Ser espectador passivo da existência seria, grosso modo, uma forma de aceitar o mundo e suas condições naturais. Mas o ser humano revolta-se contra a natureza e a modifica, constantemente, para que esse objeto se adeqüe às suas necessidades materiais, impregnando, ainda, tudo à sua volta com noções de valor e
pathos, fazendo desse mesmo objeto (o mundo) o seu lar psicológico - a noção de realidade enquanto utilidade e finalidade. Assim, a espécie humana não é espectadora passiva da realidade e sua contribuição é a semente que se prolonga no tempo e deixa registros da atividade do
hommo sappiens num planeta fatalmente destinado à destruição. Assim, mesmo sabendo que a Terra é destrutível (por forças astrofísicas ou, ainda, ações desencadeadas pelo próprio homem, por exemplo, a bomba de hidrogênio), esse animal (racional) insiste em deixar sua marca biológica, espiritual e intelectual. Por que? Seria essa, também, uma condição natural? Ora, ao que parece, tudo indica que a
idéia, o pensamento, enfim, o produto de uma
razão direcionada tende a preservação de um movimento iniciado pelo ser humano, que se propaga e se repete no comportamento humano de forma quase compulsiva.

O que faz a
idéia se propagar? O que leva o ser à repetição de um comportamento? Ambos se confundem? A metafísica, que estabeleceu o dualismo entre idéia e realidade, parece ignorar a presença de construções abstratas do mundo concreto. Mas as idéias pertencem ao mundo do real, ganham vida nas ações humanas e se propagam ao longo do tempo através do processo de "desabstração" exatamente no momento em que ficam registradas pela linguagem. Toda realidade se constrói mediante a ação abstrata das ideias - diferentemente de se poder dizer que sua realização é possível ou não. É neste contexto que se poderia defender a existência concreta da Moral, que é ação dirigida pela vontade humana na continuidade de certo tipo de comportamento, direcionado à preservação e organização de certo interesse humano. É sob esta estrutura moral que o ser racional tornou possível a própria continuidade da espécie, porque se assim não procedesse, defendendo idéias ou modelos de comportamento, esse mamífero bípede possivelmente não teria dominado o mundo. A esta altura, dois questionamentos: seria possível afirmar que um comportamento, ou melhor, uma regra moral pode ter uma causa natural? Um sentimento pode ser uma conseqüência biológica? Isole-se um pequeno agrupamento humano primitivo e veja-se como se comportam os seus elementos e chegar-se-á num
ensaio de resposta acerca dessas questões. Os membros de uma comunidade qualquer - fazendo-se já uma diferenciação entre comunidade e sociedade, devido à complexidade e aparente desorganização desta última forma de agrupamento humano - tendem à organizar suas relações intersubjetivas tendo por base relações de poder e a divisão de atividades para a obtenção de resultados em tempo adequado às necessidades do grupo. O ser humano, inclusive, tem demonstrado uma aptidão ou uma condição social inegável que se repete em todos os tempos - com exceções isoladas que confirmam o que parece ser uma regra. Não seriam essas duas constatações conseqüências da vida
em si considerada?
Assim, parece haver uma necessidade biológica que direciona o comportamento humano e, se o direciona a fim de dar continuidade à existência, cria as condições elementares para o surgimento de regras de conduta. Se, para garantir a perpetuação da espécie, os seres vivos devem garantir a manutenção da prole indefesa, surge a condição
ideal para o estabelecimento de uma regra moral:
deve-se cuidar dos mais fracos ou
deve-se cuidar dos mais novos. Este exemplo já pode se candidatar a tentar explicar o surgimento de uma norma moral e d'um sentimento. Mas é tarefa de quem escreve o que pensa deixar o leitor à vontade para criar seus próprios exemplos, porque exemplificar é sempre uma castração daquele que gosta de exercitar a imaginação... Essas necessidades de ordem natural/biológica podem ser o berço da valoração humana aos fatos e acontecimentos que podem ser observados: os clãs, as tribos, as vilas que melhor administram seu contingente humano, zelando pelos mais fracos e preservando os mais velhos, podem possuir melhores condições de preservar dois dados importantes para a manutenção da força politicamente organizada, porque garante a renovação de mãos produtivas e a manutenção de valores adquiridos, respectivamente. Não seria uma tendência natural o domínio de coisas? Daí, claro, pode surgir uma deturpação de regra de conduta, que seria o domínio de um humano sobre outro humano - à semelhança do que ocorre em relação ao território e à caça, nos animais racionais e irracionais. Mas, qual a segurança destas afirmações? Não só um certo ou qualquer instinto para a definição de comportamentos, mas a perpetuação desses instintos pela seleção natural de idéias mais aptas ao objetivo primevo de todo ser: a continuação da vida, seja de forma mediata - ato de preservação, assim, comer, procurar alimento etc. -, seja de forma imediata - ato de reprodução, produzindo cultura, prole, linguagem, e assim por diante.

É óbvio que é possível uma filosofia da negação da moral. Mas rejeitá-la (a moral) e colocar a questão de sua existência em torno apenas de questões metafísicas representa um gasto de energia inútil - sendo de mais valia "perder alguns quilinhos" numa atividade ginástica qualquer. O ideal faz parte do real, uma vez que só pode idealizar mediante uma atividade filosófica, que pressupõe a existência de um ser cognoscente e um objeto cognoscível (mesmo que imaginário, figurativo ou metafísico). Isso, é claro, considerando que a realidade efetivamente existe, ou seja, de que é possível se provar que tanto este texto, como esta idéia, como a pessoa que está à digitá-lo ocupa um lugar na curva espaço-temporal, num determinado universo. A partir de outra perspectiva, tudo é possível e tudo é impossível. Se não existisse moral, não existiria mais nada - e tudo que aponta nesta direção é niilista. Não parece que caiba mais ao ser humano filosofias que neguem a sua condição primordial de percencer ao mundo
animalia. O humano tem impulsos fisiológicos, bioquímicos, que importam uma condição material de existência e inter-relação. A intersubjetividade é condição da espécie humana que se condiciona pela repetição de comportamentos, criação de regras sociais com traços éticos, com reações desproporcionais de cunho emocional, primitivo. E tudo isso faz parte da discussão em torno da moral, porque este elemento pressupõe um núcleo do qual emana a tal liberdade de movimento e expressão e interação social, da qual construiu-se a noção pós-moderna de dignidade. Todos esses conceitos, claro, são puramente humanos, porque esta forma de vida
chordata preocupou-se com o "encaixotamento do saber", com a procura de definições e conceitos, que pudesse tornar mais fácil a propagação de mais uma de suas criações: a
idéia.
A idéia de moral é uma conquista humana - seu uso para o benefício destes mamíferos, aí é outra discussão. A importância de sua existência deve ser buscada em sinais disponíveis no mundo natural, ainda que apenas de forma especulativa, sem questionamentos de ordem metafísica - pois, neste campo, tudo é subjetivo. Saudável é, antes de colocar a questão "se existe uma moral", questionar quais seriam as conseqüências de sua inexistência.