sexta-feira, 8 de agosto de 2014

O mérito numa sociedade desigual e de privilégios

Um dos temas mais polêmicos na teoria política diz respeito à meritocracia. De acordo com essa teoria, a investidura no poder deve dar-se quase que exclusivamente em razão do mérito do candidato. Porém, embora a meritocracia tenha sido um fator determinante no preenchimento de cargos públicos na Antiguidade, nas sociedades contemporâneas ela diz respeito diretamente ao sucesso na competição pela sobrevivência.




Antes de mais nada, convém ressaltar que os gregos - autores dessa perspectiva - pressupunham três critérios que integrariam a avaliação do mérito do cidadão num regime democrático: isagoria (a igualdade política entre os indivíduos do corpo civil), a isotimia (o livre acesso aos cargos públicos aos cidadãos) e a isonomia (a igualdade de todos perante a lei da pólis). Ainda, convém esclarecer que esse modelo helênico, puramente formal, tinha por alicerce uma sociedade fundamentalmente desigual e injusta: as mulheres e os filhos não eram cidadãos, ocupando, junto com o escravos, o patrimônio econômico do cidadão grego, ou seja, o locus social dessas pessoas era a puramente privado, sujeito às regras do justo e injusto de uma justiça privada ou não-pública, nos dizeres de Aristóteles (na obra "Política"). Isso para não descrever certos aspectos dessa cidadania, que admitia a venda de pessoas na qualidade de "escravo", como foi o caso de Platão, cidadão e filósofo ateniense que serviu nessa condição, num navio mercante, por vários anos. Com isso, pode-se afirmar que tal paradigma sócio-político de meritocracia era, inequivocamente, formal.

Dando prosseguimento a essa modesta investigação, pergunta-se: como essa estrutura foi absorvida pelas culturas ocidentais, e que marca (trauma) ela provoca nas formas de acesso ao poder (sócio-econômico)? Igualmente: quais seriam as consequências práticas desse tipo de perspectiva diante da obscena desigualdade entre os sujeitos que compõe um modelo jurídico-formal de Estado Democrático de Direito? E, finalmente: que perspectiva se abre diante dos contornos de uma democracia plural, inclusiva e participativa?

Em que pese os milênios de transformações sociais e culturais pelas quais passaram as civilizações ocidentais, que se abeberaram na filosofia grega para contemplar o modelo de Estado de Direito, a organização dessa Modernidade optou por uma abordagem puramente formal de configuração das estruturas de poder. Essa perspectiva está alinhavada numa transição paradigmática que faz parte das transformações registradas pela História (principalmente da Idade Média coletivista, para a Modernidade individualista), que culminou na prevalência dos interesses privados do homo oeconomicus, com uma mudança focal sobre a vida social, isto é, uma mudança de viés na concepção da organização da vida individual e coletiva: o cerne das preocupações do indivíduo passou da esfera pública para a privada. A promessa de um "futuro melhor" por meio do progresso foi o estopim e armadilha na qual se jogaram os países europeus, alimentados por ideologias e modelos sociais os mais variados - mas todos comprometidos com alguma tentativa ou proposta de equilíbrio entre os interesses individuais e nacionais: houve uma transmutação de conceitos: da coletividade para a nacionalidade, como bem ilustra os adeptos da Escola Histórica e das doutrinas jurídico-políticas que se utilizaram da filosofia hegeliana.

Entretanto, ao contrário do que indicava o fatalismo da abordagem histórica, os progressos tecnológicos de que se desfruta atualmente (revolução aeroespacial, telemática e informática, biotecnologia, energia termonuclear etc.) também modificaram aquela configuração sócio-política do Estado nacional: a globalização reduziu distâncias, eliminou fronteiras geográficas, tornando o mundo, paulatinamente, numa aldeia global, sem, contudo, resolver os problemas do passado. A miséria e os diversos tipos de desigualdade e exclusão social, ao contrário do esperado, se intensificaram. Isso porque essa globalização sedimentou-se sobre ruínas de uma disputa da Modernidade (entre os argumentos da economia de mercado e da economia planificada), que resultou com a vitória da perspectiva formal liberal, que assumiu os contornos de uma neoliberalismo: neo (novo) porque adequado a um mundo de plena liberdade conferida ao mercado financeiro e às grandes indústrias transnacionais; neo porque abandonou o indivíduo à própria sorte, por concentrar-se e validar apenas o direito à propriedade, e relegar ao plano meramente abstrato os direitos da personalidade (ao desenvolvimento das capacidades plenas do indivíduo).

Neste momento, torna-se necessário avaliar o argumento que discute a contemporaneidade - também designada de "pós-modernidade", que nada mais indica além da prevalência de um modo de vida pautado nas "sociedades mais desenvolvidas" (Lyotard) do complexo político de cariz eurocêntrico. O atual modelo de organização social tem na esfera econômico-financeira o seu alicerce primordial. Para ter "sucesso", os indivíduos devem zelar pela otimização dos recursos sociais e, dentre eles, tempo e dinheiro compõe a "chave para o sucesso" na organização dessa vida social. Assim, garantir os interesses pessoais e individuais é uma máxima válida e inquestionável, se o cidadão almejar uma sobrevivência plena e abundante em bens materiais e segurança financeira, numa sociedade de consumo em massa. Mas, em que pese todo o aparato das correntes do pensamento crítico, além da falta de oportunidade que continua a assolar as populações dos países da periferia da antiga divisão Norte-Sul globais, hoje, esse sistema global reproduz a miséria e os diversos tipos de desigualdade no centro desse sistema (Norte) - sendo a atual crise econômica europeia o melhor exemplo a ilustrar esse fato: inundados por imigrantes, sem perspetiva de empregabilidade (diante do fenômeno da deslocalização de empresas), com uma pirâmide social absolutamente invertida (envelhecimento populacional) e vivenciando políticas de austeridade, os europeus estão endividados, desempregados e desgovernados.

A competição global por acesso aos bens e aos recursos naturais, de um lado, só proporciona o referido progresso (prometido na Modernidade) àqueles dotados de privilégios que, porventura, consigam administrar e dispor de tempo e dinheiro (que já possuem) à formação que propicie o desenvolvimento de competências técnicas adequadas. De outro lado, os excluídos do processo não tem acesso a essas ferramentas, tendo que ocupar a margem industrial excluída pelos processos tecnológicos, recebendo apenas uma remuneração que só garante a sua reprodução biológica e o sustento de suas necessidades elementares. O que se constata é que houve um aumento (globalizado) do fosso que separa ricos e pobres.

Em que pese esse ser um cenário generalizado, ainda persistem algumas ilhas de resistência a esse panorama desalentador. Sobreviveu, em alguns países, uma linha de proteção social aos desamparados e, associada a ela, uma linha argumentativa de um modelo não-formal (mas nem por isso menos jurídico-político) de correção daquelas distorções formais do (neo)liberalismo. Seria uma linha por estabelecer um espaço limítrofe entre a humanidade e o mercado, entre o ser e o ter: as políticas públicas do Estado de Bem-estar Social e Democrático de Direito, sustentada por uma outra linha, também limítrofe, de reforma social, da social-democracia. Social-democracia essa que reconhece os direitos do indivíduo, consagrados pelo liberalismo político e jurídico, mas que também zela pelos direitos da sociedade; que dá a noção de que o indivíduo, antes de ter, é e está, e nessa condição de estar, convive. A união entre esse modelo estatal e o outro jurídico-político está vivo no texto constitucional de países como o Brasil, França, Itália, Alemanha e Portugal, dentre outros. Porém, as avaliações sobre a efetividade e a sobrevivência dessas linhas são desoladoras, porque, embora elas existam, a leitura e interpretação que se procedem sobre elas ainda é majoritariamente formal.

Significa dizer que, embora existam modelos jurídicos que assegurem a transposição dessas dificuldades e mazelas sociais, é necessário uma abordagem circunstancial e não-formal dessas garantias. Tome-se o caso de um problema global: corrupção. A abordagem formal da corrupção submete-a à formulações procedimentais e processuais que são incompatíveis ferramentas de solução do problema. Por que? Porque a impunidade relativa a ela é não-formal: não se trata de um problema sistêmico, mas extra-sistêmico; não é jurídico, é político, e está ligado à omissão (relativamente aos mecanismos da democracia participativa, de controle, fiscalização e cobrança dos atos de governo). Outro problema: formação educacional. Também esse seria um problema a exigir uma solução não-formal: de que adianta proporcionar o ingresso de discentes de classes sociais desprovidas às universidades (públicas e privadas), se não há livros, alimentação e transportes públicos e gratuitos aos estudantes? Em outras palavras: você consegue estudar com fome?

Portanto, as questões relativas ao mérito devem ser avaliadas diante da seguinte problemática: quem tem mais mérito? Aquele que goza de benefícios, facilidades, apoio e suporte financeiros, ou aquele que, mesmo diante de privações, falta de oportunidades e carestia consegue seu lugar ao Sol? Como se determina o mérito num modelo competitivo, desigual, formal e excludente?

quarta-feira, 2 de abril de 2014

Os "filhotes de ditadura"

O título deste texto é uma autêntica provocação; e essa provocação, de certeza, não é uma das mais prudentes atitudes a serem tomadas nos dias que correm. A expressão "filhotes de ditadura" foi cunhada por uma colega professora e, vez por outra, ressoa em minhas memórias como um alerta, uma lembrança de que ainda não superamos o autoritarismo do golpe de 1964. Essa é uma chaga aberta na sociedade brasileira, que ainda não conseguiu discutir todos os aspectos que envolvem o regime de exceção que se instalou no Brasil, de 1964 até 1988 - regime de exceção de um Estado não-democrático de Direito. Esse é mais um problema que se arrasta e que desperta o ódio e a ira de grupos que não conseguem (ainda) estabelecer um debate amplo sobre os males que o originaram e que germinaram durante esse período.


A mudança de regime jurídico-político de 1988, que se inaugurou com a Constituição da República Federativa do Brasil, também não foi eficazmente constituído de forma a resgatar o passado e, no espírito verdadeiramente democrático, efetuar a delimitação da culpa de cada partícipe desse processo - que se inicia num golpe de Estado e que termina na promulgação de um documento regente de um povo com tantas mazelas. O fetiche do legalismo estatista só não foi absoluto porque o modelo jurídico implantado teve o mérito de ter sido conduzido por meio de um debate social, no qual participaram diversas correntes de pensamento e grupos de representação social e de pressão - o que caracterizou o pluralismo político defendido no texto vigente. 

Se tal não fosse verdade, não teríamos a necessidade de discutir se adotaríamos uma Monarquia Parlamentarista, por exemplo, ou da discussão do sistema de governo - parlamentarista ou presidencialista. Haviam dúvidas, posicionamentos divergentes, questões históricas e todo tipo de conjectura acerca de nossa vocação sócio-política, e que ainda ressoam nesses grupos que ora são ignorados, ora causam rebuliço naquela paz que adviria do fim do controle e da opressão dos governos militares. Isso para não dizer que, olhada atentamente, a História da República teve a contribuição das forças armadas desde a proclamação dessa estrutura política, passando pela composição da Presidência e nos momentos de intervenção nos governos civis. Entretanto, essa contribuição precisa sempre ser reavaliada, em função da essência do que designa o conceito de "militar": a força que, fazendo a guerra, garante a paz... Então, quer dizer, somos um povo que não atinge a paz, senão por meio da guerra, da violência

Como é óbvio, a Democracia, por si, não é um instrumento capaz de apagar os erros históricos cometidos pelos governantes e pelas "cabeças pensantes" que comandavam e continuam a comandar os rumos políticos do País. Ela servirá, talvez, para impedir que cometamos os mesmos erros, por meio da experiência adquirida no passado. Porém, somente o preparo e o empenho de uma população comprometida com os ideais de Justiça social, liberdade (de pensamento, de empreendedorismo, de opinião, expressão e consciência) e igualdade (jurídica, política, cultural e de ascensão econômica) poderia concretizar os objetivos e defender os fundamentos do atual sistema político e do ordenamento jurídico vigente. Contudo, esse preparo pressupõe não apenas o conhecimento dos fatos, mas a possibilidade de refletir sobre cada um dos fatores que nos fazem ser quem somos - os "filhotes de ditadura". Ainda, esse empenho indica a abstinência de interesses individualistas e imediatistas que nos impulsionam antes à ação do que à reflexão, embotando o bom julgamento e impedindo a exposição de motivos daqueles que querem (e merecem) ser ouvidos.

Me incluo como membro de uma geração que não teve participação direta nos eventos que concorreram para o início do período em destaque, porque fui espectador passivo e impúbere do sentimento de mudança que acalentava os sonhos de uma liberdade que os meus pais não tiveram. Por sorte (e por várias outras razões), não posso afirmar que passei por perdas familiares, nem fui eu mesmo vítima da perseguição política, nem muito menos decidir agir violentamente para mudar aquilo que parecia imutável. Mas sinto-me no direito de requerer que haja a construção de um debate em torno dessas questões, que possibilite a exposição dos motivos, das razões e das desculpas (mesmo que esfarrapadas) que levaram compatriotas a mutilarem-se e matarem-se uns aos outros, em nome de ideologias e posicionamentos que afetavam a regulação da vida de toda a sociedade brasileira. Inclusive, penso que qualquer forma de autocracia - seja na forma de ditadura, seja na de autoritarismo - é sempre maléfica àqueles ideais destacados do preâmbulo constitucional e que, supunha eu, pudessem dirigir os rumos políticos do País.

Essas preocupações são mais inquietantes quando podemos assistir nos meios de comunicação de massa (até na via digital), a comemoração velada ao autoritarismo que vigorou e ao que continua a vigorar, de maneira difusa, no Brasil. É mesmo a expressão de um sentimento que se encontra arraigado na comemoração da diferença (desigualdade) e numa falsa meritocracia (posto que excludente a partir de privilégios injustamente adquiridos), que impede que o grande público tenha acesso a expressões que são afetas (e prediletas) aos bancos universitários - ainda não democratizados e, em que pese toda tentativa e esforço nesse sentido, continuam elitizados. 

Igualmente, me pergunto se, enquanto nação, podemos ser refratários à dor das famílias que perderam entes queridos - e algumas delas, impiedosamente massacradas - por força dessa autêntica guerra de todos contra todos. Talvez, seja necessário dizer que toda a sociedade perdeu com a tortura, os atentados, os enforcamentos, degolações ... que foram a prática corriqueira, tanto dos que se diziam defensores da liberdade, quanto dos que - em nome dessa mesma liberdade - praticaram essas barbaridades. Quantos males já se perpetuaram, e quantos outros ainda se perpetuarão em nome desse valor? Ainda na seara desses valores, quantos critérios seriam aplicáveis à igualdade, que nos colocam como inimigos uns dos outros, num país com riquezas incalculáveis, e quanto é possível se sacrificar esse povo em nome dessa (genérica) igualdade? Que Justiça social é possível diante dos privilégios, dos acordos entre poderosos, da inépcia das instituições e das precárias assistência e segurança sociais?

Enquanto o jogo da verdade continuar restrito aos mesmos jogadores; enquanto a maioria do povo continuar sem uma voz ativa e esse debate estiver concentrado na representatividade de minorias - que se arvoraram em proprietárias desse debate -, haverá solução possível? Quando deixaremos de ser "filhotes da ditadura"?

Esse diálogo é apenas uma fração correspondente a um sofisticado e longo debate, na dura luta pelo poder, pelas mentes e corações...



quarta-feira, 12 de março de 2014

A Democracia por um fio: coisas não queremos saber

O projeto democrático brasileiro vem, aos "trancos e barrancos", sofrendo diversos reveses nos últimos anos. Se é certo que depois da Constituição de 1988 pode-se falar de um ressurgimento da participação popular, é também correto admitir que ainda há muito a se democratizar no Brasil. Como um dos desafios, surgem as diversas e, por vezes, conflitantes perspectivas políticas e concepções ideológicas, calcadas nas tradições e leituras (ontologicamente construídas) que o legislador constituinte originário soube tão bem colmatar no texto constitucional - sob a rubrica do pluralismo político.

De fato, pode-se afirmar que, hoje, o Brasil possui um ordenamento jurídico que adota a liberdade de consciência política - encontrando respaldo na melhor doutrina do liberalismo político. Sob o imperativo categórico da tolerância, defende-se a ideia do lema "que vença a melhor ideia". O sistema federal, bicameral, compõe-se da Câmara dos Deputados e do Senado Federal que, juntos, desempenham a função maior da Democracia brasileira: o Congresso Nacional. Ali, todas as garantias para a desenvoltura dos debates estão assegurados: desde as garantias e direitos fundamentais, tais como a liberdade de expressão e consciência, até as garantias e direitos políticos, como a liberdade de filiação partidária e as imunidades parlamentares, há todo um aparato jurídico-político que conflui diretamente para o exercício de uma parcela de nossa Democracia - a representativa. Além disso, o País possui mecanismos de participação decisória direta, que ultrapassa as limitações do sufrágio universal e secreto, responsável pela escolha daqueles políticos: ferramentas como orçamento participativo, fiscalização e controle de contas dos poderes executivos (municipais, estaduais, distritais e federal), e outros, como a proposta de lei de iniciativa popular, referendo e plebiscito são todas ferramentas jurídicas à disposição do povo brasileiro, para o exercício de uma das mais preciosas conquistas sociais - a soberania popular.

Esse conceito de soberania popular, que adquirimos da tradição europeia, não é um conceito unívoco. Ao contrário, ele indica que há um certo tipo de soberania, qual seja, aquele no qual o poder deriva diretamente da vontade do povo. O conceito de povo, também, também não é unívoco - embora a preguiça e o senso comum tentem sempre distorcer o seu significado, para não falar das insidiosas práticas do intelecto desonesto, que deturpa o real sentido e alcance da palavra. Povo, no sentido constitucional, é a classe de pessoas que habita este País e que, sendo sujeitos de direito como todos os outros membros da população (estrangeiros, turistas e apátridas), possuem a capacidade ou a expectativa de direito de votar e serem votados. Seguramente, junto da melhor doutrina, referenciada aqui em Paulo Bonavides, no seu livro "Ciência Política", o elemento povo apresenta uma faceta jurídica (sujeito de direito) e outra política (poder, um dia, votar e ser votado).

Como se vê, até este ponto, Direito, Poder e Política são três elementos que estão em constante contato. Isso porque a Política é um meio, no qual o Poder se expressa e, como resultado, surge o Direito. Mas essa interação não pára nesta primeira síntese; assim como ocorre em todo processo dialético, esse resultado (o Direito) dá ensejo a novas conformações da Política, pois a dinâmica social é uma constante e, nela (na dinâmica social) ocorrem novas manifestações de Poder. A Sociedade promove constantemente uma reformulação dessa dialética, reconstruindo posições, com novas interações entre atores políticos que, negociando seus interesses e defendendo suas convicções e ideologias, fornecem novas configurações ao Direito.

A Democracia é, então, um jogo político que se desenvolve sobre o pano da liberdade política. E quanto mais saudável é uma Sociedade, mais claras são as intenções e os atos praticados pelos representantes políticos escolhidos pelo sufrágio, e mais acessíveis aos olhos do povo são os atos desses governantes e legisladores. Então, qual seria a dificuldade da Democracia à brasileira? Por que ela é uma Democracia de baixa intensidade - para utilizar uma expressão do professor sociólogo Boaventura de Sousa Santos?

1) Educação

Seria muito pertinente elaborar uma defesa da Educação que fizesse apologias emotivas ao valor dos professores, à necessidade de preparar as crianças para um futuro melhor e ... enfim, apelar ao bom senso do leitor. Mas o caminho a ser trilhado aqui é outro: o do cumprimento da Lei - coisa que nem a população, nem os governantes parecem gostar.

A Constituição Federal estabeleceu um conjunto enorme de artigos voltados ao desenvolvimento de uma Educação inclusiva, que fosse capaz de realizar os objetivos fundamentais da República, consubstanciados no art. 3º, que também concretizasse a dignidade da pessoa humana do art. 1º e, por fim, pudesse lançar as bases de realização de uma justiça social - conforme preleciona o preâmbulo constitucional. Ainda, colocou-a como um direito fundamental, pois ela integra o art. 6º, no capítulo dos Direitos Sociais, que pertence ao Título II da Carta Constitucional - que cuida dos direitos e garantias fundamentais (esse é o nome do Título, para aqueles que não sabem ou não "entendem" que a Educação e os direitos dos trabalhadores, por exemplo, são direitos fundamentais). Sobremaneira, desponta o clarividente art. 205, estabelecendo o que se pode entender como um rol taxativo e hierárquico dos objetivos da Educação: "(...) direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade"; a finalidade desse direito é (1) o pleno desenvolvimento da pessoa, (2) seu preparo para o exercício da cidadania e (3) sua qualificação para o trabalho.

Em que pese a valorização do trabalho como única forma de construção de riquezas, veja-se que a primeira diretiva teleológica é "o pleno desenvolvimento da pessoa", quer dizer, o desenvolvimento das aptidões que tornem o indivíduo uma pessoa feliz, realizada, consciente de todo o seu potencial. O segundo objetivo é "seu preparo para o exercício da cidadania". Nesse segundo ponto se descortina o principal entrave ao desenvolvimento de uma Educação democratizada: não havendo educação de qualidade para o trabalho, que torne a absoluta maioria da população apta à competitividade do mercado de trabalho da Era da Informática, o que se poderia dizer de uma Educação para o exercício da cidadania? 

A maior queixa e a grande parte das críticas que se fazem ao sistema eleitoral brasileiro é exatamente focada nas escolhas dos representantes políticos: embora existam restrições acerca da vida pregressa dos candidatos e as proibições de candidaturas daqueles condenados por crimes e delitos de variada ordem, as reclamações de uma parcela que se diz "esclarecida" clama pela proibição do voto dos analfabetos - proposta que faz lembrar o voto censitário, que já vigorou nestas terras.

2) Desigualdade social

Há redundância na junção das expressões "situação social no Brasil" e "desigualdade social". Desde a exploração-colonização, passando pela independência política e adentrando a fase republicana, a acumulação e concentração de riquezas e as mazelas da maioria esmagadora da população sempre andaram pari passu com a História Nacional.
Para não falar dos tempos em que havia mão-de-obra escrava e que essa situação era reconhecida pelo Direito positivado, e para não comentar sobre a escravidão que ainda se reproduz nos rincões deste vasto território, a situação das cidades e do campo evidenciam o que há muito se escreve e se descreve acerca da condição humana nas terras tupiniquins: vive-se a insustentabilidade de um modelo de produção que ainda não foi capaz de solucionar o problema da exclusão social. Se a educação de qualidade só existe na rede privada de ensino; se essa rede privada de ensino encontra-se fora dos padrões e possibilidades de consumo da maioria esmagadora do povo; se aquela educação pública, ofertada pelo Estado não serve minimamente à qualificação de trabalhadores; se essa escola pública é um depósito de jovens, que não oferece uma perspectiva emancipatória e, ainda por cima, os sujeita ao convívio das mais diversas formas de violência - da prostituição às drogas -, com raríssimas exceções... Então a conclusão a que se pode chegar é que o cenário de miséria e despreparo intelectual de crianças e jovens da maioria dos cidadãos é absolutamente incapaz de apaziguar o que se pode chamar de "jogo da ilegalidade".

3) Jogo da ilegalidade

Existe uma vasta literatura sobre os jogos psicológicos, que tanto se dão em nível individual, quanto coletivo. Uma das obras mais conhecidas nesse território é aquela da lavra de Eric Berne, intitulada "Games People Play", e é diante das estratégias dos diversos atores sociais que se instituiu no Brasil o "jogo da ilegalidade".

Essa interessante dinâmica começa no nascimento daquele indivíduo pobre e miserável, que recebe a alcunha de "favelado": quando ele nasce, se tiver a sorte de nascer num Hospital, pode até ter alguma chance mais segura de sobrevivência, mas geralmente vem ao mundo sem os menores cuidados; ao contrário do que ocorre com uma parcela minoritária da Sociedade brasileira, esse sujeito na maioria dos casos não é registrado (a certidão de nascimento no Brasil é paga, mesmo pelos hipossuficientes; embora a lei lhes garanta tal direito, os cartórios cobram os emolumentos dos pobres e miseráveis). Para o Direito, sua existência é uma situação de fato, visto que o formalismo jurídico que aqui ainda reina carece de uma comprovação que ele não pode fornecer. Além disso, com alguma sorte (se não for abandonado por uma mãe faminta e desesperada), a casa na qual habita não pode ser chamada de propriedade: ele não possui um dos direitos mais elementares, que é o direito de possuir um local onde se abrigue e no qual, sendo cidadão, estabeleça de forma segura a sua residência, seu domicílio.

Inclusive, diga-se de passagem que, esse seu direito de 1ª dimensão, um direito civil, de possuir algo como seu, é tolhido exatamente pela força do direito de quem possui a propriedade do terreno no qual seu barraco está construído. E é exatamente nesse momento, no da definição de "o quê é de quem" que começa uma das partidas mais cruéis do jogo da ilegalidade: esse sujeito, desprovido, despreparado e desapropriado tem que enfrentar aquela minoria citada anteriormente, que possui todas as condições materiais para competir e vencer a luta da sobrevivência numa das maiores potências econômicas do planeta (sim, a sexta economia do mundo). Uma potência econômica que ainda tem na terra e no solo os seus bens mais preciosos, extremamente custosos e cada vez mais escassos, visto estarem concentrados nas mãos daqueles que ou conseguiram o que têm através da herança (e nada conhecem do trabalho), ou obtiveram através da luta competitiva do sistema de produção vigente (porque estão aptos a concorrer), ou porque usurparam os bens através da malícia e violência (porque o roubo, a sedução e a corrupção também são meios à acumulação), ou porque tiveram sorte (no jogo, ou no "amor"...).

Nesse quesito, há também o Estado - essa pessoa jurídica de Direito Público controlada por políticos, funcionários e agentes públicos, numa das repúblicas mais corruptas do mundo. Esse ator agoniza de todas as formas: em primeiro lugar porque, obviamente, encontra-se a serviço de toda sorte de gente e do conflito de interesses dos políticos; em segundo lugar porque tem ainda que combater toda sorte de doenças sociais, como o crime organizado, a tensão constante da real politique praticada por outros Estados e assim por diante - inimigos internos e extermos; e em terceiro e último lugar, porque ele é operacionalizado por meio de regras burocráticas que o impedem de cumprir sua missão de forma efetiva e eficiente, o que dá lugar ao desperdício e desvio de recursos, quer por má-fé, quer por inaptidão de seus servidores e funcionários.
Some-se a isso o jeitinho brasileiro... E toda forma de legalidade e legitimidade não passará de mero discurso retórico ou, como se diz na linguagem politicamente-irrelevante das redes sociais, "blá, blá, blá"- coisa para inglês ver.

4) A violência e o abuso de autoridade

Não é à toa que o Brasil é um dos países mais violentos do mundo: todas as dificuldades na formação cultural e intelectual de seu povo - conforme narrado acima -, associada ao despreparo e desonestidade, agravada pela ilegalidade e temperada com a falta de oportunidades cria um sentimento de ineficiência e ineficácia dos institutos jurídicos e das instituições aqui referidas.
É curioso observar que até as opções de leitura filosóficas da parcela do povo que se prepara para preencher os cargos e funções públicas (os futuros burocratas, bacharéis em Direito), direcionam-se a autores cujo trabalho e especulações giram em torno da violência, do uso da força, da brutalidade e da concentração de autoridade. Quais outros, senão Hobbes e Maquiavel, a alimentar toda sorte de devaneio na mente dos incautos leitores, que desejam adquirir o conjunto de conhecimentos que tornam a razão instrumental apta à solucionar suas crises existenciais?

Embora exista aqui uma deferência ao autor inglês Thomas Hobbes, pela sua contribuição na formação do pensamento iluminista - e nos desdobramentos que essa escola trouxe ao pensamento e cultura ocidentais -, é necessário esclarecer alguns aspectos de sua teoria sócio-política, tendo em vista ser um autor estudado de maneira recorrente pelos estudantes de Direito - na seara da Ciência Política e Teoria do Estado. Ao lado desse nome, com a mesma ferocidade e vontade de poder, surge o autor Nicolau Machiavel, um dos nomes mais conhecidos pelos curiosos e investigadores que se debruçam sobre o palco da Política, numa tentativa de compreender seus lados e, sobremaneira, aquele mais obscuro - o autoritarismo. O primeiro chega a falar numa criatura monstruosa, avassaladora, invencível (o Estado), e a necessidade de ele concentrar todo o Poder (social), para determinar o futuro desse ser tão miserável, que é o humano. O segundo coloca à população, aos súditos, apenas duas opções: o amor ou o medo; a coerção como forma de dominação de todos, sob a ameaça de uma deusa da justiça que não tem nenhuma balança, nem venda, mas só a espada...
Diante de tudo isso, e do que mais ficou faltando falar, pergunta-se: qual será o futuro da nossa Democracia?

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Em homenagem à professora Jacqueline Alves Soares, coordenadora do Escritório de Direitos Humanos do Centro Universitário Christus, a quem devo vários minutos extra-laborais, por uma importante discussão.

quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

Hollywood e suas apostas na distopia

Um dos filmes mais curiosos lançados este ano (2013) foi "Elysium": drama de ficção científica, no qual a população mundial é controlada por um sistema político gerenciado por poderosas corporações. Esse gênero de ficção científica já é bem conhecido das audiências: inevitavelmente, o sistema de produção vigente (capitalista) leva a Sociedade (baseada num modelo cultural anglo-saxão) a uma necessária privatização total do Estado, num contexto de brutal escalada de violência e degeneração moral. Assim, há o protagonismo de cidadãos e cidadãs comuns (blue collars), antagonizados pela frieza de empresários e empresárias bem sucedidos (white collars).


Essa tensão discursiva, que tem por polos os "colarinhos azuis" como uma espécie de homo sacer, e os "colarinhos brancos" representando os bem sucedidos homo economicus, é uma tentativa de ambientação da platéia num contexto futurístico (campo imaginário), partindo da realidade atual (campo real). Esse futuro seria o resultado fatalístico da competição individualista, responsável pela destruição dos valores coletivos. Esses valores (campo simbólico), por sua vez, seriam os alicerces de um sistema, pertencentes aos regimes democráticos obliterados pelo consumismo e pelas leis exatas, inumanas e matemáticas dos mercados.

Seguindo no mesmo tom de "Elysium", existem diversas películas, dentre as quais merecem destaque: Alien (1979, 1986, 1997); "Exterminador do Futuro" (1984, 1991, 2003, 2009); "Robocop" (1987, 1990, 1993); "O quinto elemento" (1997);  "The Matrix" (1999, 2003.1, 2003.2); além da famigerada saga de Milla Jovovich em Resident Evil (2002, 2004, 2007, 2010, 2012); e o recente filme de Ridley Scott, "Prometheus" (2012). Porém, há uma ironia: todos esses filmes pertencem a grandes corporações, que investem nesse tipo de gênero (Sony Pictures, 20th Century Fox, TriStar etc). 

O que chama a atenção em "Elysium" é o fato de que há uma irrefutável clivagem entre ricos e pobres, numa sociedade futurística com tecnologia suficiente para criar novos mundos - ou estações espaciais habitáveis, como é o caso -, curar doenças e prolongar a vida da população indefinidamente, e construir meios de transporte ultra rápidos e eficientes. Mas, qual o cenário apresentado no filme? A população rica habita a estação espacial, gozando de todos esses benefícios, permanecendo aquartelada e protegida de qualquer tipode contato com a classe pobre. A maioria esmagadora da população mundial vive na miséria, sendo tratada brutalmente por policiais-robots, desprovida de todos os direitos, numa espécie de Estado Global falido. 

O filme é ácido: não há saúde, nem direitos aos trabalhadores. As pessoas da Terra vivem nos escombros do que outrora foram grandes e suntuosas cidades, cercadas pela poluição (melhor dizer, absoluta devastação ambiental) e sem instituições intermediadoras dos conflitos sociais. Ainda, apresenta o crime organizado como uma alternativa à ausência estatal e à brutalidade corporativa, como se ele fosse um ensaio popular diante de uma carência sócio-institucional. Porém, antes de querer arrumar suas malas e ir morar em Elysium, vale referir que os burocratas-corporativos, quer dizer, o corpo político responsável pela administração dessa grande Empresa Global, utilizam-se de forças militares convencionais (robots) e não-convencionais (mercenários), fazendo uso de golpe de Estado, abuso de autoridade e, enfim, tudo o quanto for possível para a manutenção do status quo e de seu enriquecimento imoderado e luxurioso.

Com certeza, pode-se afirmar que "Elysium" é uma dura crítica ao capitalismo financeiro e corporativista, concretizado nos últimos anos por políticas neoliberais. Todavia e ao contrário do que se possa imaginar, a crítica levantada pelo autor da obra é, antes, a favor de um conservadorismo e de um retorno às benesses de um sistema produtivo que tinha amparo e respaldo no individualismo iluminista e liberal de um Estado garantista. Sem querer antecipar o final da estória (spoiler alert!), a "revolução" impetrada pelos heróis não estabelece a eliminação das classes hierarquicamente superiores, nem a divisão de todos os bens sociais do trabalho. O desfecho da trama tão simplesmente se resume numa restituição: são devolvidos à população mundial aqueles direitos fundamentais que foram usurpados pelo grande capital transnacional e corrupto. Nada de revolução, nem propriamente uma reforma. Apenas restituição.

Como se poderia antever, seria bastante contraditório para a Sony Pictures ou qualquer outra grande corporação defender um posicionamento revolucionário (no correto significado do termo). Nesse gênero cinematográfico, a proposta é sempre conservadora, numa tentativa de redenção por meio da manutenção de um sistema de produção "livre" (no campo simbólico), mesmo que esse sistema não seja livre (no campo real).

É dizer: o grande alívio da platéia é constatar que os heróis e heroínas estão sempre à procura de remeter sua realidade futurística ao passado no qual se encontra a platéia, e isso, por si, seria libertário, exatamente porque redime a platéia de qualquer responsabilidade por esse futuro que está por se concretizar a qualquer instante. Mas libertário, sem ser emancipatório, exatamente porque somente os campos do real e do simbólico seriam transformados, haja vista a inexistência de uma promessa utópica (imaginário), que pusesse um fim definitivo à violência, à acumulação desproporcional e à desigualdade generalizada. Libertária porque se limita apenas à restituição das regras de um jogo competitivo, atávico e matemático, presente inclusive na personalidade dualística dos atores sociais - todos submetidos à lógica da violência, da ganância e da lei do mais forte.

Dessa forma, conclui-se que essa aposta de Hollywood em filmes que projetam cenários nos quais as sociedades vêem-se em um estado de calamidade generalizado (distopia) é, na realidade, uma ferramenta de controle muito bem organizada. Ela proporciona o ganho simbólico de redenção, na figura do herói (homo sacer) que se sacrifica em prol da continuidade do real (desta realidade), vingando-se dos anti-heróis (homo economicus). E isso só se torna possível diante da natureza dicotômica - profana e sagrada - desses heróis imaginários, cúmplices dos espectadores.

segunda-feira, 28 de outubro de 2013

A "Fortaleza apavorada" e o "apocalipse zumbi"


Existe uma grande aproximação narrativa entre o seriado televisivo "The Walking Dead" e o sentimento de insegurança que se instalou no espírito urbano de uma parte da população de Fortaleza (Ceará / Brasil). Sendo possível fazer uma metáfora entre o programa televisivo e a intitulada "Fortaleza Apavorada", talvez seja também possível demonstrar que há uma lógica inerente às novas formas de dissociação entre as diversas realidades urbanas, a partir da perspectiva da exclusão social. Assim, ficariam mais expostas as linhas divisórias -- abissais -- que dividem a cidade, de forma caricata em relação às outras capitais brasileiras. Dessa foma, estar apavorado é fugir dos nossos "zumbis sociais".


Primeiramente, vamos situar a narrativa do "apocalipse zumbi", presente na obra cinematográfica citada. Trata-se de um gênero que ganhou popularidade nos países anglo-saxões por meio da obra do europeu George A. Romero - "The Night of the Living Dead" (1968) -, no qual a humanidade é destruída por uma calamidade qualquer (vírus, bactéria, radiação etc), que transforma os seres humanos em zumbis comedores de carne humana. Sem entrar no enredo propriamente dito -- até mesmo porque há diversos filmes com a mesma narrativa, com pequenas variações --, o que importa observar é a forma como a população que consegue sobreviver à praga global entrincheira-se, de forma a evitar o contágio, visto que qualquer mordida de um contaminado e a morte transforma o sobrevivente num morto-vivo.

Nesse contexto, os "normais" são aqueles que conseguem evitar o contato e, evidentemente, a contaminação com os "anormais"; isso significa que, para continuar vivo, o grupo de humanos rivaliza necessariamente por acesso aos recursos econômicos (água, comida, remédios etc) nos espaços sociais onde há uma infestação de "comedores de gente". E como fazer para evitar ser transmudado num zumbi? Armas! Armas e muita violência, posto que essas pessoas, no seriado, vivem num estado de anormalidade, no qual todas as instituições estatais e sociais foram destruídas -- imperando a máxima de "cada um por si" e do "salve-se quem puder", diante da qual a eliminação dos fracos e contaminados é quase mandatória, para garantir a continuidade da vida e do acesso aos recursos que a garantem. 

Nenhuma outra narrativa parece tão apropriada quanto aquela, para se delinear a segunda narrativa deste texto, qual seja, da "Fortaleza apavorada". Esta, por sua vez, reside no sentimento de "abandono", que deriva da insegurança pública que transpôs os limites da periferia pobre e invadiu o centro financeiro da capital alencarina. A violência -- tanto a institucionalizada, quanto a não-institucionalizada --, que era uma realidade das comunidades carentes (favelas) que circundam o centro urbano propriamente dito, agora converte-se numa regra geral, diante da impossibilidade de se concertar os problemas inerentes à pobreza e correlata incapacidade de se controlar a criminalidade somente com o recurso à polícia.

Em outras palavras, isso significa que, enquanto a violência física (agressões, mortes, assassinatos, roubos, estupros etc) faziam parte do cotidiano apenas das pessoas submetidas à violência econômica (pobreza, marginalização etc), a camada beneficiada pelo gozo dos direitos e das facilidades do mercado levava sua vida de consumo com um certo receio: a de que esse consumo poderia ser eventualmente suprimido. Isso porque a cidadania, nos tempos que correm, resume-se à cidadania econômica de consumo; quanto mais consumo, mais cidadania, maior é a inserção social e, consequentemente, mais "normal". Significa, também, que toda e qualquer forma de comportamento que danifique ou se rebele contra a autoridade da lei do mercado -- que define essas linhas urbanas (abissais) -- precisa ser combatida com a violência física apropriada e institucionalizada, com a proporcionalidade do delito cometido (como se pudesse ser submetida à análise economêtrica, como uma grandeza de ordem econômica, e não social).

Diante disso, é necessário reconhecer duas posições nessa comparação: (a) a da maioria numérica desprovida dos recursos financeiros e do espaço urbano central, do qual só podem aspirar a utilização caso estejam a realizar serviços e a produzir bens que não irão consumir; (b) a da minoria numérica, sobrevivente às calamidades da pobreza. No primeiro espaço, há o domínio das drogas, da banalidade da violência, da violência doméstica e urbana como condições inerentes à vida. No segundo espaço, prevalece a competição pelo acesso aos bens e aos serviços e a submissão à lex mercatoria (uma lei acima do próprio Estado, supranacional) -- sendo esta última elevada à categoria de dogma (realidade inquestionável).

Diante disso, quais as soluções apresentadas pela "Fortaleza Apavorada"?

A primeira delas vem da confiança (ainda que simbólica) nas instituições sociais consubstanciadas no aparato estatal. Nesse ponto, a reivindicação é por melhoria do aparelhamento, remuneração e do efetivo das forças policiais (recrutadas, também, dentre os cidadãos com menor poder aquisitivo) -- efetivo humano que, por razão das contingências sócio-econômicas, vê-se obrigado a entrar numa mini-guerra civil com os "anormais" que se inserem no crime. Essa ótica vê no Estado um instrumento coativo legitimado apenas a manter o status quo, visto existir uma ordem normativa superior (lex mercatoria) que é a única infalível e perfeitamente apta a regular a vida social; pertence à leitura weberiana de Estado, que predomina até hoje nos bancos das faculdades de Direito.

A segunda solução é o clamor pelo direito de resposta imediato à violência oriunda da "anormalidade": a violência privada e não institucionalizada, assente na ideia de autonomia e autotutela. Essa perspectiva, ao contrário da primeira, é uma espécie de distopia; distopia não no sentido de "apego à realidade", mas de negação da utopia, pela defesa da sociedade do horror -- um aspecto da sociedade do espetáculo de que nos falava a categoria de Baudrillard. Os adeptos dessa via imaginam um cenário no qual são protagonistas da defesa de seus próprios interesses, por meio de seus próprios recursos -- armas, segurança privada, organizações para-militares e congêneres --, e fazem uso desse discurso porque possuem os meios materiais (armas, carros blindados e dinheiro, enfim), capazes de substituir as instituições sociais e os mecanismos jurídicos democraticamente eleitos para tal desiderato. Trata-se de uma representação narcisística do "eu", que substitui o grande "Outro" (sociedade), por não ver nele a possibilidade de realização de seus interesses.

A terceira e última via, e que menos reverbera nos canais tradicionais de comunicação social, é a que exige a concretude de políticas públicas que ultrapassem a linha desenvolvimentista (ou neodesenvolvimentista) e que realizem o objetivo constitucional (política e utopicamente) positivado, de redução das desigualdades sociais, por meio da não-discriminação e da efetivação dos direitos sociais mínimos (educação, saúde e condições de trabalho digno). Isso porque a "normalidade" não dispõe nem dos recursos, nem da vontade política para realizá-la, haja vista a necessária reorganização de toda a malha de relações sócio-institucionais, que implicaria numa reconfiguração política da República -- única medida capaz de corrigir as discrepâncias entre o ser e o dever ser.

E quais as similaridades entre as duas narrativas, quais sejam, a dos mortos-vivos e a dos fortalezenses apavorados?

A primeira similaridade ocorre na noção de uma necessária separação entre as duas realidades, que só pode ser garantida por meio de uma linha urbana (abissal), que continue a cumprir o seu papel de separar a "normalidade" (do consumo e da opulência) da "anormalidade" (da violências física e da sócio-econômica); separação essa que garanta uma não contaminação entre os providos de recursos materiais e os desprovidos desses mesmos recursos. Isso porque é necessário que se deixe de fazer e que se deixe passar, quer dizer, que se adote uma nova atitude política que ultrapasse a da continuidade da produção e do consumo; é preciso gerar uma "descontinuidade" nessas relações sociais dominantes. Reconhecer isso significa dar reconhecimento ao confronto entre duas urbanidades: (i) uma comum à periferia, da fome e da ausência de dignidade, e (ii) outra à "centralidade", onde se concentra o dinheiro, da plenitude dos bens e das facilidades do mercado de consumo e da opulência.

A segunda similaridade é aquela hegemonicamente traduzida através do recurso à violência institucionalizada e não institucionalizada; ela recorre ao uso da força, das armas, do aparato coativo e coercitivo, como único instrumento capaz de manter afastada a contaminação que ameaça o cotidiano do consumo e da ostentação que somente o mercado (e suas leis internas) é capaz de proporcionar. Nesse sentido, a normalidade é a sujeição a essas normas e a capacidade de usufruto desse "campo do real", na medida em que haja uma adequação entre o que se faz e o que se pode consumir, ou entre os meios e recursos, de um lado, e a medida proporcional e desigual na obtenção dos bens, serviços e acesso aos espaços urbanos, de outro lado.

A terceira similaridade vem pela destruição discurso da terceira via, que seria a reestruturação da sociedade, por meio de regras humanitárias e solidárias que simplesmente não são mais aplicáveis, ante o horror generalizado pela tomada dos espaços sociais pelos "anormais". Essa é a mais cruel de todas as similaridades, pois reconhece que houve (ou que há) um discurso jurídico-político de inserção social, mas que lhe nega qualquer eficácia. A cidadania isonômica é uma promessa que não pode ser cumprida, uma das duas razões: (1) para que ele se cumpra, é necessário suspender as benesses do mercado, sacrificando o consumo e reestruturando a divisão social da riqueza; (2) não vale a pena defendê-lo, pois as pessoas que se beneficiariam dele -- os "anormais" -- não estariam aptos a gozar da "normalidade", por já estarem inaptos ao convívio com os normais (não há cura para a infestação apocalíptica dos zumbi). Diante dessas duas razões (hipotéticas), de uma forma ou de outra, a periferia teria que ser "centralizada", e isso seria o fim do espetáculo proporcionado entre os objetos do consumo e as desigualdades (diferença na concentração do poder social) que eles proporcionam. A única promessa viável é a cidadania econômica, centrada no consumo daqueles que "já possuem".

Antes de se concluir, deve-se reconhecer que o desastre escatológico (apocalíptico) sempre indicou aos humanos que a normalidade diante do horror só se realiza com apelo ao carpe diem -- prática social necessária à continuidade dos modelos de organização social. O "deixai fazer, deixai passar" também é um modelo ideológico subjacente à continuidade, pois se propõe a demonstrar a necessidade de uma conduta permissiva que conduza a um fim (no sentido escatológico) -- representa o "destino final": a síntese que põe termo ao sofrimento e à existência humana, diante de uma lei superior, inquestionável e fatal, sendo, por si, uma estratégia fatal. 

Portanto, o "anormal" é resistir à essa resolução, resistir à morte, à corrupção da carne e do sangue. Insistir em ser -- é essa a estratégia do morto-vivo --  é um comportamento que revoluciona, que se opõe à evolução natural, às "fatalidades" e à morte. Ser um morto-vivo (undead)  reorganiza, traz de volta à vida o que é podre, o que está em decomposição, alterando as dinâmicas do espaço-tempo humano: a insegurança reside no fato de que os "anormais" clamam os espaços (e os bens) materiais dos "não infectados", mesmo que para isso tenham que matá-los. Enquanto isso, os "normais" tem que eliminar os mortos-vivos, ou continuar aquartelados e enclausurados nos condomínios e nas fortalezas... e a urbe segue seu rumo.


sexta-feira, 9 de agosto de 2013

Egoísmo e Individualismo: dois conceitos independentes.

Para algumas pessoas, a vida em Sociedade é um desafio duplo, pois lhes são cobradas não só o respeito às normas estabelecidas para a convivência mas, também, sacrifícios pessoais para a manutenção da teia social. Não existe outra forma de se colocar esse problema: na vida em coletividade, o egoísmo é uma patologia social, que afeta o equilíbrio e a organização sociais, prejudicando a formação das relações intersubjetivas duradouras e fragilizando as tentativas de comprometimento entre os indivíduos em prol de interesses comuns.

Entretanto, antes de avançar com essa discussão, é preciso relembrar um dado importante: egoísmo e individualismo são dois termos distintos, sendo necessário se estabelecer uma distinção preliminar, para que se possa avançar, no sentido de combater os discursos pró-egoísmo que têm se multiplicado na última década - deflagrados por um incremento da atual fase da sociedade de espetáculo, na qual a auto-indulgência e a procura pelo prazer têm desconstituído de valor o discurso humanista. 


O individualismo tem uma acepção especial nas Ciências Sociais: representa o renascer do homem frente à Sociedade, por meio da noção de que ele é um centro do qual emana dignidade. Esse conceito remonta ao Renascimento (aqui entendido como o ressurgimento da vida urbana no continente europeu), e se reafirma no Iluminismo (uma corrente filosófica contemporânea do surgimento do Estado de Direito e do pensamento liberal, que se opunham ao absolutismo), fazendo com que o indivíduo possa se opor ao coletivismo. Quer dizer, o individualismo surge como uma resposta dada ao aniquilamento do indivíduo perante à Sociedade. Defender esse pensamento, portanto, significa reconhecer o indivíduo como um núcleo moral inserido na coletividade. Em outras palavras, é entender que, embora havendo um organismo maior, que tolhe uma parte da liberdade individual, restará para o sujeito um espaço de liberdade tal que, respeitado, fará com que as potencialidades inerentes à pessoa humana possam florescer. Nesse sentido, o individualismo não nega a existência da coletividade mas, antes, reforça o comprometimento do indivíduo com a preservação das liberdades e garantias individuais, a par das coletivas.

Ao contrário, o egoísmo ou o "culto ao Ego" é uma patologia de natureza psicológica presente nos seres humanos, podendo causar sérios danos aos sujeitos envolvidos em relações sociais nas quais incidam esse comportamento. Durante o processo de aprendizado, da infância à fase adulta, o indivíduo vai superando a fantasia de que é o centro do mundo: dos primeiros passos, na socialização da Escola, ao trabalho, cada qual entende o seu papel nos diversos contextos da vida. Considerando que o egoísmo coloca os interesses do individuo em primeiro lugar e acima dos interesses de todos os outros membros do grupo, é correto dizer que para que haja engajamento social, é preciso haver egoísmo de baixíssima intensidade - a garantia de que a pessoa possa garantir os seus objetivos e projetos de vida e sua sobrevivência, por exemplo. Isso porque o egoísmo pode levar ao egocentrismo, no qual o indivíduo torna-se incapaz de estabelecer vínculos de empatia sem que, para tanto, haja uma compensação pessoal. Isto é,  para o egoísta, as relações somente se tornam possíveis diante de uma retribuição qualquer. Uma das patologias mais graves do egocentrismo é a psicopatia: o doente torna-se absolutamente incapaz de incorporar qualquer compromisso moral com qualquer membro da Sociedade.

Nesse passo, convém dizer que vive-se um tempo em que o egoísmo suplantou o individualismo: as relações intersubjetivas nos grandes centros urbanos e, principalmente, nos países "emergentes" (no passado, eram chamados de subdesenvolvidos), estabelecem-se  por meio das ferramentas tecnológicas que retiraram do contato humano um fator sensível: a sinestesia. Assim, cada vez mais infantilizadas pela diversão das tecnologias digitais, assiste-se à disseminação do egocentrismo em massa, que se multiplica à cliques de mause (mouse) e em "curtidas" nas redes sociais. 

Mas fica a pergunta: se todos fazem, que mal tem? Ou, frustrando uma película que andou em cartaz nos cinemas, "pagando bem, que mal tem"? O mal reside no fato de que, para que haja vida (e aqui tanto faz ser considerada como vida social ou vida natural) é preciso engajamento em atividades e projetos de interesse coletivo. Alguém pode argumentar: "tudo bem, tirando-se o egocêntrico, pode-se ser egoísta e cooperar em atividades de interesse comum". Esse argumento é parcialmente correto: falta incorporar nele a idéia de sacrifício ou akrasia - uma força exterior que faz o indivíduo agir contra seu melhor julgamento ou em desfavor de seus próprios interesses.

Pode-se fornecer, como exemplo, o soldado que se joga sobre uma granada, para salvar seus camaradas. Outra forma não menos heroica, o jovem estudante que protesta contra o corte de árvores numa reserva florestal, para preservar a natureza, sacrificando seu tempo e sua segurança. Ainda, a mãe que deixa de comer para alimentar seu bebê, e por aí vai. A História faz registro das atitudes individuais que, em sacrifício próprio, salvaram as vidas de centenas e, em alguns casos, milhares de pessoas. Na era digital, o apelo à diversão exerce uma influência negativa direta sobre o engajamento de pessoas em atividades coeltivas e sinestésicas, quer dizer, em atividades sociais nas quais ocorra a sinestesia.

Portanto, o saudável equilíbrio social precisa de uma dose de individualismo e uma outra de coletivismo. Embora essa questão venha sendo discutida a pelo menos dois séculos, sem que tenha havido qualquer experiência social perfeita, é plenamente possível equilibrar a equação indivíduo-Sociedade. A solução, longe de ser jurídica, econômica ou propriamente "científica" é, acima de tudo, sensorial: apela ao âmago do ser, aos sentimentos e, enfim, à empatia.


Dedico este texto aos meus amigos: Amélia R. Soares, Henrique B. Frota, Andréia Costa Castelo Branco Sales, Erika Menezes e Juliana Freitas Ferreira. Obrigado pelo bom exemplo.

terça-feira, 25 de junho de 2013

Dilma, plebiscito e quebra da ordem constitucional - será? Por Rodrigo de Lima

Discussão pertinente esta lançada pela Presidente da República, sobre convocar um plebiscito específico popular para tratar de alguns assuntos que pautam a agenda nacional. A respeito do tema, seria interessante observarmos algumas contribuições, em especial as trazidas por Gomes Canotilho (que, creio, todos reconhecem e respeitam, inclusive o nosso STF), Jorge Miranda e diversos juristas alemães, franceses e italianos, infelizmente pouco difundidos.

A questão central parece tratar-se do receio da instação de um poder constituinte (poder de revisão) ilimitado, absoluto, portanto, seja em relação a limites formais (matérias e assuntos a serem abordados), bem como em relação à competência do órgão revisor (competência quanto ao sujeito e limites daí oriundos).



Para as duas hipóteses acima aludidas é farta a contribuição doutrinária, jurisprudencial e de textos legislativos prevendo a possibilidade de instalação de um processo revisor específico, por meio de plebiscito. Apenas a título de curiosidade, e para fundamentar a adoção da tese lançada pela Presidente, existem três limites estabelecidos para o poder de revisão, quanto ao sujeito, estabelecidos pelo pensamento doutrinário:

1. O órgão de revisão é o próprio legislativo ordinário

Aqui no Brasil, isso se daria por meio de aprovação, segundo os ditames constitucionais, de uma proposta de emenda consitucional, ainda que com pareceres de órgãos não legislativos.

Uma observação necessária é a de que, em momentos de constestação da legitimidade do sistema de representatividade como é o caso presenciado no Brasil, essa opção acabaria por ser a mais inviável em termos de efetividade do processo revisório, pois, nos dizeres de CICCONETTI, não deixa de ser uma opção interna e pouco permissiva aos anseios das ruas. Apenas a título de curiosidade, esse modelo foi utilizada pelo “Grande Conselho do Fascismo”, que dava pareceres não vinculantes (em tese) sobre a revisão da Constituição.

A questão é se poder-se-ia traçar um paralelo (de corpo) entre o Grande Conselho e as nossas Comissões Congressuais ou mesmo órgãos de outros poderes. Caso esse modelo fosse o escolhido, ter-se-ia uma representatividade mitigada ou minorada, especialmente quando se trata de momentos de crise institucional (como a que ocorre atualmente, em relação ao sistema representativo).

2. O órgão de revisão é o órgão legislativo, mas a revisão exige a participação direta do povo

O órgão legislativo assumiria a posição de protagonista limitado à manifestação por meio de referendo obrigatório (seja prévio – plebiscito, seja posterior – referendo em espécie) do conteúdo a ser modificado. Essa possibilidade existe e está prevista nas Constituições holandesa (art. 204) e belga (art. 13). É, ainda, a opção adotada pelo sistema francês, (artigo 89 da Constituição francesa) e em termos parciais, pela constituição italiana (artigo 128). Não se esqueça ainda do caso suiça (artigos 18 e 120 desta constituição).

3. O órgão de revisão é um órgão especial

Aqui, poderá o órgão ter ligação ou não com o órgão legislativo normal, podendo ser protagonizado pela reunião das duas Câmaras (Casas Congressuais no Brasil) ou por órgão especialmente eleito para o efeito. Essas hipóteses são admitidas, a título de exemplo, tanto pela Constituição francesa de 1958, em seu artigo 89, item 3, como pela Constituição argentina, em seu artigo 30.

Como se vê, a possibilidade é perfeitamente factível e presente na Teoria da Constituição e na prática do Direito Constitucional, a contrario sensu do que diz o Senhor Luís Roberto Barroso em entrevista publicada no youtube:


A outra questão a ser objeto de tratamento específico diz respeito a existência ou não de limites materiais aplicáveis a um poder de revisão. Numa primeira impressão, a corrente tradicional filia à ideia de ilimitação ou caráter inconteste e absoluto do poder de revisão parece ser a mais lógica. Mas não se sustenta, igualmente, em face da Teoria da Constituição.

A limitação do poder de revisão já pode ser tratada em Loewenstein (em sua obra Teoria de la Constitución), autor não estranho à nossa primaveril academia. Visa barrar a disposição da Constituição ao sabor das próprias maiorias congressuais, inertes ao clamor popular, como parece ser o caso do Brasil na atualidade, evidenciando um deficit de legitimidade democrática dos representantes do Poder Legislativo. Num sistema parlamentarista, a solução seria óbvia, com a queda do Parlamento e a convocação, pelo Chefe do Poder Executivo, de novas eleições. Não é o que ocorre num sistema Presidencialista. As maiorias Congressuais são estáveis e apenas são modificadas – numa primeira análise, pelo voto popular expresso nas urnas. E como essas parecem não representar os anseios das ruas, pertinente que as alterações se façam por meio de outro órgão – o titular da própria soberania, por meio de plebiscito.

Uma das formas existentes em se limitar o poder de revisão é a fixação de prazo (fator temporal) para a realização de um processo de revisão, como parece ter sido a opção de nosso legislador constituinte de 1988 (originário (?)), presentes nos artigos 2º e 3º dos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias.

Note-se que o aludido artigo 2º, para além da delimitação de prazo, explicita a limitação de matéria a ser tratada quando atribuiu ao referendo popular a escolha da forma e do sistema de governo que deveriam vigorar no país. Limitação de matéria é, assim, perfeitamente possível, inclusive por meio de constituinte que atribui ao titular da soberania o exercício direto do poder de escolha revisora.

Em segundo lugar, notável o teor do também citado artigo 3º, que, na esteira do artigo 2º, delimita prazo para revisão, mas estalece na segunda parte do dispositivo um poder de revisão geral, a ser realizado nos termos específicos daquele dispositivo, com a validade das proposições adotadas desde que aprovadas pela maioria absoluta dos membros do Congresso, em sessão unicameral – conjunta, portanto.

Vislumbrados tais dispositivos, seria difícil negar que o nosso constituinte (originário (?) não tenham recepcionado as duas possibilidades de revisão do texto – ilimitada e limitada em razão da matéria, qualificada, no caso do artigo 2º, pela participação de órgão distinto do órgão legislativo normal – o POVO.

A baila de uma conclusão, restarai uma abordagem, ainda que passageira, da recepção pela Teoria da Constituição de fixação de limites à atuação do revisor, independentemente do órgão que protagonize a revisão. A esse respeito, H. NEF, autor alemão (Die materielle Schranken der Verfassungsrevision, in ZSR, 1942, pp.III e ss), , citado por Gomes Canotilho (Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 4ª ed., 2000, p. 1030), assevera que nem toda matéria poderá ser objeto de revisão constitucional. Há limites. Não seriam eles os inferiores, pois toda matéria não constitucional ou infra-constitucional pode, em determinado momento, sofrer o movimento de constitucionalização.

Agora, outra coisa se passa em relação aos limites superiores. Há normas, como diz o jurista alemão citado por Canotilho, normas cerne da Constituição que não são passíveis de revisão. Podem eles ser expressos ou mesmo implícitos, na esteira do referenciado por Marcelo Rebelo de Sousa (in Valor jurídico do ato inconstitucional, cit., pp. 286 e ss.), de acordo com uma escala de valores pré-estabelecida no próprio texto. O que acaba por se revelar de difícil mensuração em nosso caso, em razão da diversidade das pretensões esboçadas nas ruas.

A mesma questão já havia sido posta por Thomas Jefferson, em seus escritos (Writings) sobre a possibilidade de uma geração impor suas condições à outra. Sua resposta a respeito é culturalista, nos termos de que o “processo histórico”, apesar de incontido, não significa sujeição de todos os valores a um processo revisório. A revisão total ou absoluta, assim, estaria descartada. Nesse mesmo sentido opina Herman Hesse (in Grundzüge, pp. 272-3). E é o que parece ter optado o Constituinte (?) na lavra das cláusulas constantes nos primeiros artigos de nossa Constituição de 1988.

Relativamente à questão, algum pensamento do professor Jorge Miranda a respeito torna-se indispensável:
Daqui não decorre, porém, que o poder constituinte equivalha a poder soberano absoluto e que signifique capacidade de emprestar à Constituição todo e qualquer conteúdo, sem atender a quaisquer princípios, valores e condições. Não é poder soberano absoluto – tal como o povo não dispõe de um poder absoluto sobre a Constituição – e isso tanto à luz de uma visão jusnaturalista ou na perspectiva do Estado de Direito, como na perspectiva da localização histórica concreta em que se tem de pronunciar o órgão nele investido. O poder constituinte está sujeito a limites.
Na sequência, discorre o Professor da Universidade de Lisboa sobre os limites denominados transcendentes, imanentes e heterônomos. Discussão pertinente, mas em outro momento.

A guisa de conclusão, ao menos, em termos de teoria e prática constitucional, gostaria de contribuir para apaziguar os ânimos dos colegas e nobres amigos, concluindo não apenas pela admissibilidade da adoção da proposta feita pela Presidente da República, como também para aplainar, ao menos em termos comparativos e doutrinários da melhor estirpe, a postura do Leviatã em releção ao tema. Temos um sistema de controle de constitucionalidade para eventuais abusos, caso sejam verificados. O que é, discutivelmente, de difícil ocorrência, em face dos ares de sensibilização que norteiam a jurisprudência e prática da Suprema Corte de nosso país. Observemos.


Rodrigo Costa Ribeiro de Lima é Mestre em Ciências Jurídico-Políticas/Direito do Estado – Universidade Coimbra/FADUSP e Professor do Centro Universitá rio do Norte Paulista – UNORP.