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sábado, 21 de outubro de 2023

Karl Marx: por que ele está morto e não podemos enterrá-lo?

 A obra de Karl Marx, que percorre mais de quatro décadas, reflete não apenas a evolução do pensamento de um indivíduo, mas também o amadurecimento de uma concepção do mundo em sua análise do capitalismo. A diferenciação entre o "Marx Jovem" e o "Marx Velho" não é meramente cronológica, mas aponta para uma transição na profundidade, na complexidade e na acuidade de suas análises.

O Marx Jovem, especialmente nas obras dos anos 1840, tem uma abordagem mais filosófica e humanista. Ele é frequentemente associado à ideia da alienação do homem em relação ao seu próprio trabalho e à busca por uma sociedade mais justa e equitativa. No entanto, embora seus escritos dessa época sejam cruciais para entender as raízes de seu pensamento, é no Marx Velho que encontramos uma análise sistemática e detalhada do capitalismo.

O "Das Kapital", escrito pelo Marx Velho, é tido como sua obra-prima e é aqui que ele disseca o funcionamento do capitalismo com uma precisão quase científica. Sua análise sobre a mais-valia, a acumulação de capital e o processo de reprodução do capitalismo é profunda e complexa. Em vez de apenas identificar os problemas inerentes ao sistema, como faz no início de sua carreira, Marx descreve meticulosamente como eles operam e se perpetuam.

Além disso, a obra do Marx Velho tem uma relevância especial para a compreensão do capitalismo de seu tempo por três razões principais:

Entendimento da Dinâmica do Capital: Através de sua abordagem da mais-valia, Marx demonstra como a exploração é inerente ao sistema capitalista. Ao entender essa dinâmica, é possível identificar as contradições e vulnerabilidades do sistema, permitindo a previsão de crises e a formulação de alternativas.

Identificação da Concentração de Capital: Marx aponta para a tendência inerente ao capitalismo de concentração de riqueza e poder nas mãos de poucos. Esta observação é especialmente relevante hoje, quando observamos desigualdades extremas em muitas sociedades ao redor do mundo.

Reconhecimento das Contradições Internas: A obra madura de Marx descreve as contradições inerentes ao capitalismo, que levam a crises periódicas. Estas crises, conforme analisadas por Marx, não são anomalias, mas sim características do sistema.

Para a percepção do capitalismo contemporâneo, abordar o Marx Velho é essencial para entender a natureza intrínseca do sistema. Seu olhar penetrante sobre o funcionamento do capitalismo oferece lições valiosas, não apenas para críticos do sistema, mas também para aqueles que buscam compreendê-lo profundamente e, talvez, reformá-lo.

Portanto, a literatura original de Karl Marx, especialmente a de sua fase madura, oferece uma análise perspicaz e detalhada do capitalismo. A profundidade de seu pensamento e a relevância de suas observações fazem com que, mesmo após sua morte, a obra de Marx continue a ser uma ferramenta essencial para a compreensão do mundo em que vivemos.

terça-feira, 9 de dezembro de 2014

O Político e o Professor

Desde as eleições recentes (outubro de 2014), as redes sociais têm sido espaço para a verborreia do ódio e do descontrole, intercalado apenas pelo bom senso de poucos, que tentam contemporizar e trazer à tona a racionalidade e a cidadania, necessários ao desenvolvimento pleno da Democracia brasileira. Porém, a Internet tem sido apenas o palco, onde os personagens multiplicadores desses sentimentos vis e antidemocráticos funcionam como fantoches de forças e grupos com intensões bem claras, e objetivos políticos concretos.
Para compreender o "estado da Nação", é preciso que se reconheça que os ânimos se acirraram, principalmente após a vitória apertada da atual Presidente da República - legitimamente eleita mediante pleito eleitoral, por escrutínio secreto e universal. Depois de encerradas as eleições, ao contrário do que se poderia imaginar - com a reorganização das forças políticas em torno de questões relevantes e urgentes para o País -, alguns setores da oposição têm utilizado das funções do Estado brasileiro para clamar por impeachment - sem que tenha havido, até o momento, a abertura de qualquer procedimento inquisitivo nos moldes do devido processo legal - e golpe militar - sem que se precise dizer que, além de estarem obrigados a respeitar o Estado Democrático de Direito (art. 142 da Constituição Federal), como grupo de cidadãos, os representantes dos altos escalões das Forças Armadas já firmaram posição de respeito à Democracia, em que pese à dissidência interna (e velada) sobre o tema...


No Congresso Nacional, outro espetáculo: a personificação do ódio e da intolerância nas atitudes reiteradas do deputado federal Jair Bolsonaro, revela o ganho político que os comportamentos das redes sociais fomentam e reproduzem. Tal parlamentar clama, aos quatro ventos, os maiores impropérios contra todos aqueles que colocam em dúvida ou entram em desacordo ao seu "sistema de crenças", chegando a expor (abertamente) comportamento misógino, fundado numa percepção completamente equivocada do que venha a ser um parlamento; em vários episódios como esse, toda manifestação de pensamento contrária desperta, incontinenti, ataques verbais ultrajantes

Além disso, esses mesmos setores descontentes e seus locutores utilizam-se de adjetivações e imputações criminais ao Executivo da União e até a classificar todos os eleitores do Partido dos Trabalhadores de "criminosos" - caso protagonizado pelo candidato derrotado Aécio Neves -, como se opção política fosse motivo para se imputar conduta delituosa a qualquer eleitor. A escolha democrática tem que ser respeitada, quer seja fundada em interesses materiais conquistados por meio de políticas públicas assistencialistas, quer na ideologia do eleitor (sim, a velha ideologia de esquerda...), quer em qualquer outro motivo emocional, partidário, ou psíquico, ou, ainda, até decorrente da boa ou má formação política e educacional do cidadão.

Na linha das conhecidas argumentações defendidas pelos mais exaltados, segue a retórica da "população apavorada", no esteio da noção (equivocada e imprecisa) de que o atual ordenamento jurídico é o instrumento de excelência para a disseminação do crime e da desordem. Frases soltas, do tipo "Os direitos humanos só protegem bandidos" têm sido veiculadas abertamente, diante de uma população que, desta feita, por ignorância, desconhece a amplitude conceitual do tema dos Direitos Humanos - que albergam normas protetoras dos direitos políticos do cidadão, civis e políticos das crianças, da maternidade, dos idosos, dos trabalhadores (...) e, sim, dos investigados em inquéritos policiais e acusados em processos penais. Diante da inapetência do Estado em cumprir as normas constitucionais que contém as chamadas "sanções promotoras" (conforme classificação do autor italiano Norberto Bobbio, chamado a explicar sobre os fundamentos do Estado de Bem-Estar Social), vulgariza-se essa abordagem a respeito da proteção estabelecida por normas de direito interno e internacional que incidem sobre os direitos e garantias fundamentais da pessoa humana.

Na contraposição a essas pontuações, está a brilhante defesa do Direito, da Ética e das instituições sociais organizada de forma bastante informal e didática pelo Prof. Haroldo Guimarães, mestre em Direito Constitucional pela Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará. De uma maneira muito gentil e descontraída, os ensinamentos do Professor são claros: para a boa convivência social, é necessário um diálogo aberto, amistoso e racional, com o fito de preservação da malha social. Somente através do conhecimento (não só proporcionado pela Educação formal ou acadêmica) é que se torna possível uma verdadeira emancipação social, vez que tanto na política, quanto nas mais simples relações humanas vigoram as mais intrincadas e sutis emanações de Poder.

Ainda, a História revela que a personificação e o direcionamento do ódio para grupos sociais específicossempre resultou em atos de barbárie e que, para alcançar esse resultado, os grupos que os disseminavam se utilizaram de argumentos acríticos semelhantes aos expostos pelos defensores do ódio em Terra Brasilis. Vale ressaltar que o discurso de ódio sempre irrompe em momentos de crises (institucionais e econômicas), proporcionando Poder a seus propagandistas. 

Valendo lembrar que, em tônica muito resumida, aderir a esta ou aquela bandeira partidária e ideológica é um dos fundamentos da República; os ataques aos assim rotulados "comunistas", "marxistas", "bolivarianistas", "socialistas" e "gayzistas" (sic) têm se mostrado prática absolutamente intolerante e em descompasso ao pluralismo político consubstanciado no art. 1º, inciso V da Constituição Federal. Em outras palavras: ao invés de se construir uma oposição racional às ideologias e percepções de mundo contrárias aos seus interesses, esses grupos que discursam o ódio optam pela lógica do silenciamento e da censura, por meio da violência, numa sociedade na qual o espetáculo da brutalidade ganha cada vez mais adeptos. Ressalta-se: não é uma violência presumida da qual se fala, mas de uma que se apresenta na forma de violência física, psicológica e político-social, e sobre a qual somente o esclarecimento pode verter alguma luz - num explícito apelo ao modelo mais simples de Estado de Direito, fundado na razão.  

Portanto, mesmo que essa parcela "politicamente agressiva" da população seja inexpressiva, deve-se duvidar que o discurso que reverbera nas redes sociais não possa encontrar "ouvidos carentes" e, diante dessa orfandade acrítica, multiplicar-se. Silenciar diante desses atos significa: (i) tornar esses atores políticos os únicos e legítimos proprietários das soluções sociais, e (ii) conferir-lhes a atribuição exclusiva de identificar quais as verdadeiras causas da - e os (convenientemente) culpados pela - desorganização das instituições públicas e dos poderes constitucionais. Esse silêncio é, acima de tudo, um ato de omissão política inaceitável. 

***
Em homenagem ao Prof. José Haroldo Guimarães Filho.

sexta-feira, 31 de agosto de 2012

Novas considerações sobre o STF e a crise institucional brasileira

Há poucos anos, o Procurador do Trabalho Francisco Gérson Marques de Lima, meu professor na Universidade Federal do Ceará, coordenador e amigo, lançou o livro "O Supremo Tribunal Federal na crise institucional brasileira". É uma obra de Sociologia Constitucional ímpar, lançando tema inédito na produção jurídica nacional, merecendo as melhores críticas e resenhas nacionais e internacionais. É a partir de sua leitura que escrevo as linhas infra, rendendo meus melhores cumprimentos ao dileto mestre alencarino.



Estamos assistindo ao julgamento de diversos escândalos, que têm (escândalos e julgamentos) abalado as estruturas institucionais brasileiras. Esse abalo consiste numa reverberação interna, relativamente à superestrutura que se estabeleceu a partir do governo de Fernando Henrique Cardoso (que chamaremos de fernandismo) e que foi continuado pelos governos de Luís Inácio Lula da Silva e de Dilma Rousself (que chamaremos de lulismo, tendo em vista que a atual Presidente da República não teve tempo de se afirmar como líder de uma política própria). Essa estrutura é promotora de uma profunda reorganização da máquina administrativa, que vai da alteração de regras de pensão à propostas de fim de estabilidade do funcionalismo público, por meio de argumentos classificados como neoliberais -- representando, na realidade, uma privatização do Direito e da Administração públicos. A justificativa para essas mudanças seriam (i) a necessidade de adequar o funcionamento do Estado ao século XXI e (ii) reduzir custos econômicos (neles considerados encargos sociais).

O que ocorre é que a República e suas instituições têm funcionamento complexo, ambivalente e ambíguo, refletindo uma diversidade de laços intersubjetivos que não são assim tão facilmente desfeitos e refeitos. Senão, vejamos o caso do julgamento do mensalão, utilizando o voto do ministro Toffoli, mas analisando o seu perfil como jurista.

Antes de tudo, convém esclarecer aos incipientes estudantes de Direito e ao público leigo que os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) são nomeados pelo Presidente da República, depois de aprovados pela maioria absoluta dos senadores - conforme regra exposta no art. 101, parágrafo único, da Constituição Federal de 1988 (CF88). Como se vê, a escolha de um ministro do STF é política; esses juristas, homens e mulheres, embora não sejam eleitos, também não ocupam o cargo mais alto do Poder Judiciário brasileiro por mérito de concurso público. É exigido apenas que tenham notório saber político.

O ministro José Antônio Dias Toffoli, nascido em 1967 (hoje, com 45 anos) é exatamente isso: um jovem jurista, não habituado com os esquemas de Poder inerentes à atividade que exerce. Está sendo escrachado publicamente porque, no seu parecer, foi lacônico e considerado por muitos como impreciso/incompleto, ou desapropriado para um cargo tão importante. Bem, esse jovem foi escolhido no mandato do então Presidente Lula, e era uma aposta para a renovação Pretório Excelso brasileiro, para ser um dos guardiães da Constituição.

Entretanto, não podemos ser ingênuos e pensar que o STF realiza apenas julgamentos "jurídicos propriamente ditos. A Corte tem uma função política, e ela concentra-se principalmente na execução da teoria dos freios e contra-pesos - uma forma de fiscalização e exame recíprocos dos atos praticados entre as funções executiva, legislativa e judiciária, que foi incorporada historicamente e é uma de nossas tradições constitucionais mais importantes.

Ocorre que, não me parece estranho o ato do Sr. Toffoli, em defender aqueles que o escolheram para ocupar um cargo que é (nada mais nada menos) político. Talvez, o que esperássemos, como observadores dessa novela, seria um empenho do jurista que, na posição de magistrado da mais alta Corte, tivesse zelo no preparo de sua argumentação.

O que é importante aqui salientar é que o STF, na condição de Instituição estatal/social, é um dos órgãos que está inserido numa crise sistêmica. Isso significa que não podemos imaginá-los (os ministros, quer dizer, as pessoas que ali desempenham suas funções jurisdicionais) como pessoas isentas de uma co-participação política na atual crise. 

Inclusive, gostaria de lembrar ao leitor incauto que crise pode também significar vitalidade, na medida em que os atores nela envolvidos podem apresentar alternativas (modificando o atual modelo) e soluções (pequenos ajustes no modelo) que deem continuidade à vida de qualquer das instituições envolvidas nos esquemas de favorecimento financeiro em escrutínio e investigação, atualmente. Porém, é imperioso reconhecer que existem diversas forças sociais a acompanhar o deslinde desses atuais julgamentos. E alguns setores bem específicos, quer sócio-políticos, quer institucionais, ainda detém poder de fato suficiente para abalar as estruturas da atual Democracia.

Portanto, seria bastante útil à manutenção da Democracia que o STF realizasse um julgamento "jurídico propriamente dito" e condenasse às sanções penais, administrativas e civis, todos aqueles que comprovadamente participaram, direta e indiretamente, nos esquemas de desvio de verbas e cooptação política (lobby). Isso colocaria em risco à governabilidade, mas qualquer um(a) pode ser Presidente, mas nem todo governo é necessariamente Democrata.

quarta-feira, 18 de julho de 2012

Vivemos num mundo normatizado

A primeira lição que um jovem estudante de Direito deve entender, quando ingressa no curso, é aquela que nos explica estarmos todos inseridos num mundo de normas. A normatividade exerce a primorosa função de conter os ímpetos, os instintos e os desejos da Sociedade, simplesmente porque pressupõe uma organização prévia à inserção do indivíduo na teia. A causalidade, quer dizer, a simples busca pela origem desse padrão pode ser alcançada através da compreensão do papel das famílias, pois esse parece ser o berço de onde surgiu a padronização de condutas e comportamentos.


De fato, a normatividade nada mais é do que a interferência de um comando na conduta do indivíduo, ou uma orientação que gera uma expectativa sobre qual a melhor maneira de organizar um convívio entre duas ou mais pessoas. Na realidade, essa dupla característica da normatividade - prescrição / descrição -- inicia-se em processos tão elementares como indispensáveis à estabilidade da associação entre pessoas; a linguagem, por exemplo, representa um corpo normativo espetacular, e, talvez, primordial, a gerenciar a interação social -- é a mais elementar das trocas humanas, na qual a estrutura básica emissor-receptor necessita de uma padronização para que a mensagem seja entendida e o resultado seja uma comunicação de sucesso entre dois cérebros. A fala, portanto, é o primeiro elo dessa cadeia normativa tão complexa na qual estamos inseridos.

Mas existe uma cadeia normativa muito mais complexa, que perpassa das mais simples normas de organização familiar, ultrapassando as normas de organização educacional, num processo que adquire complexidade crescente. Esse processo normativo, fruto de uma cultura humana qualquer, inclui a formação de normas técnicas, de organização econômica, religiosas e jurídicas. Há nesse escalonamento um aumento no grau de complexidade, porque do empírico até o moral, os critérios de justificação das normas passam a depender da adesão dos indivíduos à observância do preceito contido na norma que orienta a ação. Ainda, os centros produtores dessas normas podem ser flexíveis, pouco flexíveis, ou rígidos, conforme se trate de uma adesão espontânea ditada pela necessidade, pela utilidade, pela fé, ou pelo consenso.

Diante da exposição efetuada no parágrafo anterior, podemos ver que foi seguido um escalonamento que não incluiu a força como um dos elementos subjacentes ao cumprimento das normas. Por que? Simplesmente porque a força não é um critério inerente à normatividade, mas um pressuposto anterior ao surgimento da norma. Talvez seja essa uma das maiores confusões dos teóricos, ao longo dos séculos que, tentando explicar o fenômeno normativo, incluíram na estrutura normativa as ideias de coerção e coação. 

A coerção, aqui entendida como o temor que leva o indivíduo a cumprir o conteúdo da norma -- quer seja ele prescritivo, quer seja descritivo --, nada mais é do que uma reação do indivíduo ao objeto-norma; reação individual que pode não chegar a se constituir diante da norma, haja vista que ela poderá ser recepcionada por completo, sem gerar no ser o medo necessário ao cumprimento do que foi pré-estabelecido, como é o caso da aceitação oriunda da confiança. Assim, a coerção pode ou não existir, e o que não está presente, mas antes é apenas uma possibilidade, não é concreto e não pode ser algo constituinte do real.

A coação, que seria a utilização ou da força física, ou da psíquica, ou de ambas, também não integra a ideia de norma, pois é uma condicionante externa da convivência social: é um dado natural, também exógeno ao conceito de norma. Na realidade, a norma existe para que o ser humano não se utilize da força para exigir um determinado tipo de conduta -- mas isso também não impede que a norma contenha uma autorização para o seu emprego, tanto que se tem, no Direito, o cumprimento forçado da sanção, como forma de demonstrar a obrigatoriedade da norma àqueles que simplesmente não aderiram espontaneamente ao seu cumprimento, fazendo-se valer o conteúdo normativo por meio da violência institucionalizada.

Portanto, o entendimento aqui exposto é o de que vivemos num mundo normatizado para que não nos utilizemos da violência para garantir qualquer ordem ou organização social. Deve-se pensar na norma como um instrumento, uma ferramenta à disposição dos processos de interação social. Porém, se as normas são utilizadas com o objetivo de garantir a opressão de uns sobre os outros -- que é o que tem sido feito desde sempre --, aí não se trata de uma questão relacionada à estrutura das normas, mas diretamente ligado ao uso que os seres humanos fazem dos objetos e coisas que cria.

terça-feira, 3 de janeiro de 2012

Ceará entregue ao crime e governo continua silente

O Estado do Ceará está entregue aos criminosos, devido a uma paralisação dos policiais militares - responsáveis pelo policiamento ostensivo, desde o dia 1º de Janeiro de 2012. Na realidade, como os militares não podem fazer greve, trata-se de motim, caso de insubordinação que pode culminar com a dispensa desonrosa dos amotinados. Além disso, o comportamento criminoso daqueles policiais militares que cobriram os rostos com capuz deveria ter sido rechaçado energicamente pelo Secretário de Segurança Pública - se não fosse o mais absoluto silêncio (descaso!) das autoridades governamentais cearenses.


Os policiais amotinados requerem 80% de reposição salarial e redução da carga de trabalho - reivindicações essas não atendidas pelo governo do Estado. Ora, causa espanto que esses agentes públicos estejam a requerer aumento a um governo que, meses atrás negou-se a atender semelhante demanda de professores da rede pública de ensino. Inclusive, ressalta-se que a Polícia Militar foi utilizada para reprimir (com um desfecho violento!) a greve dos professores. Ao que parece, essas reivindicações não serão consideradas legítimas pela população...

Porém, o que soa muito perigoso é o líder do motim dirigir-se ao comandante da 10ª Região Militar e desafiá-lo para uma "guerra" diante das câmeras de televisão. Além de ser uma tremenda estupidez (em duplo sentido: falta de bom senso e de bons princípios), tal atitude demonstra um sentimento de superioridade que somente a mais profunda arrogância poderia despertar. Em que pese o governo do Estado do Ceará, na figura de seu atual gestor - Cid Gomes - ter transformado alguns dos membros da corporação em autênticos criminosos (pelo uso desmedido e arbitrário da força contra os servidores civis do Estado), esses servidores militares adquiriram o sentimento de impunidade e a falsa noção de que não há legalidade neste País.

Observadas as regras democraticamente insculpidas na Constituição Federal, e na larga legislação infraconstitucional, percebe-se que essa (policiamento) é uma das funções estatais que não está albergada pelo direito de greve. Inclusive, já foi prolatada uma decisão judicial que considerou essa "greve" como ilegal - quer dizer, não podendo ser um ato qualificado como greve, não seria nada mais que um ato de ilegalidade. Ademais porque houve destruição do patrimônio público, ocupação ilegal de prédio militar e, evidentemente, insubordinação.

Entretanto, esses atos têm como supedâneo a mais completa irresponsabilidade e incompetência administrativas da atual gestão. É óbvio que a responsabilidade última é do governador Cid Gomes (que, ironicamente, encontra-se em visita à União Européia), que já deveria ter exonerado o atual Secretário de Segurança Pública (cujo nome não pode ser revelado aqui neste post por preguiça do autor em se dar ao trabalho de conhecer sequer a alcunha que já recebeu da população de Fortaleza - município mais afetado pela onda de violência). 

A solução para este caos deveria ter sido tomada imediatamente após a constatação de policiais encapuzados tomando de assalto o prédio da Polícia Militar do Estado. Enquanto existem mulheres e homens de família trabalhando nesta respeitável e ilibada Coorporação, que requerem e têm TODO O DIREITO a um aumento de remuneração e de melhoria das suas condições de trabalho, tem-se criminosos fantasiados de policiais. O Secretário de Segurança deveria ter prendido os "encapuzados" e ter-se declarado preso (esse é um procedimento militar), exigindo do governador o aumento do soldo de seus comandados. Teria conseguido, pelo menos, apoio moral das tropas. Mas, ao que parece, arriscar R$ 20 mil (vinte mil reais) de gratificação não é coisa para qualquer homem...

Exigir melhoria de remuneração e de condições de trabalho é direito de todo trabalhador. Em sua grande maioria, para não dizer na quase totalidade dos casos, a paralisação das funções é o último recurso dos trabalhadores. E ela ocorre quando o gestor se recusa a dialogar, é autoritário e/ou ausente - quem será que tem esse perfil? 

Por fim, seria necessário lembrar às autoridades públicas que a sociedade brasileira está desarmada. Quer dizer, hoje, no Brasil, apenas os bandidos e a polícia (???) possuem meios para a concretização da violência. A população abdicou do seu direito de autotutela (defesa dos próprios interesses) e encontra-se duplamente refém: do Estado e do crime. O Homem de bem está desarmado, e entregue.

***

O Ceará não é Sobral, senhor governador. É muito maior! Apareça por aqui, pois defender a segurança é uma competência constitucional do Governo do Estado. O clima europeu nesta época do ano, inclusive, não é muito propício para o turismo. Venha, pois já estamos todos com muitas saudades...

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

HOBBES E ROUSSEAU - Brevíssimas considerações


HOBBES E ROUSSEAU – Brevíssimas considerações sobre suas participações na formação do Jusnaturalismo moderno.

O pensamento Iluminista moderno trouxe a razão emancipatória (BITTAR, 2010: 9) como uma possibilidade de libertação do indivíduo das amarras da ignorância. Através da razão, esse Novo Homem seria capaz de estabelecer regras de convivência aptas a contornar os desafios da convivência social. Por isso, convém prestar um pequeno tributo a estes dois estandartes dessa nova forma de pensar: Hobbes e Rousseau.

Essa nova linha de pensamento contrapunha-se ao antigo regime, descortinando uma nova filosofia político-social antropocêntrica. deslocando o eixo de Poder Social da Igreja para a Sociedade Civil. Nesse espectro de análise, Hobbes e Rousseau compartilham o mesmo pensamento acerca da natureza a-social ou "individualista" do Homem (DINIZ, 2006: 40). Na formação do pensamento moderno europeu, ambos apoiaram a tese de que o ser humano tinha um instinto natural qualquer que o impedia de viver em harmonia a vida em Sociedade, buscando em suas teorias contratualistas os fundamentos para a estabilidade social fundada nessa nova razão.

Thomas Hobbes presumia um estado natural no qual o Homem estava desprovido das noções de propriedade privada, na qual "a luta de todos contra todos" tinha como sinônimos a auto-conservação e sobrevivência. Num de seus livros, "Do Cidadão", Hobbes chega a exemplificar certas práticas sociais através do utilitarismo; quer na troca comercial, onde existe o egoísmo de cada um com o seu próprio negócio, quer na diversão, onde o indivíduo reafirma seus valores através da identificação do ridículo nos outros (HOBBES, 2005: 19), Hobbes tem uma perspectiva sombria da relação intersubjetiva. Nessa mesma obra, traça uma série de diretivas para a justificação de um contrato social, responsável pelo estabelecimento de regras jurídicas claras, que fossem aptas a concretizar a paz entre cidadãos de qualquer Sociedade. E é no "Leviatã" que ele constrói a sua teoria de um Estado forte, monstruoso, que submete a vontade de todos à do corpo social, devorando todos aqueles que contra ele se opõem.

Por sua vez, Jean-Jacques Rousseau imagina um estado natural do Homem no qual cada indivíduo luta pela auto-conservação, sendo o homem insocial por natureza (DINIZ, 2006, 40). Embora o iminente autor francês seja conhecido pela sua teoria de solidariedade social, que ensejaria o ressurgimento da Democracia representativa no solo europeu, ele pensa o ser humano num estado "primitivo e pré-reflexivo, anterior a qualquer sociedade ou cultura", do qual emerge um contrato social hipotético, que tente preservar a liberdade e a igualdade humanas. Isso porque a liberdade e a igualdade originárias teriam sido destruídas no início da vida social, pela existência da propriedade privada - que tornaria os homens desiguais; é daí que afirma que o Homem é bom por natureza, mas a Sociedade o corrompe. Essa sua ideia faz parte da obra "Discurso sobre a origem da desigualdade entre os homens". Rousseau identifica uma desigualdade natural, decorrente da completude física ou da disposição moral de cada um (ele fala em "qualidades do espírito, ou da alma"), e um outro tipo de diferença, estabelecida em função de uma convenção entre os homens, a que chama "desigualdade moral ou política" (ROUSSEAU, 2005: 21). De forma parecida com Hobbes, é em outra obra, "Do contrato social", que Rousseau traça as formas de controle social através de leis civis, que submetem a vontade individual à coletiva, soberana, nesse caso, sob a tutela do Estado.

Dessa forma, os dois autores dividem uma opinião acerca da natureza individualista do Homem. Essa "natureza" precisa ser controlada, dominada, e a ferramenta apropriada para tal missão não é outra, senão o próprio Direito. Assim, pela via contratualista, é domada a inaptidão para a vida em Sociedade. Esse "Contrato social" é obra da razão humana, iluminada pelo saber, pela técnica e epistéme, num esboço do que viria a ser a formação de uma ciência social ou política.


BIBLIOGRAFIA

BITTAR, Eduardo. "Curso de Filosofia do Direito". 8ª ed. São Paulo: Atlas, 2010.

DINIZ, Maria Helena. "Compêndio de Introdução à Ciência do Direito". 18ª ed. São Paulo: Saraiva, 2006.

HOBBES, Thomas. "Do cidadão". São Paulo: Martin Claret, 2005.

ROUSSEAU, Jean-Jacques. "Discurso sobre a origem da desigualdade entre os homens". São Paulo: Martin Claret, 2005.

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Crime organizado e Estado polícia

Não é de hoje que o cidadão comum percebe que o crime organizado domina diversos setores da Sociedade brasileira. Os criminosos, membros de quadrilhas altamente especializadas em crimes de vário gênero, podem ser agentes políticos e funcionários públicos, integrantes das Forças Armadas ou membros da sociedade civil, profissionais liberais ou proprietários de grandes empresas.

O que favorece essa imersão do crime profissionalizado na vida social? A resposta é complexa, pois, embora esteja contida nas simples palavras corrupção, omissão e descaso, ela esconde a participação ativa e bem gerenciada de membros do Legislativo, chefes e secretários do Executivo e integrantes do Poder Judiciário - todos "trabalhando" no sentido de promover a "farra" com a coisa pública.


Contrapondo-se a essa lógica, encontra-se a Sociedade civil aterrorizada. Insegura e entregue ao medo, ela está pronta a ceder sua liberdade em nome da repressão às entidades criminosas, através do uso da violência institucionalizada do Estado. É a repetição de um ciclo histórico brasileiro, de alternância de extremos (repressão e libertinagem), que demonstra a inaptidão tupiniquim em copiar os modelos de organização política europeus - quer por questões culturais, quer pelo que diabo quer que seja.

Nesse sentido apontam as promessas eleitoreiras das eleições legislativas federal e estaduais de 2010: um sem-número de candidatos apontando no sentido de um Estado polícia oblíquamente intolerante, que toma o resultado (violência) pelas causas (pobreza), apostando na violência para conter a violência -- a última que ouvi foi a seguinte: "(...) vote em mim, porque do pescoço para baixo é 'canela' (...)".

Entretanto, convém esclarecer o seguinte: a segurança prometida por esse Estado polícia, em (re)construção no Brasil, não solucionará o problema do crime organizado, senão se concentrará apenas naquele tipo de crime que satisfaz à pequena parcela da Sociedade preocupada com as normas jurídicas típicas do Título I da Parte Especial do Código Penal - "Dos crimes contra a pessoa" (homicídio, furto, roubo etc).

Isso porque os delitos do crime organizado são praticados com o apoio indireto das próprias instituições estatais. Só essas organizações criminosas são capazes de utilizar tanto a infraestrutura, quanto a superestrutura estatais de forma eficaz e perene, garantindo a continuidade de suas atividades; elas são as únicas capazes de dispor de recursos financeiros suficientes para suprir os diferentes tipos de "custos de manutenção" de que o crime depende: subornos e propinas, contratação de boas firmas de advogados, assassinato de testemunhas, destruição de provas e evidências e etc.

Portanto, o crime organizado e o Estado polícia são composições simbióticas, uma dependendo da outra para conter o "crime de colarinho azul" -- praticado pelo "ladrão de galinhas", do qual falava Rui Barbosa. Esta simbiose oprime o crime não-profissional e assegura a manutenção do terror das pacatas famílias brasileiras, temerosas por seus bens e vida. Esta relação entre crime e poder social funcionará como mecanismo de manutenção da apatia política e da cidadania inerte.

terça-feira, 16 de outubro de 2007

Falcão para Caveira, câmbio...

Este mês, tive a oportunidade de assistir dois filmes; na verdade, um filme e um documentário, ambos sobre a violência nas favelas do Rio de Janeiro. O primeiro foi "Tropa de Elite" e o segundo "Falcão - meninos do tráfico". Depois de refletir um bocado, resolvi escrever algumas (pouco elucidativas) linhas sobre uma realidade que a maioria dos brasileiros vive nas grandes cidades brasileiras: a guerra urbana.
  • O filme
"Tropa de Elite" conta a história de alguns oficiais do Batalhão de Operações Especiais, no Rio de Janeiro; de uma forma bem hollywoodeana, a película fala sobre o treinamento, valores, cotidiano e dificuldades enfrentadas pelos policiais militares cariocas em sua jornada de trabalho - combatendo o tráfico de armas e drogas nas favelas do Rio de Janeiro; faz referência aos meses imediatamente anteriores à visita do Papa João Paulo II ao Rio, em 1997. Diga-se, de passagem, que não se está a falar de qualquer tipo de polícia; são homens com treinamento militar contra-guerrilha, com armamentos e técnicas de combate especiais.

  • O documentário
"Falcão - meninos do tráfico" retrata a vida de crianças e adolescentes que convivem com a realidade da favela; o uso de drogas, as armas, o convívio com a violência e o processo de internalização dessa violência em brincadeiras entre as crianças (produção e reprodução da violência no espaço cultural da favela), a ausência de uma estrutura social sadia - quer familiar, quer societal - e assim por diante. Por oportuno, o contexto social em que estão inseridos jovens e crianças (e toda a comunidade pobre da favela) carece das infra-estruturas que são ofertadas à minoria da população - o Estado (em sua forma "benevolente") praticamente inexiste naquele ambiente.
  • O ponto de contato
O que me chama a atenção, tanto num, quanto no outro, é o apelo ao lado humano dos personagens; embora no filme tenha-se a ligeira impressão de se estar diante d'uma história "à la Quentin Tarantino", é evidente que aqueles são fatos da vida real; no documentário, a vida como ela é, de tão cruel, levanta a suspeita sobre a veracidade dos fatos e de uma possível encenação. Nesse "balé" entre realidade e ficção, o espectador pode ser capturado por julgamentos de ordem moral e, assim ocorrendo, pode ser chamado a posicionar-se desta ou daquela forma, consoante a sua formação pessoal e sensibilidade.

De que lado ficar? Do obstinado policial - que tenta a todo custo cumprir a lei? Da criança/adolescente - o fora-da-lei, que resiste e insiste em sobreviver, custe o que custar? Bem. Aí está um julgamento de ordem moral. De um lado, a "lei e ordem" de uma sociedade capitalista que, bem ou mal, tenta realizar o seu projeto. Do outro, a criminalidade - ou o outro lado da moeda, que integra a lógica do sistema em questão (é o seu oposto).

Mas existe um ponto de contato entre as duas narrativas: a ausência de um Estado de Direito. Isso é tão notório quanto o é a ausência de qualquer estrutura democrática ou cidadã nas duas "firmas" (os falcões e os caveiras estão submetidos à hierarquia, esquema de violência e todo um conjunto de regras de comportamento - e moral - próprias). E, diga-se de passagem, encontram-se em status de guerra aberta. Esse é o cenário ou a imagem do Brasil que poucos querem ver ou pintar: um país despedaçado pela corrupção, crime organizado, máfia e todo tipo de conivência entre o dinheiro/Poder e uma pequena (ínfima) parcela da Sociedade.

Todo um conjunto de valores pode ser levantado para contrapor os interesses daquelas duas "facções"; todos querem garantir o projeto social do qual dependem; todos estão sujeitos e são prisioneiros de sua situação. Isso porque à classe social que integra aquele tipo de corporação militar tem limitadas escolhas quanto ao mercado de trabalho; num país de miseráveis, todo emprego "decente" é bem-vindo. Ao pobre favelado... quais as opções mesmo?

De uma maneira ou de outra, uma das frases mais inteligentes foi dita por uma criança (ainda poderíamos chamá-la assim?) no documentário: "Se acabar o tráfico, acaba a polícia... Os 'polícia' não ganha bastante... depende do arrego (suborno)". O que aquele ser humano ignora é que o seu maior inimigo não é "o polícia" (outra vítima do sistema); seu inimigo é a Sociedade brasileira: da forma como ela está estruturada, a existência de pessoas na condição em que o garoto se encontra é condição sine qua non para que se mantenha o status quo.

Todos os crimes ligados à opressão dos miseráveis brasileiros são conseqüências diretas da estrutura societal desenhada ao longo dos anos na República, para que a mobilidade social seja mínima e orientada aos "objetivos nacionais". É como parafrasear Michael Parenti: só existe riqueza porque existe pobreza; só existe riqueza extrema se a pobreza também for extrema. Isso me faz penar que, enquanto o Brasil estiver entre os países mais ricos do mundo (com as remessas absurdas de capital e/ou lucros para o exterior, por exemplo), a situação dessas pessoas vai continuar assim: desumana.

É chocante pensar que "trabalhar" possa significar "matar outra pessoa". Na "brincadeira" de polícia e ladrão, é exatamente isso o que significa. No final das contas, a única coisa que passa pela minha cabeça é o sinal de rádio entre a criança e o adulto:
- Falcão para Caveira. Não me mate por favor, "tou" fazendo o meu. Câmbio...
- Caveira para Falcão, estou cumprindo o meu dever. Câmbio e desligo.

sexta-feira, 3 de agosto de 2007

Nova modalidade competitiva no PAN do Rio

Satisfeitos com o sucesso da segurança pública nos Jogos Pan-Americanos 2007, no Rio de Janeiro, os tecnocratas cariocas começaram uma campanha para aumento do contingente militar e policial nas ruas da Cidade Maravilhosa. Pois bem, mais uma vez, esse tipo de iniciativa oblitera o que é real: a criminalidade é um fato social decorrente da pobreza e da exclusão social.

Para não ter que repetir toda a bibliografia sociológica de praxe, verto meu olhar em outra direção e vejo que não são apenas os sociólogos de esquerda que têm uma opinião sobre o assunto. Freud (1928;1962) já havia detectado o desequilíbrio nas relações humanas decorrente da má distribuição da riqueza. Em seu livro "The Future of an Illusion", ele comenta que o controle e a coerção não são atos com vista somente a controlar os instintos humanos destrutivos, mas formas de garantir (assegurar) uma determinada forma de distribuição (desigual) de riquezas. O problema do Rio não é a criminalidade (conseqüência), mas a pobreza (causa).

Os cariocas vêem-se confrontados com uma realidade dual. Têm que combater a violência com mais violência. A reportagem na SIC (Portugal) sobre a opinião dos cidadãos fluminenses mostrou uma população aliviada com a presença das forças armadas dentro do Município. Bem, é curioso perceber que alguém se sinta aliviado por estar inserido numa guerra urbana. De um lado, aceitar o aumento de policiais militares é livrar-se (paliativamente e momentaneamente) da criminalidade. Mas isso não põe fim ao conflito, apenas faz com que ele se delineie nos contornos de uma guerra civil - e ninguém parece enxergar isso! De outro lado, a população ignora o fato de que as forças armadas, devido ao seu treinamento tático, não tem a menor competência para lidar com civis - e me furto de comentar isso, porque o óbvio cansa. Fico apenas imaginando um Rio de Janeiro ocupado e as classes populares sendo tratadas com a cordialidade das armas.

Como gerir o comportamento das tropas do exército nas favelas? Estaria criado um novo desporto: "tiro ao favelado"? É lastimável perceber que os munícipes daquela cidade encontram-se reféns de uma lógica cruel: ou aceitam passivamente o aumento da força e coerção ou se submetem ao poder do crime organizado. É uma situação muito confusa, mas suas origens podem ser farejadas na distância que separa a favela e o asfalto, o perfume dos condomínios de luxo e o esgoto a céu aberto dos assentamentos dos morros.

É um problema econômico-social que se converteu em caso de polícia (e de guerra!), em mais um capítulo da novela brasileira. Isso me faz pensar: que tipo de espetáculo é a competição esportiva, senão o de uma guerra não declarada?

sexta-feira, 27 de abril de 2007

Redução da maioridade penal no Brasil

Causa certo embaraço e muita tristeza saber que foi aprovada na Comissão de Constituição e Justiça brasileira o projeto de alteração da maioridade penal no Brasil. Embaraço porque o legislador brasileiro está tentando resolver o problema da criminalidade criando mais criminosos. Tristeza porque conhecer o perfil penitenciário brasileiro é saber que lá não é lugar para jovens.


Estou cansado de ler estudos e pesquisas que indicam as origens da criminalidade. O sistema penitenciário não diminui o crime nem ajuda a socorrer a sociedade dos delitos: ele é a última instância a que devemos recorrer, para os casos insanáveis e verdadeiramente hediondos e irrecuperáveis. O Direito Penal tem clientes bem definidos: são as pessoas que praticam atos que são repudiados pela maioria da sociedade. Contudo, o Direito Penal num país pobre, injusto, desigual e autoritário como o Brasil é uma arma apontada aos excluídos e marginalizados.

É essa linha de pensamento que sustenta a existência de medidas ressocializantes. Os jovens devem ser protegidos e estar sujeitos à reabilitação. Condenar um jovem ao sistema penitenciário é condená-lo à especialização na verdadeira e infalível escola do crime - administrada pelo Estado.

sexta-feira, 10 de novembro de 2006

O Poder do Estado e a Soberania no Século XXI

O Poder do Estado é uno e indivisível. Dentro dos limites territoriais do Estado, não reconhece nenhum outro superior ao seu. Na sociedade internacional de países, os Estados se reconhecem como iguais. Estas são as linhas mestras do ensino da disciplina de Teoria Geral do Estado.

Durante todo o século XX, estudantes de Direito tiveram por paradigmas as noções de soberania e poder estatal como instrumentos de controle e organização sociais, na gestão/organização/direção da coisa pública e da própria sociedade política. Sendo o Poder estatal uno, superior, indivisível e inalienável, doutrinas foram as que tentaram justificar a sua concentração nas mãos de uma minoria - mais apta à exercer o domínio social (soberania nacional) -, ou a divisão desse poder entre os homens e mulheres do povo (soberania popular). Daí, desta última, se organiza o sistema representativo da democracia semidireta que conhecemos no País, atualmente, que tanto traz dúvidas quanto à sua efetividade e quanto à praticidade/eficiência de seus instrumentos.

Sendo o Estado um substituto entre os cidadãos, agindo como mantenedor da sociedade de particulares, todas as vezes que esta não encontra as condições necessárias para se desenvolver sozinha, ou atuando na resolução dos conflitos sociais, o Estado age de forma a compor conflitos ou realizar as condições materiais necessárias à subsistência da sociedade. Assim, organiza suas funções: administrativa, judiciária, executiva. Cada uma delas se reveste de autoridade - e não de Poder. Explico. Primeiro, os órgãos que exercem estas funções estatais são ocupados por pessoas físicas. Segundo, essas pessoas estão lotadas e/ou investidas em cargos, como representantes do Estado - tendo em vista o fim do poder pessoal das pessoas que ocupam as funções públicas, que nos remete ao extinto Estado absolutista. Terceiro, esses funcionários e agentes públicos estão submetidos ao controle do ordenamento jurídico. E, por fim, sendo funcionários ou agentes, retirando a competência para executar suas atribuições funcionais diretamente da lei e estando submetidos ao princípio da legalidade, todas as vezes que praticam atos atentatórios ao Direito e nocivos à sociedade, podem ser submetidos ao controle jurisdicional de seus atos. O detentor do Poder é o povo, nos termos da Constituição Federal. Se os políticos eleitos não são os "donos do Poder", mas meros representantes, imagine um agente policial ou fiscal admnistrativo - classes que constumeiramente abusam da pequena esfera de autoridade que possuem. Quando essas pessoas praticam atos de violência ou estrapolam o exercício de sua atividade, estão cometendo ou abuso de autoridade, ou desvio de finalidade, e não abuso de Poder - porque Poder não têm, embora muito desejem-no.

Entretanto, mudanças nas relações econômico-sociais e tecnológicas trouxeram um novo modelo às relações sócio-jurídicas, tanto no que pertine à intersubjetividade dos cidadãos entre si, como entre os cidadãos e o Estado e, ainda, nas relações dos países no plano internacional. Entre os particulares, veja-se o fenômeno do poder de fato das organizações criminosas e do para-estatismo da organização social das favelas nas grandes capitais do Brasil, por exemplo. Se a teoria jurídico-política admitia aqueles valores iniciais, citados alhures, como elementares e direcionadores da atuação estatal, o cenário atual demonstra uma complexidade que exige do cientista político uma revisão profunda desses conceitos. Sabe-se que países com extrema força militar e econômica determinam o destino de milhares ou milhões de habitantes de outros países, vez que controlam-lhes a economia e/ou liberdade; cai por terra ou se torna puramente ideológica qualquer pretensão que alegue igualdade entre os Estados na comunidade de países ou que coloque a soberania popular como força predominante nas sociedades capitalistas contemporâneas - principalmente quando considerado o fenômeno das empresas multinacionais, que detém capital superior ao P.I.B. de centenas de países ao redor do mundo e que podem facilmente condenar toda a estabilidade social de um Estado subdesenvolvido.

De fato, muito se debate, atualmente, acerca de uma nova noção de soberania que seja capaz de explicar quais seriam seus fenômenos concretos - e não meramente ideais. Neste diapasão, as organizações internacionais de países e seus tribunais são ferramentas jurídico-políticas representativas dos interesses dos Estados que, cada vez mais, afirmam seu papel predominante na determinação dos rumos do governo dos países - que o digam o F.M.I. e o B.I.D., do lado privatista, e a O.N.U. ou U.E., do lado publicista. Seja como for, o Estado tem sua atuação soberana cada vez limitada por fatores de ordem jurídica e de contingência econômica, que retiram-lhe o Poder da forma como este foi concebido desde Hobbes e Rousseau até Norberto Bobbio. Hoje, muito mais do quê auto-determinação, existe uma crescente imposição de padrões mínimos e modelos sócio-econômicos globalizantes que demonstram uma tendência à harmonização de legislações entre os países e que insiste numa universalização de costumes e culturas.

Mas, uma coisa é certa: assim como não se pode "confundir alhos com bugalhos", nem "capitão de fragata com cafetão de gravata", o mínimo que um bom jurista pode fazer é inteligir acerca das teorias do passado (da soberania), para entender o atual estágio e o que vem pelo futuro (a globalização e a supranacionalidade). Senão, ficará atrelado aos "achismos" e "acreditismos" de fundamentação ideal-dogmática.

quarta-feira, 18 de outubro de 2006

A violência e a extrema-direita no Brasil

Os grupos de extrema-direita têm visto seu poder de convencimento crescer nos últimos tempos, devido à falta de políticas públicas suficientes no combate à violência. Em qualquer época da História é possível estudar os efeitos da violência na aceitação das regras sociais de tolerância, uma vez que o sentimento de desamparo da população revolta-se contra o "estado em que as coisas se encontram" e propõe uma revisão do contrato social. Nesse caminho, os setores mais influentes ou poderosos da sociedade aproveitam a oportunidade para lutar pelo poder e propor um novo modelo social, que seja capaz de afirmar uma hegemonia daquela classe dominante e torná-la "absoluta", ou melhor, invencível.

E o que ocorre no Brasil e no mundo? Bem, o sistema econômico predominante criou um gap social que desparou o gatilho do desespero em diversos setores e, por quê não dizer, em diversas sociedades pobres ao redor do planeta. Tendo a força de impor um retrocesso nas idéias de sustentação da produção material na sociedade pós-moderna, o Capitalismo atual reestabeleceu sua hegemonia e, afirmando-se como a única solução possível para o desenvolvimento da humanidade, trouxe de volta as regras da não-intervenção e do esvaziamento das políticas públicas, deixando as relações jurídico-econômicas dos particulares ao deus-dará e às regras do livre mercado.

Ora, bem conhecido é o fato de que os proprietários dos meios de produção poderem suportar melhor qualquer adversidade econômica, tendo em vista que possuem provisionamento suficiente para esperar pela reestruturação da economia; têm o capital e valores financeiros bastantes e, ainda, o apoio velado do sistema que trabalha em função da perpetuação desse regime. Os trabalhadores, entretanto, não possuem outra coisa senão a sua força de trabalho; seus braços estão aptos à produção e somente dela podem retirar sua riqueza; estando estagnada a produção, de nada valem suas mãos e intelecto, mas apenas esperar pelo reestabelecimento das condições de trabalho que são impostas pelo empregador. A relação juslaboral traz incipiente essa tensão e ligeira pré-disposição ao conflito de classes: o patrão precisa assegurar o lucro e o empregado precisa lutar pelo valor do salário.

Quando o Estado esvazia sua atuação neste setor em comento, o conflito eclode rapidamente, pois a massa de trabalhadores sente-se injustiçada e desamparada. Ainda, nesta linha de raciocínio, o aviltamento das economias dos países pobres tem sido a única forma capaz de efetuar uma correção na degradação econômica dos países ricos que optaram por esta postura econômica desastrosa: o neoliberalismo. Com isso, retorna à plena força a geopolítica de imperialismo econômico, forçando as economias mais fracas a aceitarem as regras impostas verticalmente; aumenta-se o fosso entre os países ricos e pobres e, aliado a isso, cresce o sentimento de injustiça e a intolerância entre os povos, sem olvidar-se o fato de que, internamente, os níveis de violência atingem índices assustadores; a pobreza e a falta de emprego têm ligação direta com o fenômeno acima descrito.

Neste contexto, os mesmos grupos ideológicos e econômicos responsáveis pela manutenção do status quo vislumbram a possibilidade de propagação de idéias extremistas, uma vez que as condições sociais são propícias à condenação deste ou daquele modo de vida, deste ou daquele posicionamento político, ou deste ou daquele grupo social. Que o digam lá os nazistas alemães do século passado, que encontraram no povo judeu a explicação para todas as mazelas econômicas daquele país, naquele período. E isso se repete e se propaga, hoje, à uma velocidade bastante superior: no Oriente Médio, na África, Ásia, Europa, Américas e Oceania. De todos os lados, vê-se o recrudecimento da intolerância e o desrespeito aos direitos humanos fundamentais, amparados pelo discurso extremista de partidos políticos e grupos de pressão que encontram o respaldo necessário para seu fortalecimento na situação de injustiça social na qual se encontra imersa a sociedade política. Quem perde com isso? Não são apenas os "perseguidos" que pagam caro por essa conduta oportunista; toda a sociedade acaba sofrendo os efeitos dessa instabilidade, uma vez que os valores morais que trazem uma certa paz são feridos de morte, mesmo que essa paz se dê num sistema de produção que traz desigualdade e injustiça no acesso aos bens materiais.

Se fosse elaborada uma proposta de reestruturação do modelo de produção, não haveria tanta preocupação nestas linhas. Mas, na realidade, o que se vê é o desejo de manutenção do capitalismo, cada vez mais selvagem e predatório e a diminuição da capacidade social de manifestar sua insatisfação. O crime e a pobreza, vis-à-vis, estão intimamente relacionados; a par das manifestações criminosas que têm suas origens nos desvios patológicos de comportamento, é evidente a existência de condicionantes psicossociais no cometimento de crimes: crimes de origem subjetiva, como a defesa de valores morais, religiosos, dentre outros. Assim, abre-se espaço para a condenação de grupos e pessoas que não se encaixam dentro de certas adequações morais, propiciando o fortalecimento de uma moralidade seletiva, que passa a perseguir minorias incapazes de se defender dos apelos propagandísticos que os servicia: afro-descendentes, nordestinos, homossexuais, mulheres, "comunistas" e assim por diante. E as penas propostas põem por terra valores que foram garantidos por normas jurídicas que têm por destinatários todos os homens e mulheres da raçã humana; é a violência contra a violência, e o "remédio" proposto varia de acordo com a força desses grupos de extrema-direita: prisão perpétua ou de caráter humilhante ou degradante, pena de morte, trabalhos forçados, confissões mediante tortura, e outras.

Numa estrutura como esta, não se tem a quem recorrer. As instituições estatais são deveras frágeis ou incapazes de solucionar o problema da segurança, uma vez que estão desprovidas de recursos orçamentários e de autoridade discricionária capazes de efetuar as correções que a sociedade necessita. A burocracia é uma arma a favor das organizações criminosas, pois o Estado, mesmo dispondo de aparatos públicos ao contra-ataque, não consegue ser tão célere na execução de planos de ação tão logo se perceba uma manobra criminosa em larga escala, tendo as organizações criminosas uma logística superior a do Estado, no que pertine à capacidade operacional. No plano internacional, os países ainda se encontram num estado de anarquia, carecendo de uma entidade supranacional que seja capaz de responder às crises sociais no plano global, que estouram basicamente por meio de revoltas armadas contra a população indefesa - o ataque de civis é sempre um fator de desestabilização de qualquer governo. O Direito não parece acompanhar o ritmo de mudança que é sentido nas gerações que surgem, vez que os juristas se apegaram aos valores ritualísticos e procedimentais que tornam difícil a aplicação das normas jurídicas e a conclusão de uma síntese que ponha fim aos conflitos sociais. Além disso, esse mesmo Direito está, muitas vezes, enraizado na defesa da estrutra de poder que garante à pequena parcela dominante um poder que condena a maioria às piores condições de vida, ou senão, à realidade material insuficiente de garantir a dignidade humana à massa menos favorecida.

Portanto, se a extrema-direita encontra forças para a propagação de suas idéias, é porque existe todo um terreno favorável à semeadura. Se isso acontece em países de forte tradição democrática, como França e Áustria, o que dizer de pseudo-Repúblicas como o Brasil. "Pseudo" porque aqui a res não é pública ainda, exatamente pela interferência desses grupos de pressão que remetem a realidade brasileira ao período da "ordem e progresso" a qualquer custo, ou "propriedade, família e progresso", ou qualquer outra "trindade salvadora" e marginalizante. Educar o povo é a única salvação contra esses verdadeiros terroristas.