domingo, 2 de dezembro de 2012

O "Mensalão" e o "jus esperniandi"

Um dos assuntos políticos mais polêmicos da atualidade orbita em torno do julgamento da Ação Penal nº 470, julgada pelo Supremo Tribunal Federal (STF). É um caso interessante, pois ressalta a competência do STF, para o julgamento de crimes comuns e de responsabilidade que sejam cometidos por ministros de Estado, conforme disposto no art. 102 da Constituição Federal. O debate gira em torno de um comprometimento político do julgamento, o que teria afetado a jurisdicidade do processo.



O Supremo, como sabemos, é um órgão composto não necessariamente por juízes, mas por juristas, quer dizer, a Constituição Federal não faz nenhuma exigência de que os seus membros tenham pertencido, anteriormente, ao Poder Judiciário. Basta que os ministros tenham notável saber jurídico e reputação ilibada, sendo escolhidos entre brasileiros de 35 a 65 anos de idade, dentre outras exigências. A nomeação dos ministros dá-se por ato do Presidente da República, depois de aprovação pelo Senado Federal. É, portanto, um órgão de natureza política, ligado diretamente à estrutura democrática da República. No caso sob exame, vez que recebeu a competência descrita no art. 102 da Constituição Cidadã, não pode ser considerado tribunal de exceção. O infortúnio de quem lá é julgado originariamente é não poder recorrer a nenhum outro tribunal nacional.

Ocorre que, iniciada a persecução criminal dos acusados de crime de corrupção, com integrantes do chamado "núcleo duro" dos governos de Luis Inácio Lula da Silva e da atual Presidente Dilma Rousseff, o proselitismo político se arvorou como fundamento exclusivamente válido para discussões de natureza jurídica, diante do apoio popular de que goza o Partido dos Trabalhadores (PT) – que, neste caso, representa a situação, isto é, ocupa a direção do Estado brasileiro e tem, portanto, grande força política.

Só que, ao que tudo indica, a “coisa tomou um rumo inesperado”, como se diz coloquialmente. Um dos ministros do STF, o doutor Joaquim Barbosa, nomeado ao cargo pelo Presidente Lula, ao contrário do que poderia imaginar o leitor incauto, protagonizou uma das mais árduas batalhas jurídico-políticas que a Corte Constitucional já teve oportunidade de assistir.  Utilizando a teoria de domínio do fato, o ministro e seus colegas condenaram José Dirceu e outros integrantes do PT como incursos nos crimes de corrupção ativa e passiva, de acordo com a conduta individual de cada réu. Esse fato gerou, como afirmado acima, uma disputa política em torno de questões eminentemente jurídicas, que revela não a fragilidade dos conceitos e institutos jurídicos, mas a implicação direta de outros sistemas (ética, política, economia, dentre outros) no sistema jurídico.

Uma leitura técnico-jurídica de Cesare Beccaria, considerado o pai do Direito Penal moderno, revela ao jurista que, embora não tenha explicitamente adotado a teoria, ele a teria previsto de forma implícita em sua obra “Dos Delitos e das Penas”, Capítulo XXXVII, ao tratar da Tentativa, Cúmplice e Impunidade, ainda no século XVIII:
“não é porque as leis não castiguem a intenção, que o crime deixe de merecer pena, delito que comece com ação que revele o ânimo de cometê-lo, ainda que a pena seja menor do que a aplicável à própria prática do delito. A importância de prevenir a tentativa autoriza a pena, mas, assim como pode haver intervalo entre tentativa e execução, reservar pena maior ao delito consumado pode ocasionar arrependimento. Diga-se o mesmo quando houver vários cúmplices do delito, e não todos eles executores imediatos, mas por diferentes motivos. Quando vários homens se unem num risco, quanto maior for esse risco tanto mais eles procuram tornar igual para todos. Será, pois, mais difícil achar quem se contente com o papel de executor do delito, correndo maior risco do que os outros cúmplices. A única exceção seria a hipótese em que fosse prometido prêmio ao executor, caso em que, tendo ele, então, recompensa pelo risco maior, a pena deveria ser igual”.
Em artigo recentemente publicado, o professor Róger Augusto Morcelli, especialista em Direito Penal, explica melhor não apenas os objetivos da teoria, mas a sua aplicação às organizações criminosas. Considerando que o fato imputado a alguns membros do PT envolve o planejamento e execução do delito popularmente chamado "Mensalão", não haveria outra alternativa ao STF, diante da natureza do crime: o julgamento do núcleo político do Partido encaixa-se na Lei do Crime Organizado, pois há uma dissociação entre o planejamento e a execução do crime. Trata-se de lei especial, que ultrapassa o disposto nos arts. 29 e sucessivos do Código Penal. A doutrina da teoria do domínio do fato não foi uma invenção do Supremo Tribunal Federal. A doutrina alemã já adota essa abordagem, desde 1939.

Vejamos o que afirma o professor de Direito Penal, Róger Augusto Morcelli:
"Se não adotada a Teoria do Domínio do Fato no caso de organizações criminosas, os verdadeiros mandantes e organizadores não poderiam ser penalizados a não ser como meros partícipes, pois em geral não praticam a conduta prevista nos tipos penais. Assim, aqueles que realmente deveriam ser apenados de forma mais grave, por se tratar dos verdadeiros mentores do delito, acabariam recebendo pena menor que a do executor do fato, o qual poderia ser qualquer pessoa a quem o mandante – chefe da organização criminosa imporia a ordem para praticar a conduta delituosa" (MORCELLI, 2012).
Dessa forma, não obstante ter havido a aplicação de um preceito normativo diverso daquele contido na lei objetiva penal geral, é óbvio que houve um julgamento político na apreciação dos fatos da AP 470 / STF. A Corte Constitucional, além de ter essa mesma natureza jurídico-política – porque é a guardiã do Direito Político nacional --, atuou no processo utilizando-o como um instrumento jurídico-social de controle, que está vinculado às finalidades jurídico-políticas do ordenamento brasileiro.
Finalmente, vale relembrar que o magistrado é um profissional que não deve olvidar suas experiências adquiridas e suas origens sociais. Tem-se por superada a noção de um juiz neutro, pois é ser humano, inserido num contexto social específico, homem ou mulher de seu tempo e submetido às pressões da opinião pública, além de estar vinculado aos valores morais, religiosos, culturais, enfim, sendo criatura submissa às suas convicções, sejam elas quais forem.

Portanto, é muito natural assistir discussões acadêmicas acaloradas, que tenham por base discutir os aspectos jurídicos do “Mensalão”. Essas discussões, como todas as outras, são também políticas, haja vista que existem políticas universitárias, de ensino e assim por diante, todas elas contendo uma inclinação ideológica, explícita ou implicitamente. Essa é uma das vantagens da Democracia, que tolera o debate de ideias. Porém, cumpra-se a decisão do Supremo, e prendam-se os condenados, vez que não há instância superior e foi cumprido o devido processo legal.

Leia mais em:
Beccaria, Cesare. Dos delitos e das penas. São Paulo: Martin Claret, 2006.
MORECELLI, Róger Augusto F. "Teoria do domínio do fato". Disponível em http://sisnet.aduaneiras.com.br/lex/doutrinas/arquivos/TeoriaDominio.pdf.

sexta-feira, 31 de agosto de 2012

Novas considerações sobre o STF e a crise institucional brasileira

Há poucos anos, o Procurador do Trabalho Francisco Gérson Marques de Lima, meu professor na Universidade Federal do Ceará, coordenador e amigo, lançou o livro "O Supremo Tribunal Federal na crise institucional brasileira". É uma obra de Sociologia Constitucional ímpar, lançando tema inédito na produção jurídica nacional, merecendo as melhores críticas e resenhas nacionais e internacionais. É a partir de sua leitura que escrevo as linhas infra, rendendo meus melhores cumprimentos ao dileto mestre alencarino.



Estamos assistindo ao julgamento de diversos escândalos, que têm (escândalos e julgamentos) abalado as estruturas institucionais brasileiras. Esse abalo consiste numa reverberação interna, relativamente à superestrutura que se estabeleceu a partir do governo de Fernando Henrique Cardoso (que chamaremos de fernandismo) e que foi continuado pelos governos de Luís Inácio Lula da Silva e de Dilma Rousself (que chamaremos de lulismo, tendo em vista que a atual Presidente da República não teve tempo de se afirmar como líder de uma política própria). Essa estrutura é promotora de uma profunda reorganização da máquina administrativa, que vai da alteração de regras de pensão à propostas de fim de estabilidade do funcionalismo público, por meio de argumentos classificados como neoliberais -- representando, na realidade, uma privatização do Direito e da Administração públicos. A justificativa para essas mudanças seriam (i) a necessidade de adequar o funcionamento do Estado ao século XXI e (ii) reduzir custos econômicos (neles considerados encargos sociais).

O que ocorre é que a República e suas instituições têm funcionamento complexo, ambivalente e ambíguo, refletindo uma diversidade de laços intersubjetivos que não são assim tão facilmente desfeitos e refeitos. Senão, vejamos o caso do julgamento do mensalão, utilizando o voto do ministro Toffoli, mas analisando o seu perfil como jurista.

Antes de tudo, convém esclarecer aos incipientes estudantes de Direito e ao público leigo que os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) são nomeados pelo Presidente da República, depois de aprovados pela maioria absoluta dos senadores - conforme regra exposta no art. 101, parágrafo único, da Constituição Federal de 1988 (CF88). Como se vê, a escolha de um ministro do STF é política; esses juristas, homens e mulheres, embora não sejam eleitos, também não ocupam o cargo mais alto do Poder Judiciário brasileiro por mérito de concurso público. É exigido apenas que tenham notório saber político.

O ministro José Antônio Dias Toffoli, nascido em 1967 (hoje, com 45 anos) é exatamente isso: um jovem jurista, não habituado com os esquemas de Poder inerentes à atividade que exerce. Está sendo escrachado publicamente porque, no seu parecer, foi lacônico e considerado por muitos como impreciso/incompleto, ou desapropriado para um cargo tão importante. Bem, esse jovem foi escolhido no mandato do então Presidente Lula, e era uma aposta para a renovação Pretório Excelso brasileiro, para ser um dos guardiães da Constituição.

Entretanto, não podemos ser ingênuos e pensar que o STF realiza apenas julgamentos "jurídicos propriamente ditos. A Corte tem uma função política, e ela concentra-se principalmente na execução da teoria dos freios e contra-pesos - uma forma de fiscalização e exame recíprocos dos atos praticados entre as funções executiva, legislativa e judiciária, que foi incorporada historicamente e é uma de nossas tradições constitucionais mais importantes.

Ocorre que, não me parece estranho o ato do Sr. Toffoli, em defender aqueles que o escolheram para ocupar um cargo que é (nada mais nada menos) político. Talvez, o que esperássemos, como observadores dessa novela, seria um empenho do jurista que, na posição de magistrado da mais alta Corte, tivesse zelo no preparo de sua argumentação.

O que é importante aqui salientar é que o STF, na condição de Instituição estatal/social, é um dos órgãos que está inserido numa crise sistêmica. Isso significa que não podemos imaginá-los (os ministros, quer dizer, as pessoas que ali desempenham suas funções jurisdicionais) como pessoas isentas de uma co-participação política na atual crise. 

Inclusive, gostaria de lembrar ao leitor incauto que crise pode também significar vitalidade, na medida em que os atores nela envolvidos podem apresentar alternativas (modificando o atual modelo) e soluções (pequenos ajustes no modelo) que deem continuidade à vida de qualquer das instituições envolvidas nos esquemas de favorecimento financeiro em escrutínio e investigação, atualmente. Porém, é imperioso reconhecer que existem diversas forças sociais a acompanhar o deslinde desses atuais julgamentos. E alguns setores bem específicos, quer sócio-políticos, quer institucionais, ainda detém poder de fato suficiente para abalar as estruturas da atual Democracia.

Portanto, seria bastante útil à manutenção da Democracia que o STF realizasse um julgamento "jurídico propriamente dito" e condenasse às sanções penais, administrativas e civis, todos aqueles que comprovadamente participaram, direta e indiretamente, nos esquemas de desvio de verbas e cooptação política (lobby). Isso colocaria em risco à governabilidade, mas qualquer um(a) pode ser Presidente, mas nem todo governo é necessariamente Democrata.

sexta-feira, 20 de julho de 2012

O Fortal: agimos como se não soubéssemos!

Depois da insistência (agradável) de amigos -- que apenas surtiu efeito após a insinuação de que estaria sendo preconceituoso --, decidi ir em grupo para a micareta que se realiza aqui em Fortaleza, no mês de Julho. Bem, é isso que os amigos fazem: nos colocam em situações "diferentes". 

Isso significa que, ao contrário de todo o bom senso -- e até de uma ou duas conversas sobre o "não ir" --, pensei que o episódio poderia me servir de alguma coisa: se não conseguisse ficar "feliz" ali dentro, iria aproveitar a ocasião para fazer aquilo que gera o desprezo/desespero de quem me conhece: analisar criticamente o comportamento de quem estava lá, e do "espetáculo" como um todo.


Uma primeira interação com alguém desconhecido foi imediatamente no portão de entrada da "Cidade Fortal". Estávamos imprensados, centenas de foliões, num empurra-empurra sem precedentes, aguardando que os organizadores se decidissem se iria ou não continuar a etiquetar os clientes (nós, como se fôssemos gado... ou éramos?). Eu estava impassível, calado. A moça me pergunta: -"Que absurdo, tudo isso, né?". Eu me limitei a olhá-la, de soslaio, e disse-lhe: -"Na minha opinião, todos nós que estamos aqui merecemos isso." Afinal de contas, não tinha razão? Bem, esta é uma narrativa -- vamos deixá-la como tal.

Logo após a liberação das catracas -- o primeiro carro-de-som (ou "trio-elétrico", como chamam) já havia passado --, como no estouro de uma manada, entramos aos montes portão adentro; até levantou poeira. Confesso que não sabia para onde ir nem o que fazer, vez que não havia nenhuma sinalização indicativa de começo/meio/fim. Não preciso dizer que o contentamento dos foliões estava estampado em seus rostos -- bem diferente da situação de 20 minutos antes, quando as vaias davam outro "tom" à noite. Quase que por um passe de mágica, tudo estava superado: não havia reclamações a fazer, nem tempo para isso, pois era muito importante correr para entrar no "bloco" e seguir o trio-elétrico.

A partir daqui, o habitual: muitos jovens já bêbados, a tal "pegação" ou "fica" (encontros casuais, temperados a beijos e muita lascívia), algumas demonstrações de testosterona e muitas, muitas garotas. Eu tinha pensado em utilizar a expressão "muitas mulheres", para indicar apenas o gênero, mas fiz questão de enfatizar que não eram nem meninas, nem mulheres adultas, mas adolescentes mesmo. Aliás: a maioria dos presentes transitava mesmo nessa faixa etária terrível,  e quase todos bêbados. Não me pareceu um espaço muito apropriado para o convívio entre adolescentes, jovens e adultos -- mas quem sou eu para julgar, não é?

Eu não quero comentar sobre o estilo musical, porque estou sendo levado a crer que, hoje, depois do "Eu quero tchu, eu quero tcha", já está valendo tudo -- de dedo no olho, à puxão de cabelo. Não posso negar que o clima de histeria coletiva gerado pelo conjunto de fatores ali dispostos, acabam por te levar a dançar alguma coisa -- ou você achou que eu iria mentir e dizer que tudo está perdido? Ouvi até a banda "Chiclete com Banana" fazer uma homenagem ao Jorge Ben Jor, tocando algumas outras músicas mais elaboradas -- neste momento, não me lembro se foi Nelson Gonçalves, mas me fez lembrar dos meus avós, e fiquei muito contente.

Foto do site Se Divirta, disponível em http://www.sedivirta.net/website/index.php/festas/shows/details/5548-fortal-2012-em-fortaleza-ceara-programacao.html


Mas qual a minha impressão geral? Ela se divide em duas partes: a visão de dentro, e a de fora.

Do lado de dentro, o Fortal me fez repensar alguns conceitos que restavam guardados a alguns anos, sobre esse tipo de manifestação em massa. Se você quer se comportar de forma instintiva, sem necessariamente estabelecer nenhuma ligação consciente de alteridade com uma multidão de pessoas, é o local ideal para se exercer o individualismo narcisista. Ali, cada um dos presentes pode se sentir um produto de consumo -- e o auge dessa sensação é durante a passagem pelos camarotes (reservados para pe$$oas de caráter mai$ elevado). 

Do lado de fora, aquilo é barulho, poluição urbana, engarrafamento e pessoas embriagadas ao volante. Eu voltei de taxi, por razões óbvias, mas devo comentar que não havia uma blitz ou operação de trânsito, quer da A.M.C., quer do DETRAN/CE. O que significa que hoje, muito provavelmente, aumente o número de motoristas embriagados voltando do bairro Dunas para suas casas.

Não gostei, nem desgostei. Sou indiferente. Afinal de contas, se 99% quer, porque que os 1% devem se opor? Isso tudo é tão velho como Roma, e para "bom entendedor", meio pingo basta. Só sei que, definitivamente, essa trupe não vê mais o meu dinheiro.

quarta-feira, 18 de julho de 2012

Vivemos num mundo normatizado

A primeira lição que um jovem estudante de Direito deve entender, quando ingressa no curso, é aquela que nos explica estarmos todos inseridos num mundo de normas. A normatividade exerce a primorosa função de conter os ímpetos, os instintos e os desejos da Sociedade, simplesmente porque pressupõe uma organização prévia à inserção do indivíduo na teia. A causalidade, quer dizer, a simples busca pela origem desse padrão pode ser alcançada através da compreensão do papel das famílias, pois esse parece ser o berço de onde surgiu a padronização de condutas e comportamentos.


De fato, a normatividade nada mais é do que a interferência de um comando na conduta do indivíduo, ou uma orientação que gera uma expectativa sobre qual a melhor maneira de organizar um convívio entre duas ou mais pessoas. Na realidade, essa dupla característica da normatividade - prescrição / descrição -- inicia-se em processos tão elementares como indispensáveis à estabilidade da associação entre pessoas; a linguagem, por exemplo, representa um corpo normativo espetacular, e, talvez, primordial, a gerenciar a interação social -- é a mais elementar das trocas humanas, na qual a estrutura básica emissor-receptor necessita de uma padronização para que a mensagem seja entendida e o resultado seja uma comunicação de sucesso entre dois cérebros. A fala, portanto, é o primeiro elo dessa cadeia normativa tão complexa na qual estamos inseridos.

Mas existe uma cadeia normativa muito mais complexa, que perpassa das mais simples normas de organização familiar, ultrapassando as normas de organização educacional, num processo que adquire complexidade crescente. Esse processo normativo, fruto de uma cultura humana qualquer, inclui a formação de normas técnicas, de organização econômica, religiosas e jurídicas. Há nesse escalonamento um aumento no grau de complexidade, porque do empírico até o moral, os critérios de justificação das normas passam a depender da adesão dos indivíduos à observância do preceito contido na norma que orienta a ação. Ainda, os centros produtores dessas normas podem ser flexíveis, pouco flexíveis, ou rígidos, conforme se trate de uma adesão espontânea ditada pela necessidade, pela utilidade, pela fé, ou pelo consenso.

Diante da exposição efetuada no parágrafo anterior, podemos ver que foi seguido um escalonamento que não incluiu a força como um dos elementos subjacentes ao cumprimento das normas. Por que? Simplesmente porque a força não é um critério inerente à normatividade, mas um pressuposto anterior ao surgimento da norma. Talvez seja essa uma das maiores confusões dos teóricos, ao longo dos séculos que, tentando explicar o fenômeno normativo, incluíram na estrutura normativa as ideias de coerção e coação. 

A coerção, aqui entendida como o temor que leva o indivíduo a cumprir o conteúdo da norma -- quer seja ele prescritivo, quer seja descritivo --, nada mais é do que uma reação do indivíduo ao objeto-norma; reação individual que pode não chegar a se constituir diante da norma, haja vista que ela poderá ser recepcionada por completo, sem gerar no ser o medo necessário ao cumprimento do que foi pré-estabelecido, como é o caso da aceitação oriunda da confiança. Assim, a coerção pode ou não existir, e o que não está presente, mas antes é apenas uma possibilidade, não é concreto e não pode ser algo constituinte do real.

A coação, que seria a utilização ou da força física, ou da psíquica, ou de ambas, também não integra a ideia de norma, pois é uma condicionante externa da convivência social: é um dado natural, também exógeno ao conceito de norma. Na realidade, a norma existe para que o ser humano não se utilize da força para exigir um determinado tipo de conduta -- mas isso também não impede que a norma contenha uma autorização para o seu emprego, tanto que se tem, no Direito, o cumprimento forçado da sanção, como forma de demonstrar a obrigatoriedade da norma àqueles que simplesmente não aderiram espontaneamente ao seu cumprimento, fazendo-se valer o conteúdo normativo por meio da violência institucionalizada.

Portanto, o entendimento aqui exposto é o de que vivemos num mundo normatizado para que não nos utilizemos da violência para garantir qualquer ordem ou organização social. Deve-se pensar na norma como um instrumento, uma ferramenta à disposição dos processos de interação social. Porém, se as normas são utilizadas com o objetivo de garantir a opressão de uns sobre os outros -- que é o que tem sido feito desde sempre --, aí não se trata de uma questão relacionada à estrutura das normas, mas diretamente ligado ao uso que os seres humanos fazem dos objetos e coisas que cria.

terça-feira, 10 de julho de 2012

Democracia brasileira: verde por fora, podre por dentro

Numa de minhas recentes conversas com a professora de filosofia Sandra Helena Sousa, conversávamos sobre o sucesso dos Torneios Erísticos, organizados a nível de graduação, na modalidade "curso de extensão", para os alunos da Universidade de Fortaleza. Estávamos avaliando os resultados, que julgávamos positivos, sobre a participação e engajamento dos alunos, não apenas pelos temas em si (adoção de filhos por casais homoafetivos e aborto de fetos anencéfalos), mas pelo motivo que me faz escrever agora: a Sociedade brasileira está se preparando para os grandes debates. Esse preparo tem tudo a ver com a Democracia.


Quando comecei meus estudos sobre História da Filosofia, me chamou a atenção o fato de que os gregos desenvolveram-na -- a Demokratia -- com o intuito de substituir a força da violência pela força do consenso, e, também, por um fator pouco discutido, mas que considero válido e de extrema importância: à semelhança do que aconteceu em outros momentos da história, houve um aumento médio da riqueza do homem grego, o que fez surgir disputas pelo poder de administração da cidade, entre os aristocratas e os novos ricos, que se beneficiaram das expansões militares e comerciais gregas.

É nesse momento que surgem alguns desdobramentos daquilo que chamamos filosofia, no que ela tem de mais significativo no discurso: surge a retórica, a oratória, a transmissão da mensagem como forma de arte e de saber. É claro, entretanto, que houve outras reviravoltas no desenvolvimento dessas aptidões, como a procura socrático-platônica pela Verdade, pela categorização aristotélica, e tantas outras, que tinham por oponentes os sofistas e seu relativismo, por exemplo. Mas é exatamente desse momento inicial que estamos a falar: o do despertar do debate, a convicção do orador, seu pathos, ethos e logos, dos topoi, da construção de um arcabouço que orientou a construção do discurso político de tradição eurocêntrica -- de cuja tradição brasileira é parcialmente herdeira.

Nós não temos nem experiência, nem tradição com Democracia. Por várias razões, e uma das mais importantes é a nossa colonização e sua ancestralidade anárquica: "Há, na parte mais ocidental da Ibéria, um povo muito estranho: não se governa nem se deixa governar!" (frase atribuída ao General Galba, primeiro administrador da Península Ibérica). Os chamados "degredados" que aqui vieram estabelecer suas colônias -- com as práticas da escravidão e da servidão, conforme a origem étnica de cada indivíduo -- conviviam com a pirataria nas águas internacionais, e com uma monarquia corrupta e ineficiente -- que fez uma péssima aposta no metalismo, sem acompanhar o desenvolvimento comercial de seus pares europeus.

Nossa primeira Constituição, outorgada por Dom Pedro IV - inocentemente chamado nestas terras de D. Pedro I -, que se propunha a ser uma Carta liberal, na realidade disso passou longe, e representou, na prática, um distanciamento entre as esferas do político e do jurídico. Criou um Império que, nos termos do artigo 3, teria um governo "Monarchico Hereditario, Constitucional, e Representativo", sendo que aqueles que quisessem se candidatar para os cargos de senador deveriam ter renda de oitocentos mil réis (art. 45, inciso IV), e para os de deputado, quatrocentos mil réis, de renda líquida. Porém, não podemos ser ingênuos e achar que tais limitações tenha sido uma inovação lusitana. 

Os inventores do regime democrático, e seu marco ateniense, excluíam da participação na Ágora os estrangeiros, escravos, menores de vinte e um anos e as mulheres. Foi um governo de homens maduros, cidadãos gregos, livres, que tinham por preocupação o estabelecimento de regras para a organização da Cidade-Estado. Era, portanto, também ele, na origem, excludente. Esse tipo de administração da res publica pressupunha pessoas num mesmo nível social, discutindo assuntos de seu interesse - através do diálogo, do consenso, decidiam sobre "seus" assuntos "públicos".

É por isso que não me espanto quando vejo pessoas como Luiz Felipe Pondé discutindo os perigos da Democracia com meia dúzia de "formadores de opinião". A Democracia tem perigos, sim. Um dos mais graves é a falsa construção do conceito de "Bem Comum", ou a noção de "Justiça", ou qualquer uma das ideias que povoam o inconsciente político ocidental. 

Platão, no devaneio que teve em sua obra "A República", já fazia menção à necessidade de fazer com que os homens do povo respeitassem às leis, para que fossem felizes, mesmo que para isso fosse necessário ao Legislador (Filósofo-Rei) o uso da mentira. Numa sociedade de massas, do homem-massa, quantas vezes já não se cometeram atentados contra minorias, e quantas outras vezes assistimos continuamente ao embate entre os diferentes grupos? Como reagir, diante do "discurso da democracia global" sendo empurrado ao redor do mundo, pela força das armas?

Esse também foi um diálogo que tive com os juristas e professores Rodrigo Saraiva Marinho e Giovani Magalhães. O que quer o povo? Democracia é realmente o melhor regime político? As inqueitações que o tema traz são enormes, principalmente porque o regime democrático como uma garantia -- e nos esquecemos do nosso recente autoritarismo.
Mas temos que nos lembrar de que este é o "desafio-Democracia": ela pressupõe o preparo, o diálogo, a troca de experiências e, acima de tudo, o reconhecer das particularidades, do indivíduo e das diferentes formas de ser e estar. Ela deva englobar a divergência nas perspectivas, e deixar aos indivíduos a possibilidade de errar. Sim! Nós podemos errar! Nós temos o direito de errar, porque nós também temos o direito de mudar de opinião. Como também temos o dever de transmitir aquilo que conhecemos como correto -- coisa que os intelectuais se negam a fazer: ir ao encontro do povo, ao invés de ir de encontro a ele; muitos acadêmicos mantém-se entre o "povão" e o "povinho", escondidos em seus gabinetes de ar-condicionado...

Ainda temos que perceber o seguinte: a tecnocracia também não é uma solução, ao contrário do que vem sendo ventilado ao longo dos últimos anos no Brasil. Se os políticos corruptos podem roubar, é porque recebem a excelente assessoria técnica de burocratas muito bem versados nas artes jurídicas, econômicas e contábeis! Esses, os tecnocratas, tomam suas decisões técnicas, sem a minima moralia.
Assim, eu finalizo este pequeno ensaio -- todo escrito em primeira pessoa -- para lhes dizer o quanto estou feliz porque estou no gozo de minha liberdade democrática de livre pensar, de livre expor as minhas ideias, por mais que tenha escrito um monte de asneiras, deixando você também livre, para acreditar, refutar, enfim, me "encher o saco"! Mas você não pode me impedir de dizer o quê eu penso...

(É preciso ser ambíguo)

domingo, 1 de julho de 2012

A cultura no Ceará (?): inauguração do Centro de Eventos de Fortaleza

É surpreendente a capacidade que têm gestores cearenses de cometer os maiores deslizes na administração local e regional. A inauguração do Centro de Eventos de Fortaleza (CEF), ontem, foi o maior exemplo da falta de compromisso do Governo do Estado com o cidadão, através da promoção do show de Ivete Sangalo e de Jennifer Lopez. O "evento" foi o mais claro ato de comédia - gênero dramático que faz o público rir, diante do escárnio às vicissitudes do cotidiano e das debilidades humanas.


Nesse aspecto - da comédia -, o show demonstrou exatamente os traços mais débeis de nossa cultura, exatamente porque não fomos capazes de exigir uma conduta diversa da Secretaria de "Curtura" do Estado; somos uma comunidade sem identidade, nos dizeres de Agamben, pois nos limitamos a importar um enlatado, uma artificialidade cultural, um produto, que veio aqui em terras alencarinas simplesmente reproduzir meia dúzia de frases, gravadas (o show da norte-americana foi playback! e o da baiana foi o que sempre é). Não houve um acréscimo, a tal "criatividade", mas simplesmente uma simulação (Baudrillard), alimentada pela ânsia que o público local tem de se sentir parte do global - complexo de inferioridade característico de países e regiões da periferia do sistema mundo.

É por essas e outras razões que o artista local não consegue reconhecimento ou mesmo sustento de sua vida através da arte. Estamos fadados a assistir a um não-surgir de um novo Luiz Gonzaga, ou ao não-aparecimento de um novo Zenon Barreto; mas tolos fomos nós, que pensávamos que o CEF iria promover a produção artística local e/ou a exposição do que se já se fez ou do que se reinterpreta; ele é nada mais, nada menos que um centro de eventos, e por eventos, entenda-se somente isto: deslocamento ou concentração de pessoas, para festas.

E ontem foi a festa do Governo do Estado. Uma festa que ocorreu num Centro de Eventos que não tinha acesso para pedestres, em seu projeto original. Não fora o protesto das comunidades, teríamos ficado com a declaração do Secretário de "Curtura", de que "quem vem ao CEF, vem de carro!".

Taí a democracia. Engula!

sexta-feira, 8 de junho de 2012

O desperdício no sistema de produção capitalista e o papel do Estado

Muito se fala sobre os gastos do Estado Social e da necessidade de diminuir a participação deste não só nas atividades que desempenha, mas no exercício de regulamentação das atividades privadas. Os fundamentos para essas colocações seriam a sua ineficiência e o desperdício das ações públicas, e a maior habilidade dos privados (leia-se: empresas) na consecução dos serviços e atividades públicas. Porém, por detrás desses argumentos há um não tão evidente interesse na desregulamentação e exclusão do Estado, em favor do poder econômico ou poder das grandes corporações, em detrimento dos interesses sociais.


De fato, uma das maiores críticas que pesa sobre o Estado de Bem-estar Social é aquela que versa sobre o péssimo emprego dos recursos econômicos colocados à disposição do Estado pela Sociedade, arrecadados através da função tributária, e gastos através da intervenção estatal nas atividades econômicas e serviços colocados à disposição do público. 

Essas críticas se colocam antagonicamente à tese de que essa estrutura semi-intervencionista estatal possibilitaria uma redistribuição de recursos econômicos, por meio da captação de recursos e respectivos repasses, tanto a nível de infraestrutura econômica - o que promove o desenvolvimento das atividades empresariais, em momentos de crise de investimentos e excesso de liquidez -, e a garantia de serviços mínimos e estratégicos - que dão continuidade e estabilidade à vida social. Seria desse suposto equilíbrio, entre o público e o privado, que surgem os direitos sociais caracterizadores dessa forma de organização político-jurídica.

A hipótese acima ventilada confronta-se com as teorias de não-intervenção da lex publica sobre a lex mercatoria, tendo em vista um conflito de lógicas entre os interesses que seriam realmente "públicos" sobre aqueles que seriam iminentemente "privados". Porém, o que o modelo estatal sob comento preside é a criação de um espaço "social", que se coloca entre essas duas concepções, pela simples noção de que a "riqueza social", compreendidos entre a produção e a moeda, e os bens imateriais, neles inclusos os valores sociais e os objetos culturais, são bens sociais, o que significa dizer que pertencem à Sociedade - o esforço coletivo para a melhoria das condições de vida de todos os membros da Sociedade.

Ora, a ideologia (neo)liberal argumenta que o Estado dito "intervencionista" aumenta o desperdício de recursos naturais e econômicos, diante do problema da corrupção - que estaria inegavelmente ligado à atividade burocrática dos agentes e funcionários públicos. Esse argumento é válido, mas ele não se aplica apenas ao Estado. O desperdício e a ineficiência são sistêmicos: o sistema de produção capitalista pressupõe que as empresas estarão constantemente aumentando a sua produção e lucratividade, expandindo mercados e reafirmando sua posição diante de demandas que também, necessariamente devem se expandir, mesmo que os bens ofertados pelo sistema não sejam úteis ou necessários - como é o caso dos produtos supérfluos. Ainda, a eficiência propugnada por esse discurso existe apenas em modelos ideais de produção, que pressupõem argumentos como a "teoria das expectativas racionais" e os "equilíbrios de concorrência entre os agentes produtivos", que simplesmente não existem na prática - quer pelo comportamento irracional do mercado financeiro especulativo, quer pela existência de deformações concorrenciais (trustes, cartéis e monopólios de mercado). Isso porque a lex mercatoria atende apenas aos interesses do próprio mercado: a ideia de que as forças produtivas seguem uma lógica própria - o eterno apelo à "mão invisível" smithiniana. Ainda, a corrupção não é privilégio de funcionários e agentes públicos, mas um problema humano que, tendo em vista a busca pela satisfação de interesses e pela realização de desejos materiais, atinge a humanidade como um todo - diante de normas éticas, colocadas pelas comunidades, que são em maior ou menor grau desrespeitadas pelos indivíduos, em seu convívio.

Ocorre que, o funcionamento "natural" do mercado, discursivamente falando, apela a dois princípios que seriam caracterizadores da "natureza humana", em função da escassez: o egoísmo e a mesquinhez. De plano, é plenamente discutível se esses são dois valores elementares do ser humano, tendo em vista não a condição gregária do homem, mas mesmo a necessidade de solidariedade entre os indivíduos, para o atingimento de objetivos e interesses comuns - que é empregado, até mesmo, nas mais recentes correntes da gestão empresarial, que colocam o funcionário como um colaborador da empresa, por exemplo. Isso porque, mesmo se forem analisados os argumentos antropológicos da formação das Sociedades (independentemente se foi um acaso, ou força do destino), não há nenhum indício de que a liberdade de cada indivíduo prevaleceu ou prevalece sobre o desejo de igualdade de oportunidades trazido pela solidariedade humana. 

Se o sistema for observado de outra perspectiva (ecologia versus economia), vê-se que ele torna necessário  que haja um consumo crescente, o que impõe a não durabilidade dos produtos - a procura por bens deve ser exponencialmente positiva, para que seja também crescente a produção - o que pode ensejar a defesa da "eficiência" produtiva, mas não de uma eficiência "ambiental". Nesse sentido, à produção de bens e oferta de serviços está associada a fabricação de desejos (o fetiche da mercadoria), por meio das campanhas de marketing - um processo artificial de produção de necessidades, que deturpa a própria noção de "riqueza social". Além disso, o papel da mídia na criação dessas "falsas necessidades" está estruturado sistemicamente na requisição efetuada pelos produtores de bens e fornecedores de serviços, e não nos clamores de dignidade que advém da Sociedade.

Por fim, basta lembrar que, ao longo dos séculos, o Estado tem sido garantidor dos privilégios inerentes à propriedade, e tem respeitado a liberdade industriosa dos indivíduos que detém o poder econômico. Mas esse poder foi limitado, ao longo das reformas pelas quais tem passado o sistema, quer aquelas relativas exclusivamente à manutenção ideológica que dá suporte ao capitalismo (superestrutura), quer aquelas relativas ao apoio econômico dado à iniciativa privada. No primeiro caso, foi exigido o sacrifício da liberdade absoluta, em nível contratual, por meio de uma melhor proteção contra os abusos inerentes ao exercício do poder econômico. O segundo, a solidariedade exigida de toda a população, através do avanço no patrimônio de capitalistas e trabalhadores, para a manutenção do parque industrial, nos momentos de crise (como é o caso recente do bail out norteamericano, diante da crise financeira de 2008 - causa exclusivamente pelas instituições financeiras que, dentre outras práticas, emitiram títulos podres para capitalizar seus investimentos).

Diante dessas colocações, é preciso compreender que os processos de tomada de decisão jurídico-políticos não podem seguir apenas uma linha diretriz; não se pode privilegiar apenas o discurso da liberdade e da eficiência, nem apenas o da solidariedade e igualdade. O exame acurado da situação do desperdício não é um problema específico do Estado Social, mas um desafio à humanidade, supondo que não prosperará o sistema planificado de produção. Muito menos é salutar ou evidente pensar que o desperdício será solucionado apenas pelas forças econômicas do mercado. Preservar a livre iniciativa e os valores sociais do trabalho, com os objetivos de defender a soberania produtiva e a melhoria da qualidade de vida da população: eis um sistema equilibrado, que pressupõe a ponderação do jurista na escolha da melhor ética.

*
Antônio T. Praxedes é professor dos cursos de graduação e pós-graduação em Direito, na Universidade de Fortaleza, e do curso de graduação em Direito, na Faculdade Christus.

sexta-feira, 27 de abril de 2012

A questão agrária e a reforma agrária: críticas ao posicionamento da Avaaz.org - Por Gustavo Liberato

Caríssimos,

Atendendo a convocações e instâncias dos amigos Torquilho, Graça e Giovani, adentro esta comunidade para partilhar uma reflexão que me tomou ares de indignação, pela facilidade com que apresentada e pela "candura" justiceira que veicula.

De logo informo ao leitor que não advogo interesses de "criminosos de fazenda" (como se em algum grau fossem distintos dos demais) ou de escravocratas que reificam a condição humana, o que abomino - como se precisasse dizê-lo aos poucos que me conhecem. Mas devo atender à convocação da razão, acima de tudo, bem ao gosto de um Alber Camus, no seu "La Peste":


"Pero hay siempre un momento en la historia en el que quien se atreve a decir que dos y dos son cuatro está condenado a muerte. Bien lo sabe el maestro. Y la cuestión no es saber cuál será el castigo o la recompensa que aguarda a ese razonamiento. La cuestión es saber si dos y dos son o no cuatro".

Trata-se de um e-mail advindo da comunidade Avaaz.org, sempre muito bem quista pelo autor destas linhas, que, contudo, destoou de seu procedimento usual. Cuida-se de uma convocação à pressão sobre os parlamentares brasileiros no sentido de se aprovar uma Proposta de Emenda à Constituição - PEC que prevê o confisco, para fins de reforma agrária, das terras onde encontrado trabalho escravo. "Nada mais justo!", poder-se-ia dizer em rápida e irrefletida análise; outrossim, cumpre deixar o emocional um instante de lado, pois, como dito por Umberto Eco em seus "5 Escritos Morais":

“Diverso é, por outro lado, tentar definir 'função intelectual'. Esta consiste em distinguir criticamente aquilo que se considera uma aproximação satisfatória do próprio conceito de verdade – e pode ser exercida por qualquer um, até mesmo por um marginal que reflete sobre sua própria condição e, de alguma maneira, a expressa, do mesmo modo como pode ser traída por um escritor que reaja aos acontecimentos de modo passional, sem impor a si mesmo a decantação da reflexão”.

A "Função Intelectual" é parte indissociável do ser cidadão, e não exclusividade dos intelectuais, como a tautologia poderia fazer crer à primeira vista. De fato, o que se deve alertar para essa proposta é bem perceptível, pois sob as vestes do justiciamento contra a prática criminosa da redução de um ser humano à condição análoga à de escravo, há um palpável interesse de instrumentalização política, como se pode ver a seguir:

I - Passa-se a impressão da inexistência de normas no país, o que deixaria impunes os fazendeiros criminosos:

Ora, se isso for verdade, então inexiste possibilidade de seu julgamento nas esferas criminal e civil. Contudo, tanto os tipos penais existem (v. art. 149, do Código Penal - com apenação de 2 a 8 anos de reclusão no tipo básico, acrescido de multa) quanto se faz possível a responsabilização civil (inclusive com a penhora do bem, mesmo se considerado bem de família, caso o trabalhador seja visto como doméstico - v. art. 3º da lei 8.009/90).

II - Induz, nos arroubos de momento, à ilusão de que a vítima do crime seria beneficiária do confisco:

Essa hipótese não deve ser cogitada, pois se trata de ilação falsa, dado que o bem confiscado seguiria para fins de Reforma Agrária, e não pagamento de indenização às vítimas. É de se ver como se pretende obter, sempre indignamente, dividendos político-eleitorais da reificação alheia! Se o móvel da proposta é a proteção das vítimas, por que não lhes amparar processualmente (via Ministério Público e Defensorias) para fazer cumprir a legislação, inclusive civil, com o ressarcimento de danos materiais e morais? Por que entregar a propriedade à União para que "Ela" frua de dividendos políticos com o populismo? Registro novamente: a propriedade bem deveria ser penhorada para fins de pagamento das dívidas decorrentes de atos ilícitos cometidos contra as vítimas (uso conforme à legislação), e não para uso eleitoral.

III - Consideração de ordem constitucional:

Propõe-se a discussão de uma PEC que previria, a bem da função social da propriedade, mais uma restrição dessa. Contudo, porquanto já assinalado acima, resta evidente que seria necessário um juízo de ponderação, o qual, se devidamente conduzido, não autoriza a conclusão exposta. Com efeito, estar-se-ia instrumentalizando (a bem de certos interesses político-eleitoreiros) o patrimônio que deveria assegurar o valor das indenizações a serem pagas às vítimas do crime. Como, então, realizar a função social da propriedade se o primeiro prejudicado será o próprio vitimado? Simplesmente não faz sentido, a não ser se considerado o interesse de capitalização eleitoral.

Convém não acalentar ilusões; o teatro das sombras midiático e de mercado já se movimenta no sentido eleitoral de 2012 e 2014. Somente com o uso da razão é que se pode levar a efeito a missão central da cidadania: filtrar criticamente tudo o quanto lhe é apresentado como bom, justo e verdadeiro e, por vezes sem conta, frustrar-se, descobrindo o que de fato é e não é, mas sempre evitando o maldito processo de iconização da cidadania, tal como adverte o Prof. Friedrich Müller.

Por igual convém encerrar de logo, dado que não se deve abusar da cortesia feita pelo convite, mas talvez deixando e aberto a oportunidade de novas reflexões e críticas.

Agradecendo a oportunidade, firmo-me em fraternais saudações,

Prof. Gustavo Liberato
*
Gustavo T. Liberato é professor dos cursos de graduação e pós-graduação em Direito, na Universidade de Fortaleza. Ministra as disciplinas relativas ao Direito Constitucional.

terça-feira, 3 de janeiro de 2012

Ceará entregue ao crime e governo continua silente

O Estado do Ceará está entregue aos criminosos, devido a uma paralisação dos policiais militares - responsáveis pelo policiamento ostensivo, desde o dia 1º de Janeiro de 2012. Na realidade, como os militares não podem fazer greve, trata-se de motim, caso de insubordinação que pode culminar com a dispensa desonrosa dos amotinados. Além disso, o comportamento criminoso daqueles policiais militares que cobriram os rostos com capuz deveria ter sido rechaçado energicamente pelo Secretário de Segurança Pública - se não fosse o mais absoluto silêncio (descaso!) das autoridades governamentais cearenses.


Os policiais amotinados requerem 80% de reposição salarial e redução da carga de trabalho - reivindicações essas não atendidas pelo governo do Estado. Ora, causa espanto que esses agentes públicos estejam a requerer aumento a um governo que, meses atrás negou-se a atender semelhante demanda de professores da rede pública de ensino. Inclusive, ressalta-se que a Polícia Militar foi utilizada para reprimir (com um desfecho violento!) a greve dos professores. Ao que parece, essas reivindicações não serão consideradas legítimas pela população...

Porém, o que soa muito perigoso é o líder do motim dirigir-se ao comandante da 10ª Região Militar e desafiá-lo para uma "guerra" diante das câmeras de televisão. Além de ser uma tremenda estupidez (em duplo sentido: falta de bom senso e de bons princípios), tal atitude demonstra um sentimento de superioridade que somente a mais profunda arrogância poderia despertar. Em que pese o governo do Estado do Ceará, na figura de seu atual gestor - Cid Gomes - ter transformado alguns dos membros da corporação em autênticos criminosos (pelo uso desmedido e arbitrário da força contra os servidores civis do Estado), esses servidores militares adquiriram o sentimento de impunidade e a falsa noção de que não há legalidade neste País.

Observadas as regras democraticamente insculpidas na Constituição Federal, e na larga legislação infraconstitucional, percebe-se que essa (policiamento) é uma das funções estatais que não está albergada pelo direito de greve. Inclusive, já foi prolatada uma decisão judicial que considerou essa "greve" como ilegal - quer dizer, não podendo ser um ato qualificado como greve, não seria nada mais que um ato de ilegalidade. Ademais porque houve destruição do patrimônio público, ocupação ilegal de prédio militar e, evidentemente, insubordinação.

Entretanto, esses atos têm como supedâneo a mais completa irresponsabilidade e incompetência administrativas da atual gestão. É óbvio que a responsabilidade última é do governador Cid Gomes (que, ironicamente, encontra-se em visita à União Européia), que já deveria ter exonerado o atual Secretário de Segurança Pública (cujo nome não pode ser revelado aqui neste post por preguiça do autor em se dar ao trabalho de conhecer sequer a alcunha que já recebeu da população de Fortaleza - município mais afetado pela onda de violência). 

A solução para este caos deveria ter sido tomada imediatamente após a constatação de policiais encapuzados tomando de assalto o prédio da Polícia Militar do Estado. Enquanto existem mulheres e homens de família trabalhando nesta respeitável e ilibada Coorporação, que requerem e têm TODO O DIREITO a um aumento de remuneração e de melhoria das suas condições de trabalho, tem-se criminosos fantasiados de policiais. O Secretário de Segurança deveria ter prendido os "encapuzados" e ter-se declarado preso (esse é um procedimento militar), exigindo do governador o aumento do soldo de seus comandados. Teria conseguido, pelo menos, apoio moral das tropas. Mas, ao que parece, arriscar R$ 20 mil (vinte mil reais) de gratificação não é coisa para qualquer homem...

Exigir melhoria de remuneração e de condições de trabalho é direito de todo trabalhador. Em sua grande maioria, para não dizer na quase totalidade dos casos, a paralisação das funções é o último recurso dos trabalhadores. E ela ocorre quando o gestor se recusa a dialogar, é autoritário e/ou ausente - quem será que tem esse perfil? 

Por fim, seria necessário lembrar às autoridades públicas que a sociedade brasileira está desarmada. Quer dizer, hoje, no Brasil, apenas os bandidos e a polícia (???) possuem meios para a concretização da violência. A população abdicou do seu direito de autotutela (defesa dos próprios interesses) e encontra-se duplamente refém: do Estado e do crime. O Homem de bem está desarmado, e entregue.

***

O Ceará não é Sobral, senhor governador. É muito maior! Apareça por aqui, pois defender a segurança é uma competência constitucional do Governo do Estado. O clima europeu nesta época do ano, inclusive, não é muito propício para o turismo. Venha, pois já estamos todos com muitas saudades...