quinta-feira, 1 de novembro de 2007

Eu não "cansei"

Fico imaginando que é chegada a hora de o brasileiro mudar a sua perspectiva em relação aos problemas do País. A hipocrisia dos movimentos do tipo "cansei" é tamanha que causa espanto não haver um posicionamento sério de sociólogos e cientistas políticos, no sentido de esclarecer a verdadeira postura e os interesses dessa pequena parcela da população que está "cansada".

O fato é que esses movimentos estão contando com o apoio dos canais de formação de opinião no Brasil; fica evidente observar quem são os principais atores que comandam o tal espetáculo: a grande mídia, os profissionais liberais e, no geral, as classes sócio-econômicas A e B. É evidente que, numa democracia, todas as vozes encontrem seu espaço de legitimidade. Entretanto, o objeto sob o qual incidem as "reclamações cansadas" é pontualmente político; as reivindicações não propõem mudanças concretas em relação à distribuição de riquezas, miséria, espaço urbano e vida social com dignidade. Os ataques são todos à corrupção que está instalada (em todos os cantos) da política brasileira - com especial destaque ao Governo "Lula"; nesse último aspecto, é claro que acabam por ter "toda a razão". Ora, bem vistas as coisas - e bem lidos os documentos e manifestos -, não parece haver qualquer proposta concreta que ajudasse a limpar o cenário político nacional - exatamente porque não é este o problema. O que ocorre é que a tradição política brasileira é exatamente essa: momentos de alternância entre ditaduras e democracias. E os grupos que comandam esses períodos abusam da res publica e do povo, por várias e diversas razões. Escolhendo algumas, deveríamos citar a forma federativa de Estado (que congrega uma miscelânia sócio-econômico-cultural), a não observância dos mecanismos legais de controle da participação democrática e a ineficiência dos sistemas de ensino.


Além do mais, a concentração de riquezas, o controle centralizado dos mecanismos de comunicação social (mass media) e a concentração do saber (por conta dos baixos índices de escolaridade) facilitam a disseminação de padrões de comportamento orientados à perpetuação de um sistema de exploração de classes dos mais cruéis existentes no mundo. Qualquer pessoa que esteja ciente do conteúdo relativo aos direitos humanos pode assegurar o que segue: o Brasil (enquanto instituição social) é contumaz violador dos direitos fundamentais da pessoa humana, em todos os seus aspectos. E quando se fala "o Brasil", leia-se "as elites econômicas que controlam os processos de produção e reprodução sociais".

Ora, qual é o verdadeiro problema? É o sistema, per si; ao invés de procurarem combater ideologicamente a infra-estrutura injusta e selvagem que condena a grande maioria da população a viver na miséria, a bússola de preocupações da "outra parte" (a minoria) está apontada para os problemas que afetam a qualidade de vida e a dignidade burguesa; são as "pequenas indignações", partes da própria estrutura social na qual encontram-se os "cansados", isto é, o feudo-capitalismo brasileiro, que tem suas raízes no sistema escravagista/aristocrata colonial. Não é a toa que uma dessas bússolas tenha sido responsável pelos ataques ao Estado do Piauí: como todo instrumento desta natureza, ela aponta ao Norte e é "lá" que está o "Brasil que o Brasil não quer ver". Reclamam da corrupção, mas alimentam-se dela - porque num país de miseráveis, de milhões que passam fome, a corrupção começa e termina na continuidade dessa perversidade. Reclamam dos atuais políticos, mas esquecem-se (de propósito) que eles são o fruto de uma árvore má; eles representam tanto a confirmação, quanto a contradição daquilo no qual estão inseridos: na política corrupta de continuidade da Sociedade de Exclusão. E que não me venham atacar a pobre democracia, porque ela não pode se tornar possível ou realizável nesta atual estrutura social brasileira - para que haja capitalismo, não é preciso democracia. Aliás, quanto menos democracia, mais capitalismo, mais exploração e mais miséria.

Corremos o risco de viver uma cidadania às avessas. Ao invés de ficar reclamando de que a população não tem a devida proteção (para tomar uma dose de whisky durante o happy hour), ou que está cansado de "pegar engarrafamento" no caminho para casa (o que aumenta o gasto com ar condicionado nos carros importados de 100 cv.), o cidadão consciente deveria abordar os verdadeiros problemas sociais brasileiros: fome, miséria, exploração, analfabetismo. É por isso que eu não "cansei", nem posso cansar e, por isso, vou insistir vezes sem fim neste tipo de argumento. E você, cansou?

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