quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

Misoginia e o significado das palavras

"Bom dia, amor. Posso te estuprar hoje?"

É com essa frase que se pode começar uma investigação sobre a misoginia contida nas recentes declarações do Deputado Federal Jair Bolsonaro. Essa provocação inicial é necessária, pois, ao que tudo indica, os estudos de gênero que são desenvolvidos pelos renomados centros de pesquisa em Ciências Sociais europeus e norte-americanos não atingiram a inserção necessária no meio acadêmico brasileiro, com raras exceções. Portanto, uma provocação prévia é necessária, para que se possa traçar um molde genérico sobre o tema e despertar um debate atento a detalhes normalmente silenciados.


Preliminarmente, é preciso esclarecer uma premissa. Em tempos de solipsismo, as palavras perdem o significado que originalmente / culturalmente têm, em função de uma "vontade de poder" (Der Wille zur Macht) que o indivíduo exerce sobre cada uma delas. Esse tipo de ato interpretativo parte da concepção de que somente o indivíduo existe enquanto ser que pensa um objeto e que, para além do ato de pensar desse mesmo indivíduo, nada existe de concreto. Isso representa um difícil problema de interpretação, visto que, ao contrário do que possa parecer, além do indivíduo existem outros, e o significado das coisas é feito (também) coletivamente e, na maioria das vezes, de forma consensual.

No passado, a palavra dita tinha a força de uma raiz que, uma vez fincada no solo, não poderia ser removida, sob pena de destruição daquele que a pronunciava, assim como uma planta. Enquanto o silêncio guarda (em si) uma natureza plurisignificativa, que desperta no interlocutor uma inabalável dúvida sobre seu significado, a palavra é a concretização do pensamento, embalada pelos desejos que se revelam, e que extrapola os mecanismos de controle a que a mente humana se submete no convívio com os demais. Falar é, acima de tudo, conviver.

Agora, sobre a misoginia. Na literatura, esse comportamento já foi expresso por autores do porte de Nelson Rodrigues que, ironizando as relações afetivas heterossexuais, apontava o desejo implícito que as mulheres teriam, por exemplo, de apanhar. Esse imaginário faz referência direta a certos comportamentos sociais, reproduzidos no mundo da cultura e determinantes dos papéis sociais de gênero - o que pode ocasionar abusos de interpretação / percepção, como no caso da mulher que se comporte de forma anormal e deseje não apanhar. Da mesma forma, chamar uma mulher de "vadia", dentro de um contexto qualquer, significa a verbalização de uma perspectiva sobre essa pessoa, num processo de coisificação fundada no desejo.

É isso o que a comunicação interpessoal faz: ela estabelece a interconexão entre as subjetividades. A grande questão: lançar palavras ao vento, sem uma preocupação com seus efeitos (significados), é ignorar o que existe de mais vulgar na comunicação humana, no que respeita às emoções e suscetibilidades da psique. Afinal, "as palavras ferem mais que a espada" - teria dito, em coro, a população.

Da mesma maneira, a afirmação "Jamais te estupraria, porque você não merece" apresenta, além do erro gramatical de concordância evidente, um erro contextual e outro de convivência: a organização dos espaços sociais não comporta esse tipo de verbalização dos desejos (até então ocultos) sobre a outra pessoa. Se é bem verdade que as palavras devem ser analisadas nos meio (contexto) em que são proferidas, existem algumas delas que se convertem em desejos que são socialmente execráveis, ainda mais quando ditas em espaços públicos nos quais os ouvintes do discurso não compactuam com o que é dito, quer por razões morais, jurídicas, ou religiosas, por exemplo. Trata-se da adequação quanto ao local (logos) no qual as palavras são reproduzidas, e quanto ao sistema de crenças (ethos) compartilhados por esses animais sociais e políticos (seres humanos). 

Ante o exposto, deve-se tentar perceber que o processo civilizatório pressupõe convivência (interação social) e regulação (atribuição de direitos, deveres, competências etc). Contextualizando essa ideia, é de se notar que, num parlamento democrático, a exposição de ideias encontra por limites as normas garantidoras da continuidade das relações intersubjetivas (do tipo políticas) e referentes, portanto, ao decoro que é exigido de cada membro que ali convive. Admitir que, no decurso de suas atividades, os parlamentares se utilizem de expressões discriminatórias (xenófobas, racistas, misóginas, marginalizantes etc) e violentas, agride diretamente os objetivos para os quais o Estado Democrático de Direito foi constituído - consoante o disposto no art. 3º da Constituição Federal -, e atentatórias aos fundamentos no qual se alicerça, vis-à-vis, cidadania e dignidade da pessoa humana - desta vez, com fulcro no art. 1º do Texto Maior.

Como representantes que exercem a soberania, isto é, exercendo o Poder Político-Social em nome do povo (titular efetivo desse Poder), os parlamentares devem estar atentos aos valores morais que dão substância ao que se fala (parlar = falar; parlamento = lugar onde se fala), por consenso. É consenso da população que o estupro é um ato que atenta à intimidade e ao próprio ser (autônomo), sendo repudiado de maneira tão incisiva que se converteu em crime contra a pessoa, passível de penalidade. Em que pese o Deputado Jair Bolsonaro defender ferrenhamente o aumento das penas para tal modalidade de crime, não parece haver harmonia entre o seu desejo (verbalizado) e suas atitudes políticas, haja vista que tal assunto sobrevém em sua comunicação em tom jocoso e de escárnio, contra a Deputada Maria do Rosário. Não há ligação, nessa "brincadeira", entre o significado da palavra e o repúdio social que ela desperta. 

"Brincar" tem um significado bastante específico: "divertir-se; entreter-se com alguma coisa infantil; galhofar, gracejar" (Dicionário Priberam). Não se pode imaginar como alguém possa "brincar" com a palavra "estupro" ou com o verbo (= a palavra em ação) "estuprar",  direcionando essa "brincadeira" a uma mulher que é, antes de mais, uma adversária política pelo qual (ele) nutre antipatia e intolerância. Pela mesma razão, não se pode (tentar) esconder essa agressão verbal e simbólica pelos "bons comportamentos" anteriores e prévias boas intenções, como se isso não tivesse um significado ofensivo à "mulher enquanto gênero".

Em vista disso, mesmo que se considere a "brincadeira" do sereno e bem humorado parlamentar, é óbvio que sua intenção era de agredir, e assim o fez. Essa atitude poderia ter sido evitada por um solene silêncio, que ocultaria seu desprezo e "vontade de poder" sobre a mulher contra quem proferiu e na qual objetivou seu desejo (inconsciente) de submissão sexual, em ato falho. Nada contra o sexo: é que, embora o Congresso não goze de uma austera reputação - no momento -, as palavras, ali, têm um significado público. 

Estupro, portanto, não, Deputado. "Por favor = É obrigado".

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