todos os professores do curso de Direito costumam identificar de imediato. E, ainda, por ser um curso que habilita o estudante ao mercado de trabalho específico dos bacharéis em Direito - por meio dos concursos públicos para cargos na magistratura, defensoria pública, dentre tantos outros, e ao elementar exame de Ordem -, o ensino jurídico é trampolim para a melhoria da qualidade de vida e de trabalho de seus integrantes, o que o torna cobiçado e desejado por muitos.

Se existe um conflito no processo de aprendizado, ele se torna muito mais oblíquo no ensino superior. O professor, durante o ensino fundamental e médio, é o óbice à diversão da meninada. Querido professor, me ajude...Na Faculdade, ele é o principal "inimigo do aluno" no alcance do sucesso profissional, porque com uma baixa pontuação "que o professor dá", ou o aluno não poderá obter o diploma, ou não conseguirá competir ante às exigências do mercado de trabalho. Ainda, a manutenção da autoridade em sala de aula e a exigência da presença do aluno - estabelecida pelo Ministério da Educação, Cultura e Desporto (MEC) - complicam ainda mais o relacionamento entre essas duas pessoas na abordagem do objeto de estudo. Nas Ciências Humanas, esse conflito e as dificuldades se tornam ainda mais profundas, porque o objeto de análise deve ser submetido à uma diversidade imensa de métodos de observação e leitura, tornando-a não só subjetiva, mas, também, multifacetada - por vezes, são prismas jurídicos, filosóficos, sociológicos, históricos, econômicos, psicológicos e por aí vai. Até avaliar o conhecimento dos estudantes é um constante desafio, tendo em vista que compreender a leitura individual de cada aluno - claro, quando este ser efetivamente pesquisa e estuda o que lhe foi apresentado - poderá ser um incremento constante às aulas expositivas e fomentadores de debates.

O curso de Direito, por exemplo, lida com essa diversidade de métodos, consistindo uma área do saber humano que se dirige por meio do contra-ponto, da discussão, do discurso, do argumento, da retórica. Talvez, uma das mais complexas criações humanas, contém um sistema harmônico, aberto e dinâmico de regras de comportamento, trazendo uma gama enorme de titulares e destinatários dessas normas, ora para realizar a ordem social, ora a econômica, ora a estatal, ora a pública e assim por diante, com normas de natureza pública e privada, de caráter valorativo, prescritivo ou descritivo, com efeitos imediatos e programáticos, de aplicabilidade imediata e dependente de regulamentação posterior, de origem interna e externa. Como adequar este ensino ao calendário de 05 anos de curso? Já no passado, quando as áreas de que se ocupava o Direito eram resumidas um pequeno grupo de normas jurídicas das áreas dogmáticas, de Direito Civil, Penal, Processual (lato sensu), Constitucional (Tributário, Administrativo, Eleitoral, Financeiro) e Comercial, já era tarefa surpreendente apreender o Direito dentro deste tão curto lapso temporal. Com a implementação de normas protetivas das mais diversas áreas do saber humano com o advento de Direito Ambiental, do Consumidor, Direitos Humanos e Bioética, e com o estudo de disciplinas como Ciência política, Filosofia, Antropologia, Sociologia, Psicologia, por mais que se aumente a carga horária dos cursos de Direito, torna-se necessário aumentar o número de anos que o aluno deverá disponibilizar para ter a correta e mais ampla percepção do que se passa neste ramo do saber.

Fico surpreso ao ver o MEC promover as maiores "estripulias normativas", regulamentando os cursos ao redor do País, com o intuito de harmonizar o ensino jurídico, ofendendo muitas vezes a autonomia universitária - que é direito constitucional - e o bom senso - que respeita o interesse que direciona a criação de cursos que atendam os interesses específicos de cada região. Como assim? Primeiro, a autonomia universitária dá liberdade às instituições de ensino superior (IES's) a atribuição de liberdade acadêmica na estruturação das grades curriculares, atendendo diretamente os interesses dos corpos discente (alumni) e docente, num processo democrático sob os auspícios da direção geral e da coordenação de cada curso. Secundariamente, porque cada região tem interesses econônicos e sociais próprios, em que determinada área do conhecimento humano se apresenta como standard para o desenvolvimento regional e local. Por exemplo, corrigir os déficits democráticos no Nordeste, por exemplo, torna imprescindível uma abordagem mais incisiva do Direito público e dos Direitos humanos do quê no Sudeste e Sul do País (aonde a noção de reivindicação, protesto e defesa dos direitos fundamentais está mais presente no dia a dia das populações dessas Regiões). Outrossim, o Direito empresarial e tributário (necessariamente limites ao Poder estatal) e, ainda, o Direito comunitário (evolução do Direito internacional público) são disciplinas que precisam de um maior cuidado no Norte e Nordeste do quê no Sul, Centro-Oeste e Sudeste, ante a aplicação esparsa que cada um desses ramos têm na vivência jurídica dos Tribunais daquelas duas primeiras Regiões.

Qual é o principal objetivo deste texto? Criticar o atual modelo de ensino que é "empurrado goela abaixo" pelo MEC. Porque as divergências culturais e as dificuldades sociais que estão inerentes ao processo de aprendizado necessitam de soluções regionais diferenciadas. É muito mais complicado ensinar Direito internacional no Nordeste, do quê fazê-lo nas Regiões sulistas do Brasil - porque quanto mais perto do Equador, menos se fala outra língua estrangeira, por exemplo, ou menor é o poder aquisitivo e o domínio de (acesso à) tecnologia pela população. E isso se dá não por questões de determinismo geográfico, mas por questões de ordem econômica que são definidas pelo Poder econômico central.

quinta-feira, 16 de novembro de 2006

O caos nos aeroportos e os problemas de sempre.

Com muita satisfação escrevo meu primeiro artigo no blog, aproveitando para agradecer ao Prof. Torquilho pelo convite e oportunidade que me deu de compartilhar minhas idéias neste espaço.

Neste momento inicial irei me reservar a escrever um ponto de vista, sem maiores técnicas ou aprofundamento teórico, simplesmente um artigo de opinião.
Acredito que todos têm acompanhado o verdadeiro caos que se abateu nos aeroportos brasileiros nos últimos dias, com atrasos absurdos de vôos, falta de informação e jogo de empurra entre os responsáveis pelo controle aéreo do país. Em um primeiro momento, podemos achar que se trata apenas de mais um problema que ocorre no Brasil, porém vejo esta situação com um pouco mais de profundidade, ela simplesmente representa e externa a verdadeira falência do nosso país.


O que temos visto nos aeroportos nada mais é do que o descaso com que as autoridades do Brasil tratam suas responsabilidades, ou seja, uma verdadeira mistura de falta de investimento, ausência de planejamento, corrupção e manutenção de métodos arcaicos.

Infelizmente, no Brasil se faz necessário que ocorra uma tragédia para que haja alguma forma de comoção nacional em torno de temas públicos. O acidente recente com o vôo da GOL nada mais é do que uma combinação de falta de infra-estrutura e inchaço no sistema aéreo do país. Foi preciso a perda de mais de cem vidas para que as autoridades começassem a perceber o caos que se instalou no controle de vôos do país.

Alguns pontos emergem com muita facilidade:

Conforme fontes oficiais, o setor aéreo recebeu metade da verba que o governo destina para sua manutenção (na qual estão inclusos os reparos técnicos, contratação de pessoal e modernização das ferramentas). Então pergunto: onde está a outra metade? Foi retira pelo governo? Ou perdeu-se pelo caminho?
O Brasil é um dos poucos países do mundo onde a função de controlador de vôos civis é militarizada. À primeira vista parece algo não tão nocivo, porém é devido a isso que vemos barbaridades como a do dia 14/11/06, na qual os operadores ficaram aquartelados, ou seja, retidos no trabalho até que a situação se normalizasse. Ou seja, a solução dada pelo governo foi muito simples: ao invés de assumir o déficit de pessoal e iniciar os procedimentos imediatos de contratação, optou-se por "aprisionar" os, já sobrecarregados, operadores para dar uma resposta à sociedade.

A iniciativa privada fez sua parte na aviação brasileira, ou seja, aumentou a quantidade de vôos para suprir a crescente demanda. Já o poder público ficou paralisado em suas atividades e nada investiu para modernizar e expandir o setor.
No Brasil, infelizmente, as repercussões da falência estatal são proporcionais ao poder aquisitivo dos atingidos. Todos sabemos que quem viaja de avião pelo país, com raras exceções, são pessoas que detêm situação monetária mais elevada do que a média nacional, então o clamor vindo do caos que se deu nos aeroportos se torna mais evidente e maior do que situações que já são consideradas "normais" e ocorrem todos os dias diante de nós, como as esperas eternas nos hospitais públicos, a depredação das escolas do país e as elevadas taxas de desemprego.

Assim, pergunto-me: onde iremos parar? O que será do nosso país? Devo confessar que fico extremamente temeroso ao ouvir a declaração que foi dada pelo Ministro da Defesa no início do caos aéreo de nosso país, quando o mesmo afirmou que "não sabia que a situação dos controladores de vôos era tão grave". Aderindo a recente tendência governista brasileira do "eu não sabia de nada", o Sr. Valdir Pires deixa um clima de tensão no ar, pois é preocupante que o Ministro da Defesa (da Defesa!) não tenha conhecimento profundo de suas atribuições. Servindo-me um pouco da ironia, temo que estejamos na iminência de uma invasão por parte de algum país e nosso estimado Ministro sequer saiba que isso possa ocorrer.

Então este é o Brasil: o país que a partir de agora iniciará a "onda do crescimento". Pergunto-me como se dará esse tão falado crescimento, de 5% ao ano segundo as estimativas da Fazenda Nacional, já que o que realmente vejo na realidade brasileira são os nossos talentos de sempre: corrupção, provincianismo, carga tributária crescente, informalidade, desemprego, violência, enfim, completa falência pública e estado de anomia.

Ficam expostas as idéias para reflexão e críticas.

quarta-feira, 15 de novembro de 2006

Livre circulação e espaço comum europeu

A União Européia (UE) é o resultado de um audacioso plano proposto pelos europeus para a reconstrução da Europa devastada pela 2ª Guerra Mundial. Não obstante os tropeços e dificuldades que esta ação enfrentou e enfrenta, é um marco na História da formação de um novo conceito de mundo globalizado que deve servir de paradigma àquelas nações que anseiam defender-se da vertente econômica capitalista atual - o neoliberalismo.

Embora persista o sentimento de pessimista (Europessimismo) dentre as várias camadas da população euro-cidadã, principalmente daquelas que se ressentem da falta de investimentos e das metas de crescimento econômico, a UE tem o mérito de consagrar a liberdade de movimentação de trabalhadores e pessoas no seu território interno - que é um dos pilares do modelo de cidadania europeu. Por vezes corrigindo mas, também, causando distorções sociais, esse modelo é uma tendência irreversível que trouxe significáveis mudanças na interpretação das normas protetivas sociais, pois estabeleceu o critério de harmonização das normas sociais sem prejuízo aos sistemas previdenciários mais avançados, por exemplo. Ainda, impulsiona, também, uma transformação do pensamento europeu, fragilizando o sentimento nacionalista - por criar um espaço comum que favorece a mistura entre as pessoas dos mais variados países da Europa.


Ora, toda grande idéia carece de pureza na sua praticidade. Dar condições à humanidade de superação de suas dificuldades de convivência é tarefa que esta cidadania européia traz. Como ensina o passado, naquele continente, as políticas nacionalistas só trouxeram benefícios àqueles que dominavam as mais altas esferas do poder - como foi o caso do fascismo -, pois criavam um instinto anti-natural de segregação que ainda produz efeitos naquele continente. A xenofobia européia é decorrente, também, dessa "necessidade" criada pelas ideologias fascistas e fundamentada na defesa da cultura - "custe o que custar".

Atentos a esses desafios, alguns teóricos da integração ressaltam que a miscigenação dos povos (e das culturas) europeus é ação pública comunitária imprescindível à manutenção dessa organização supranacional. Harmoniosamente, o Acordo Schengen é instrumento jurídico suficiente à concretização desse plano integracionista. Por dispor das regras para a livre circulação de pessoas, é elementar à compreensão do que poderá vir a ser essa cidadania européia do futuro. Entrementes, cada vez mais, os processos políticos são trazidos ao seio social como uma ferramenta de legitimidade da UE e, não só circular, mas, também, votar nos representantes políticos comunitários é um direito que se afirma entre cada uma das pessoas que tem a nacionalidade de um dos países membros da UE.

Portanto, as medidas assecuratórias dessa liberadade de locomoção de pessoas na UE, com a supressão das fronteiras nacionais, tornam-se obrigatórias à defesa de direito fundamental dos cidadãos europeus. Por força dos valores defendidos nos tratados comunitários, todas as políticas públicas a serem praticadas deverão encontrar não só por base, mas por limite, a garantia de efetivação e concretização desse direito elementar, com o intuito de concretizá-lo e para que no futuro, ele possa ser universalizado e globalizado à sociedade humana - sem distinção de nacionalidade, etina, religião, convicção política (...).

Direitos do feto?

Qual a extensão do direito à vida? O conjunto de células iniciais nas primeiras semanas de gravidez estão albergadas por este conceito de "direito à vida"? Em caso afirmativo, as células de proveta, nos laboratórios, também estão assim protegidas? Qual é a finalidade da defesa da vida: a vida em si ou o indivíduo que dela poderá se formar? Aqui estão alguns desafios e questionamentos aos autores da bioética.

Recentemente, pesquisadores e médicos britânicos defenderam a tese da insustentabilidade da vida de fetos com menos de 23 semanas e, portanto, a abstenção de cuidados com aqueles que não tenham atingido tal período de existência - com a anuência dos pais. De outro lado, a Corte portuguesa autorizou o referendum sobre o aborto em Portugal - país de maioria católica, no qual dificilmente essa medida seria aprovada. Em ambos os casos, estamos diante do direito objetivo à vida. Até que ponto esse direito deve ser buscado e defendido?


Do ponto de vista prático e por uma questão de natureza jurídico-cultural, o ser humano é considerado titular de direitos no momento que nasce com vida. Porém, esta cultura, no decorrer do século XX, passou a considerar também os direitos do nascituro - como uma reafirmação das regras morais e penais que execram e que punem o aborto. Do ponto de vista filosófico, parece estranho o que se vai aqui afirmar, mas o debate se sobrepõe aos valores - as idéias precisam fluir, para que se legitimem as conclusões. É preciso debater acerca dos direitos à vida e ao patrimônio genético: a defesa da vida abrange não só a vida humana, mas a vida em si, ou seja, todo fenômeno de interação que tenha por unidade elementar o código genético. E questionar-se sobre os direitos do feto é delimitar ainda mais a expressão do direito à vida, adentrando em um interesse da espécie humana.

Preservar a vida é garantir a continuidade do patrimônio genético - objetivo principal de todas as formas de reprodução. Veja a "inteligência" da natureza, ao transformar a reprodução sexuada em atividade prazerosa aos seres - mesmo os insetos arriscam a vida para procriar. Não se fala em continuidade no sentido de perpetuação de apenas um modelo genético, mas na possibilidade de combinações interativas e mutações, que tornam possível a diversidade biológica. O interesse de eficiência não pode se sobrepor ao instinto básico da vida, que é luta pela sobrevivência e "publicação" do patrimônio genético na "livraria da natureza". Essa eficiência econômica e social, buscada na pós-modernidade, deve preservar aquilo que é mais elementar e que, talvez, seja um dos motivos pelo qual a vida em si existe e tornou possível a existência do raciocínio: despertar as mentes daqueles que podem ter suas mentes despertadas à proteção desse conjunto de aminoácidos que, enigmaticamente, insistem em se replicar - desde as bactérias aos grandes mamíferos.

Grosso modo, num caminho inverso, partindo do direito ao aborto ao direito do feto, o que se deveria estar a discutir seria o choque de direitos entre o direito da mãe e o direito do feto. Isso porque a mãe, é indivíduo adulto que tem direitos a serem tutelados, dentre os quais o de livre disposição de seu organismo. O feto, por sua vez, é vida humana que precisa de proteção, também detentor de direito de preservação de seu patrimônio genético. Se a vida é um bem precioso, os recursos econômicos e científicos devem estar voltados à sua preservação e deve ser compromisso da sociedade humana a luta para que toda a diversidade natural seja preservada - ainda mais quando se considera o ser humano enquanto elemento essencial a essa diversidade. Inclusive, para que se considere o que venha a ser um direito individual, deve-se entender que para a existência de indivíduos, necessária se faz a proteção da diversidade étnica existente entre os humanos. Ora, a natureza apresenta algumas soluções inteligentes que deveriam ser copiadas mais repetidamente pela "criatividade" humana.

Quando um projeto natural tem sucesso no meio ambiente, ele consegue perpetuar seu alicerce genético através da reprodução e, em muitos casos, a combinação de códigos entre as espécies e reinos de seres vivos trás resultados surpreendentes quanto à possibilidade de vitória desses projetos - como é o caso dos vírus, que sofrem mutação por absorver seqüências genéticas de células hospedeiras, ou dos seres vivos que co-existem em simbiose e mutualismo. Associar, portanto, desenvolvimento científico com a perpetuação dos códigos genéticos deve ser a preocupação neste século de descobrimentos biológicos.

O feto, ou melhor, o conjunto de células que encontra-se no útero de uma fêmea da espécie humana deve ter a mesma proteção do feto de uma fêmea de urso panda, porque essas mães carregam uma combinação única de DNA que tornam possível a existência de um indivíduo. O direito das mães em não prosseguir com a gravidez deve ser amparado por um método capaz de preservar o código genético daquele embrião. O embrião que encontra-se em poder de um cientista, deve ser preservado para que aquela possibilidade de vida possa um dia se concretizar. Aí estão algumas idéias ao debate.

sexta-feira, 10 de novembro de 2006

O Poder do Estado e a Soberania no Século XXI

O Poder do Estado é uno e indivisível. Dentro dos limites territoriais do Estado, não reconhece nenhum outro superior ao seu. Na sociedade internacional de países, os Estados se reconhecem como iguais. Estas são as linhas mestras do ensino da disciplina de Teoria Geral do Estado.

Durante todo o século XX, estudantes de Direito tiveram por paradigmas as noções de soberania e poder estatal como instrumentos de controle e organização sociais, na gestão/organização/direção da coisa pública e da própria sociedade política. Sendo o Poder estatal uno, superior, indivisível e inalienável, doutrinas foram as que tentaram justificar a sua concentração nas mãos de uma minoria - mais apta à exercer o domínio social (soberania nacional) -, ou a divisão desse poder entre os homens e mulheres do povo (soberania popular). Daí, desta última, se organiza o sistema representativo da democracia semidireta que conhecemos no País, atualmente, que tanto traz dúvidas quanto à sua efetividade e quanto à praticidade/eficiência de seus instrumentos.

Sendo o Estado um substituto entre os cidadãos, agindo como mantenedor da sociedade de particulares, todas as vezes que esta não encontra as condições necessárias para se desenvolver sozinha, ou atuando na resolução dos conflitos sociais, o Estado age de forma a compor conflitos ou realizar as condições materiais necessárias à subsistência da sociedade. Assim, organiza suas funções: administrativa, judiciária, executiva. Cada uma delas se reveste de autoridade - e não de Poder. Explico. Primeiro, os órgãos que exercem estas funções estatais são ocupados por pessoas físicas. Segundo, essas pessoas estão lotadas e/ou investidas em cargos, como representantes do Estado - tendo em vista o fim do poder pessoal das pessoas que ocupam as funções públicas, que nos remete ao extinto Estado absolutista. Terceiro, esses funcionários e agentes públicos estão submetidos ao controle do ordenamento jurídico. E, por fim, sendo funcionários ou agentes, retirando a competência para executar suas atribuições funcionais diretamente da lei e estando submetidos ao princípio da legalidade, todas as vezes que praticam atos atentatórios ao Direito e nocivos à sociedade, podem ser submetidos ao controle jurisdicional de seus atos. O detentor do Poder é o povo, nos termos da Constituição Federal. Se os políticos eleitos não são os "donos do Poder", mas meros representantes, imagine um agente policial ou fiscal admnistrativo - classes que constumeiramente abusam da pequena esfera de autoridade que possuem. Quando essas pessoas praticam atos de violência ou estrapolam o exercício de sua atividade, estão cometendo ou abuso de autoridade, ou desvio de finalidade, e não abuso de Poder - porque Poder não têm, embora muito desejem-no.

Entretanto, mudanças nas relações econômico-sociais e tecnológicas trouxeram um novo modelo às relações sócio-jurídicas, tanto no que pertine à intersubjetividade dos cidadãos entre si, como entre os cidadãos e o Estado e, ainda, nas relações dos países no plano internacional. Entre os particulares, veja-se o fenômeno do poder de fato das organizações criminosas e do para-estatismo da organização social das favelas nas grandes capitais do Brasil, por exemplo. Se a teoria jurídico-política admitia aqueles valores iniciais, citados alhures, como elementares e direcionadores da atuação estatal, o cenário atual demonstra uma complexidade que exige do cientista político uma revisão profunda desses conceitos. Sabe-se que países com extrema força militar e econômica determinam o destino de milhares ou milhões de habitantes de outros países, vez que controlam-lhes a economia e/ou liberdade; cai por terra ou se torna puramente ideológica qualquer pretensão que alegue igualdade entre os Estados na comunidade de países ou que coloque a soberania popular como força predominante nas sociedades capitalistas contemporâneas - principalmente quando considerado o fenômeno das empresas multinacionais, que detém capital superior ao P.I.B. de centenas de países ao redor do mundo e que podem facilmente condenar toda a estabilidade social de um Estado subdesenvolvido.

De fato, muito se debate, atualmente, acerca de uma nova noção de soberania que seja capaz de explicar quais seriam seus fenômenos concretos - e não meramente ideais. Neste diapasão, as organizações internacionais de países e seus tribunais são ferramentas jurídico-políticas representativas dos interesses dos Estados que, cada vez mais, afirmam seu papel predominante na determinação dos rumos do governo dos países - que o digam o F.M.I. e o B.I.D., do lado privatista, e a O.N.U. ou U.E., do lado publicista. Seja como for, o Estado tem sua atuação soberana cada vez limitada por fatores de ordem jurídica e de contingência econômica, que retiram-lhe o Poder da forma como este foi concebido desde Hobbes e Rousseau até Norberto Bobbio. Hoje, muito mais do quê auto-determinação, existe uma crescente imposição de padrões mínimos e modelos sócio-econômicos globalizantes que demonstram uma tendência à harmonização de legislações entre os países e que insiste numa universalização de costumes e culturas.

Mas, uma coisa é certa: assim como não se pode "confundir alhos com bugalhos", nem "capitão de fragata com cafetão de gravata", o mínimo que um bom jurista pode fazer é inteligir acerca das teorias do passado (da soberania), para entender o atual estágio e o que vem pelo futuro (a globalização e a supranacionalidade). Senão, ficará atrelado aos "achismos" e "acreditismos" de fundamentação ideal-dogmática.

terça-feira, 7 de novembro de 2006

O livre comércio neoliberal e os interesses imperialistas

Empresa de consultoria Control Risks avalia Brasil como país de nível médio de risco para a instalação de empresas internacionais. O estudo elaborado tendo em vista o próximo ano financeiro - já iniciado nas bolsas norte-americanas - avalia as condições de segurança, a estabilidade política e um ou outro indicador social, conforme informações da BBCBrasil.

É de causar certo espanto ver a redação do artigo colocar o Brasil em nível médio de risco e, logo a seguir, relatar os casos da Somália, República do Congo e outros países da África, como sendo os piores lugares para a instalação/investimento de empresas internacionais e multinacionais no mundo. Mas, o que causa sobressalto é ler que Rússia (!) e China (!!!) teriam que efetuar pequenas correções e melhoras para atrair mais investimentos. Ora, ora, ora. Veja só: mais uma vez, vê-se confirmada uma certeza que assombra e causa temor, qual seja, a de que o capitalismo não precisa de democracia. Se aquela empresa de consultoria não deixa claro, leia-se, em letras capitais, que: a China, um país repressor, anti-democrático, ditatorial (...) precisa fazer "correções" na área social ou, em outras palavras, impor alguns controles sociais ao seu mercado de trabalho. Apenas. E por que? Porque um país bem controlado, rígido, ao melhor estilo positivista "ordem e progresso" é o melhor cenário para a implementação do capitalismo selvagem - que no caso, é controlado pelos governantes do Estado, que são os proprietários dos meios de produção e, portanto, os verdadeiros empregadores naquele país.


Bem, a despeito de qualquer tese em contrário, é bem conhecido o fato de que existem pelo menos 800 milhões de chineses que vivem em condições precárias e miseráveis de vida - abaixo da linha da pobreza -, que sustentam os outros 400 milhões de habitantes que conseguem viver num estilo de vida capitalista incipiente - com melhoria das condições materiais de sobrevivência. Ainda, Rússia é um país controlado ditatorialmente pelo senhor Vladmir Putin, há "sabe lá Deus quantos anos". Um ex-KGB, que vive estilo de vida ao melhor modelo alagoano, controla com mão-de-ferro aquele país, que possui profundos problemas com a máfia, a altíssima concentração de renda e tantos outros problemas que é melhor parar pela Chechênia (Czeczenia).

E o Brasil? Nível médio. Pois bem. Depois dos escândalos propagados contra o gabinete da Presidência - que visivelmente deve explicações -, das rebeliões no sistema carcerário - principalmente daquelas promovidas pelo Primeiro Comando da Capital (PCC) -, tudo isso propagado pelos quatro cantos do mundo pela mídia nacional - que apelou contra o sistema democrático de governo, diga-se de passagem -, o Brasil só poderia ficar mesmo atrás da Rússia e da China. Por quê? Porque aqui a democracia está em construção. Como assim? Porque aqui, os grupos de pressão, a mídia principalmente, mas, ao lado dela, sindicatos, lideranças comunitárias e movimentos populares e seus formadores de opinião atuam, todos eles com liberdade - nos "melhores" ideais liberalistas -, cada qual tentando coordenar as atuações políticas do Estado. E a instabilidade é natural, num cenário como este. Até que verdadeiras lideranças se solidarizem, com o surgimento de novas alianças e modernos partidos políticos, até lá, não haverá a estabilidade necessária ao crescimento econômico desejado pelos analistas neoliberais. Por quê? Porque é preciso desenvolver o social e cuidar da pueril democracia brasileira. Começamos um projeto que só trará resultados a longo prazo.

Portanto, até que a "casa esteja em ordem", é melhor o leitor ir se acostumando a ler esse tipo de reporte na mídia internacional. Agora, uma coisa se pode facilmente constatar: existem mais países (europeus) aplaudindo as iniciativas brasileiras do que imaginam alguns analistas econômicos locais e internacionais. É um momento de divisão/equilíbrio do poder mundial, que oscila entre o militarismo mercantilista (Estados Unidos da América - EUA) e o livre-comércio (União Européia - UE).

domingo, 5 de novembro de 2006

O muro da vergonha

"Muro da vergonha" era a denominação do muro de concreto que separava a Alemanha em duas, até 1989. A expressão era mais que apropriada, pois trazia consigo um cabedal de informações históricas que culminaram com a divisão daquele país em duas repúblicas: controladas por americanos e russos, respectivamente.

Perestroikas e glasnosts à parte, parecia que o mundo entraria num estágio mais avançado de relações internacionais, em que as populações e nações, vencendo suas diferenças ideológicas e culturais, se integrariam ao livre comércio e livre circulação de pessoeas, vez que não haviam mais inimigos de Estado. Entretanto, a política neo-imperialista e desastrosa dos Estados Unidos da América jogaram um balde de água fria na paz mundial; logo após o fim da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), o mundo entrou numa espiral de violência que tornou necessário o isolamento de países, cada um construindo seu próprio muro da vergonha.

Até alguns meses atrás, Israel dava um péssimo exemplo à comunidade internacional, iniciando a construção do seu "muro da vergonha", para impedir o acesso de palestinos e árabes ao seu território. Sim, claro. Israel alega seu legítimo interesse em diminuir os atentados à população israelense que ali vive e, constantemente, é atacada pelos fanáticos religiosos do islã. Veja só que belo exemplo de ausência de políticas sociais capazes de efetuar a inclusão social dessa população palestina que orbita em torno do Estado de Israel (...).

Hoje, em algum dia de novembro de 2006, os Estados Unidos da América (EUA) iniciaram a construção de seu próprio muro da vergonha. Os norte-americanos, preocupados em proteger seu território da ameaça do terrorismo, ou melhor, sob esta justificativa de proteção da pátria de possíveis ataques terroristas, erguem, no sul do país, um muro que impeça a entrada de imigrantes ilegaus. MENTIRA! A justificativa é outra, econômica: querem impedir que os vizinhos pobres entrem e permaneçam em solo americano. Este é o tratamento dado pelas autoridades e políticos norte-americanos aos seus "quase-futuros" irmãos latino-americanos do bloco econômico ALCA: total liberdade para o capital yankee e nenhuma inclusão social latina. Os cidadãos americanos que moram na fronteira reconhecem as dificuldades a que estão submetidos esses "refugiados da miséria", que querem entrar em seu país - enfrentando o deserto e suas ameaças peçonhentas; são estes cidadãos fronteiriços que, muitas vezes, ajudam essas pessoas, fornecendo-lhes água e comida, cuidando de sua recuperação - até que as autoridades da imigração cheguem e recolham esses infratores. Não é a questão de se permitir a entrada de qualquer um naquele país; é a criação de um "mecanismo de defesa" que não impedirá que os mexicanos e outros latinos façam a jornada à terra da liberdade (...).

É uma questão de direitos humanos que os republicanos teimam em olvidar. A atuação econômica norte-americana na América Latina é uma das principais causadoras do atraso econômico e da miséria desses povos "de baixo"; quanto mais os brothers do norte ficam gordos e desperdiçam recursos, mais a miséria impõe condições desumanas de vida às populações marginalizadas dos países latino-americanos. Desculpe-me se estou colocando a questão das fronteiras em segundo plano; reconheço, assim como você, o direito de cada país em defender as suas fronteiras. Mas o que está em jogo, aqui, é a falsa promessa norte-americana: "America has never been united by blood or birth or soil. We are bound by ideals that move us beyond our backgrounds, lift us above our interests and teach us what it means to be citizens. Every child must be taught these principles. Every citizen must uphold them. And every immigrant, by embracing these ideals, makes our country more, not less, American" (George WWW. Bush). Lembre-se destes ideais, Sr. Bush. Lembre-se que as pessoas que atravessam o deserto Mojave (Sonora) não são terroristas, a despeito do que seus correligionários republicanos afirmam - são pessoas humanas, em busca de melhores condições de vida que se concentram de forma injusta dentro das fronteiras de seu país.

Neste ponto, uma consideração espicaçante. A melhor forma de solucionar a "corrente migratória" humana em questão é implementar um bloco econômico no estilo europeu, que se funda nos três pilares do atual estágio da economia daquela região: livre circulação de capitais, trabalhadores e serviços/produtos - com um sacrifício maior daqueles países que podem melhor suportar os custos dessa integração.

A transição do gabinete estadual: Ceará

"Rei morto, rei posto". A transição governamental do Estado do Ceará se dá em tom de ressentimento político; sem dúvida, depois de mais de 20 anos governando este Estado-membro, o partido político que se despede amargura uma derrota no primeiro turno sem precedentes e, de quebra, a eleição de um senador que destoa grandemente da tradição política cearense.

Correio eletrônico do Deputado estadual Heitor Ferrer apimenta este quadro de mudanças: "O governo do Estado terá que se explicar ao Ministério Público Federal e responder à duas ações na Justiça Estadual sobre a licitação promovida para a execução das obras de ampliação do terminal portuário do Pecém". A prática de endividamento de gabinente do sucessor adversário é bem comum nas republiquetas e nos rincões mais distantes da civilização republicana; lá, esta prática é bem conhecida: o adversário político ganha as eleições e "herda" o executivo com o "caixa vazio". E, não é só. Além desta prática insidiosa prejudicar a vida dos administrados - pois faltarão recursos aos cofres públicos às áreas sociais, indubitavelmente -, alega-se no caso um vício de legalidade do edital que inicia o processo de licitação - o que causa enorme surpresa aos que confiam nos altos padrões éticos do atual gabinete!

Ora, ora. Desde que as cabeças rolaram na Europa moderna que não se pode mais falar de pessoalidade nos cargos das instituições estatais. Se quem ocupa o cargo público tem o dever de moralidade e probidade, zelando o patrimônio com o intuito de não agravá-lo em prejuízo aos interesses públicos, quiça poderia assim não proceder quem perde a eleição...

A ação é movida pelo Ministério Público Federal, ainda, porque não foram apresentados estudos de impacto ambiental que demonstrassem a inocuidade das obras ao meio ambiente. Agora só resta esperar a decisão do Judiciário. É pena ver uma transição política no Governo do Estado iniciar-se desta forma: o rei morto, no seu último suspiro, condena seu reino à ruína.

sábado, 4 de novembro de 2006

O sufrágio universal e os analfabetos

O sufrágio é o direito conferido ao cidadão de participar na gestão da coisa pública. Essa participação poderá ser direta, se o povo decide sobre a prática de ato de governo, ou indireta, se o povo escolhe representantes políticos - que receberão das mãos do povo um mandato eletivo para exercer, como mandatários de uma delegação de poder, a gestão pública, elaborando leis e executando atividades do Estado. Eis a lição de Paulo Bonavides, em "Ciência política", na segunda edição, de 1974, bem cuidada, que conservo entre minhas obras preferidas.

Na República brasileira, o sufrágio é univeral e compreende as idéias de eleição, forma de escolha do representante político, e voto, decisão manifesta pelo representante escolhido na eleição. "Votar" - sabemos que não é esta a expressão - é um direito e um dever, concedido e imposto aos brasileiros. Se, por um lado, todos são autorizados a votar - desde que cumpram as exigências da legislação eleitoral -, de outro lado, a obrigatoriedade do "voto" força os eleitores inscritos a comparecer às urnas e registrar sua escolha - seja ela qual for, vez que além de obrigatório, é direto e secreto. Escolher os representantes é um ato coletivo, que ultrapassa os eventuais interesses do indivíduo e o congrega ao interesse público para que o Estado possa organizar suas instituições representativas; daí a eleição não pertencer ao Estado, mas ao povo. Os eleitores que não comparecem aos locais indicados pela Justiça Eleitoral sofrerão sanções estatais pela inobservância do dever eleitoral. Independente deste caráter obrigatório, eleger um representante continua a ser um direito oponível e exigível: quem vir impedimento a seu exercício, pode confrontar aquele que impede e exigir do Estado a proteção necessária a assegurar o sufrágio. Assim, o cidadão vê concretizado um direito humano fundamental: acesso ao Estado, por meio da manifestação de liberdade de expressão e opinião política, na escolha de representantes políticos, conforme ilustrado na Declaração Universal dos Direitos Humanos.

Diante do atual quadro institucional brasileiro, algumas "mentes brilhantes" têm defendido o retorno ao sufrágio restrito. A "crise ética" ganhou força na mídia "imparcial" brasileira e, com essa força, se multiplicaram as vozes nas classes mais abastadas contra a participação do "povão" nas eleições, por meio de restrições ao voto popular. Ora, convém dizer o quê vem a ser isto, sufrágio restrito, antes de se proceder qualquer comentário ou qualquer linha ácida contra o instituto. Entenda-se bem que, diante da teoria do sufrágio restrito, pertencente à tradição da soberania nacional fulminada de morte no século XIX, somente algumas pessoas da sociedade têm o direito de exercer o sufrágio; este restrito grupo seria composto pelas pessoas mais capacitadas ou aptas, vez que representariam a "nação", o grupo étnico ou tradicional capaz de determinar qual a melhor política governamental. Este grupo seria composto por pessoas "de berço", a exemplo dos patrícios da Roma antiga, ou que preenchessem "determinados requisitos de riqueza ou instrução" (BONAVIDES, 1974, p. 274). Ou seja, estabelecer critérios de formação educacional para restringir o acesso do voto dos analfabetos é forma ilegítima de se compôr o Poder do Estado, vez que a soberania não seria popular, mas nacional (de uma nação, de pessoas com determinado e adequado "sangue azul").

Impossibilitar a participação dos analfabetos, ou melhor, daqueles que não saber ler e/ou escrever, não resolve o problema ético da política brasileira. Alega-se que eles, analfabetos, não sabem votar, não sabem escolher seus representantes, porque não têm formação acadêmica, ninguém os "ensinou a pensar". Ora, fico surpreso. Bem sabemos que não é uma Academia que forma um bom estudante ou um estudante politizado, bem informado; o quê forma uma cabeça pensante é sua curiosidade e persistência na busca do saber. Quantos jovens, que sabem ler e escrever, são incapazes de interpretar a realidade fática ou mesmo a mensagem dos livros neste País? A quanta desinformação está submetida a população brasileira, de todos os níveis sociais, que absorve passivamente a informação dos meios de comunicação de massa, sem interagir com a notícia? Quantas são as pessoas deste País que, além de trabalhar feito escravos, têm tempo de ler livros, quaisquer que sejam os livros? Conheço camponeses do interior deste Ceará que tem desenvoltura "p'ra colocá muito doutô no bolso". As pessoas humildes deste País - não se esqueçam - pertencem ao mesmo grupo destinatário das normas daquela Declaração de 1948 (sempre tão esquecida...), que assegura à espécie o direito de participar nas decisões democraticamente. Muito pior que o voto dos analfabetos, é o voto dos alienados. Muito pior que o voto dos alienados políticos, é a conduta de "homens do saber" deste Brasil que, inobstante terem frequentado as "melhores universidades" do mundo, foram capazes de cometer os maiores erros estratégicos em relação à pátria brasileira - isso para não dizer que muitos desses doutores não cometeram erro nenhum, senão agiram de má-fé e com óbvios e claros interesses particulares na gestão da coisa pública.

O que me entristesse, em relação a algumas camadas sociais brasileiras, é que existem "alguns" que "pensam" que o caminho mais eficaz para acabar com a pobreza é distanciar o pobre da vida estatal. O País pertence ao povo: aos favelados, aos que moram em casas de palafitas, aos que estão abandonados no campo. Este País é deles! E, docilmente, continuam suas vidas, massacrados, com jornadas de trabalho de mais de 15 horas por dia (porque saem de casa às 4:30h da manhã, para só retornarem às 20h da noite), morando em lugares insalubres, fétidos, sujos, habitados por animais e insetos que trazem doenças, morando no meio da lama e do esgoto que eles mesmos produzem. Não tem acesso ao saneamento, nem à água própria para o consumo. Não tem acesso à saúde pública (que existe, mas é precária e ineficiente), nem ao lazer ou desporto (a não ser nos "campinhos" espalhados nas grandes cidades, que nada mais são do que propriedades privadas a serviço da especulação imobiliária invadidas pela diversão popular). Não tem acesso, pois, ao Estado: à justiça, à riqueza, aos serviços públicos essenciais. E vão perder o seu direito mais importante? O direito ao voto? O qual injustos ainda podemos ser com estes milhões de brasileiros? Estes tais analfabetos não podem ser excluídos do pleito eleitoral. Aqueles que se sentem indignados com a escolha popular que se dignem a descer de seus tronos absolutistas e que vão à favela, ao campo, ao sertão "ensinar o povo a votar"!

Sugestão: leitura do artigo do professor catedrático da Universidade de Heidelberg, Friederich Müller, "Democracia e República". É preciso um alemão vir ao Brasil para ensinar-nos a nos comportar democraticamente? Talvez sim, para demonstrar que o Direito se faz através da luta, nunca através da concessão do "governante bondoso". Qualquer intenção legislativa em limitar o acesso do povo ao sufrágio deve ser duramente combatida, sob pena de retornarmos ao império do voto censitário.